Jogamos

Análise: ToeJam & Earl: Back in The Groove (Multi) revisita a fórmula do clássico em grande estilo

Série revisita suas raízes rogue-lite no aguardado retorno da dupla de alienígenas descolados.


Produzido pelo HumaNature Studios sob coordenação do criador da franquia, Greg Johnson, a partir de uma campanha bem sucedida no Kickstarter, ToeJam & Earl: Back in the Groove (Multi) busca resgatar a jogabilidade e a atmosfera única de ToeJam & Earl (Mega Drive), clássico de 1991 que marcou época no Mega Drive. O quarto jogo da série revisita pela primeira vez a fórmula do título de estreia da franquia, que inovou em diversas frentes ao se tornar um dos primeiros a incorporar elementos de exploração randômica e jogabilidade cooperativa com tela divida em um console de mesa.


Retornar à exploração caótica, imprevisível e viciante dos labirintos cósmicos daquela que foi para muitos primeira experiência de elementos que anos mais tarde se convencionaria se chamar de "rogue-lite" era uma proposta tão irrecusável quanto arriscada. O quão bem teria envelhecido a fórmula do clássico nessas décadas que nos separam? Conseguiria a dupla garantir seu lugar na biblioteca cada vez mais ampla de títulos atuais com a mesma força que em seus dias de glória 16-bits?

Buracos Negros & Anos 90

A trama de Back In the Groove traz de volta à ação toda a trupe de alienígenas do planeta Funkotron: ToeJam, Earl, Latisha, Lewanda e Peabo retornam das entradas anteriores da série, e os novatos Geek Jam e Flo (ilustre mãe de Earl) fazem aqui sua estreia. Viajando na espaçonave roubada do Mestre do Funk, Lamont the Funkopotamus, o quarteto acaba se envolvendo em uma crise bastante familiar aos fãs da série.

Confundindo-se com o painel de comandos, Earl ativa um gerador de buraco negro ao invés de ligar as subwoofers da nave (quem nunca?), originando um cataclisma que fragmenta não apenas o veículo, mas todo o planeta Terra, local por onde coincidentemente passavam no momento. O resultado é que os funkotronianos devem buscar as dez peças da espaçonave espalhadas ao longo de 25 níveis repletos de terráqueos furiosos.


Por terráqueos, entenda-se desde os mais tradicionais, como uma transtornada mãe empurrando um carrinho de compras com um bebê chorão, até os mais inusitados, como um demônio infernal, um UFO (?) e um Yeti em posse de um lápis gigante (??). 

Talvez por conta das distorções espaço-temporais geradas pelo buraco negro, a jornada é repleta de aleatoriedade em todos os sentidos: não apenas a trama absurda, mas os personagens e suas respectivas habilidades trazem sempre ares irreverentes e divertidos que remetem aos desenhos da década de 1990 — o que era descolado e novo na época do lançamento do jogo original agora dá as caras com um inegável charme retrô.

O retorno dos reis do rap

Não é apenas no campo da história que Back in The Groove presta homenagem ao jogo de estreia da série. Em termos da jogabilidade, o título retoma o modelo bem-sucedido da primeira aventura da dupla, escolha que deve ser bem-recebida pelos fãs saudosistas da série após duas sequências explorando estilos diferentes.

A decisão se prova acertada, já que o jogo resgata com sucesso um pouco do que há de mais único no primeiro ToeJam & Earl, sem deixar de incluir elementos presentes nas sequências de forma a atualizar a fórmula. Mesmo que ToeJam & Earl 2: Panic in Funkotron (Mega Drive) tenha sido bem recebido pela crítica e público da época, é inegável que seja a aventura original que se mantenha como a experiência mais memorável da franquia e um dos games essenciais do console 16-bits da Sega.

Assim, a jornada dos náufragos descolados em busca das partes de sua nave recria e aprofunda o modelo visto no Mega Drive. Sob uma perspectiva isométrica fixa, o jogador guia nossos heróis alienígenas por labirintos gerados proceduralmente, com o objetivo de percorrer todos os 25 níveis dessa versão surreal da Terra  —  sem se esquecer, é claro, de coletar as dez partes da nave ao longo do caminho. 

Cada um desses níveis é um continente flutuante com "geografia" própria, no qual o jogador deve localizar o elevador que leva até o nível superior. Caso venha a cair de uma das bordas do continente por algum motivo (acredite, haverão muitos), o personagem é remetido ao nível inferior e deve retraçar seu caminho até o elevador.

Parece simples, até que se leve em conta o seguinte: ToeJam, Earl e todos os personagens controláveis não dispõem de qualquer tipo de ataque ou mesmo da habilidade básica de pular para ajudá-los em sua travessia  — em seu estado básico, tudo que podem fazer é andar na ponta dos pés de modo a não chamar a atenção dos perigosos terráqueos. Seu único recurso são os infames pacotes de presente: itens coletáveis que possuem os mais diversos e imprevisíveis efeitos.

Presente de grego

Os presentes, ingrediente essencial para o sucesso do ToeJam & Earl original, continuam a ser o elemento central do gameplay nessa sequência. Os efeitos desses itens colecionáveis são dos mais diversos e pirados que se pode imaginar: as misteriosas caixas podem conter desde um estilingue com tomates (para se defender dos violentos terráqueos) até um elevador expresso portátil que garante a passagem direta ao próximo nível. Passando, é claro, por disfarces, armadilhas, teletransportes e bugigangas das mais variadas para auxiliar na exploração dessa versão surreal da Terra.



Porém nem tudo são surpresas boas: há uma boa cota de "presentes de grego" na mistura. Prontos para sairem dos pacotes tocando o terror em cima de nossos heróis, há itens como uma nuvem chuvosa carregada com relâmpagos mortais, um alarme extremamente irritante que pode denunciar sua localização para todos os terráqueos da fase ou então, simplesmente, a morte instantânea (e sem maiores explicações) de nossos azarados personagens.

Normalmente, cada pacote pode ser usado apenas uma vez e encontra-se pela primeira vez em estado não identificado (nomeado apenas como "??????"), o que torna necessário que se faça uma escolha crucial: abrir o pacote "no escuro" (arriscando liberar um mal inominável no mundo) ou aguardar para identificá-lo, pagando para um velho sábio vestido de cenoura ou utilizando-se de um presente específico para isso.

Uma vez reconhecido o conteúdo de determinado pacote (o qual não segue padrão fixo), ele permanecerá identificado até o final daquela partida. Isso é, se algo não acontecer no caminho (acredite, sempre acontecerá): alguns presentes sacanas atuam "desidentificando" os pacotes já reconhecidos ou mesmo aleatorizando seus conteúdos, e NPCs como os infames agentes estilo MIB também podem sumir com as memórias de nossos pacatos visitantes alinenígenas, tornando seu inventário uma grande incógnita novamente.

Da Terra até Funkotron —  e de volta de novo

Se por um lado esses elementos tradicionais de rogue-lite já não apresentam o mesmo aspecto de novidade em relação à época do lançamento do jogo original (que precedeu inclusive o seminal Diablo (Multi), marco indiscutível dos rogues), a experiência de ToeJam & Earl sempre foi mais do que apenas uma releitura cartunesca do formato.

Trata-se de um dos raros exemplares dos jogos do tipo: "só jogando para entender". O charme daquela aventura original, muito bem recapturado por Back in the Groove, se apoia sobre o carisma cartunesco dos personagens e situações e o equilíbrio inusitado entre a tensão da exploração cuidadosa e as situações cômicas (e também trágicas) advindas dos fatores imprevisíveis.



A superação dos níveis envolve desde administrar o fôlego na travessia de rios e lagos até o enfrentamento dos mais diversos tipos de terráqueos, passando pela exploração em busca de caminhos e rotas secretas que levem até aquele elevador especialmente ensaboado ou àquela parte da nave de difícil acesso. 

Os terráqueos formam uma trupe de inimigos bastante variada tanto em habilidades quanto em visual e temática: alguns deles atacam abertamente nossos heróis com padrões variados, enquanto outros se utilizam de estratégias mais indiretas, roubando presentes ou inflingindo mazelas das mais diversas. Por sorte, também há terráqueos dispostos a aceitar os viajantes das estrelas, auxiliando das mais diversas formas. Como não poderia deixar de ser, na maior parte das vezes essa ajuda tem um preço, portanto é importante juntar e guardar o bem mais valioso do local: a grana.



Para quem é familiar com a versão clássica a descrição até aqui traz poucas novidades, mas na verdade a experiência de Back in The Groove difere bastante daquela de seu título inspirador. A mudança mais simples é a inclusão de um sistema de pontos de experiência, que torna mais detalhada a progressão de títulos, que traz sorteios de benefícios diretos a cada promoção obtida pelos personagens.

Porém, a maior transformação se dá em termos de ritmo. O jogo original possuía um ritmo marcadamente lento, com a jogabilidade pontuada pela exploração vagarosa de mapas pontuados por poucos habitantes. Os presentes eram mais escassos e a experiência acabava sendo mais desafiadora: era comum o encontro com inimigos sem dispor de nenhum recurso para se defender. Aqui, a coisa muda totalmente de figura, em favor de uma dinâmica mais acelerada e agitada. Trata-se de ajustes acertados para uma fórmula que, se reproduzida com total fidelidade, corria o risco de cair em repetição.



Trazendo elementos das sequências, o jogador interage com plantas, casas e objetos do cenário em busca de presentes, dinheiro e eventos variados. Os terráqueos, tanto do mal quanto do bem, são bastante comuns e pipocam por todo o cenário, dando origem a uma versão mais caótica dos "combates" vistos no game clássico. Como resultado, os mapas parecem mais curtos e concentrados, e o jogo parece abertamente abraçar um sistema mais focado em partidas rápidas.

Prova disso é a inclusão de um (sempre muito bem-vindo) sistema de saves para retomar partidas anteriores, além da ordenação feita para os desbloqueáveis, que conta desde o início com a premissa de que o jogador deve "completar o jogo" por diversas vezes. Assim como no jogo original, temos uma opção de "mundo fixo" onde o jogador pode testar suas habilidades e se familiarizar com os sistemas do jogo em mapas pré-definidos antes de se aventurar pelas terras randômicas.



Na verdade isso é colocado aqui como uma exigência: o modo randômico só é habilitado após se vencer ao menos uma vez o modo fixo, atuando como espécie de tutorial disfarçado. A abordagem do jogo para ensinar seus sistemas é bastante minimalista, remetendo aos jogos antigos: sem nenhuma explicação durante o gameplay, o jogo traz um manual de instruções in-game bastante detalhado que vale a pena ser conferido. Há ainda um modo tutorial e opções de dificuldade mais baixas para os jogadores mais hesitantes.



Hi-Five!

Porém, uma coisa certamente não mudou nem um pouco em relação ao título original: o jogo traz um dos exemplares mais sensacionais do bom e velho multiplayer de sofá. O modo cooperativo é, sem dúvida, a forma mais divertida e a mais indicada para se jogar, tanto para explorar os sistemas do jogo pela primeira vez, quanto para curtir uma zoeira espacial pelas terras cartunescas desse universo. A possibilidade de escolher níveis de dificuldade de acordo com o jogador permite pessoas de niveis variados de habilidades de curtir a mesma partida. E, convenhamos, uma das principais habilidades a se ter aqui é a boa e velha sorte.

O modo cooperativo conta com um sistema simples e fácil de drop-in/drop-out instantâneo para até 4 jogadores, localmente ou online. O splitscreen dinâmico funciona muito bem, garantindo a liberdade para cada jogador seguir seu rumo próprio sem dores de cabeça e garantindo uma boa visibilidade em momentos de cooperação mais estreita. Uma gama ampla de presentes específicos do modo multiplayer garantem possibilidades estratégicas interessantes — ótimas para se explorar no modo Hard, desafio caótico que mais se aproxima, em termos de dificuldade, do título original.

A aleatoriedade cômica das situações, combinadas ao ritmo mais acelerado de jogo torna ToeJam & Earl: Back in The Groove uma excelente pedida tanto para os fãs do game clássico quanto para aqueles ainda não familiarizados, porém em busca por um cooperativo local diferenciado. A combinação inusitada de elementos randômicos ao esitlo rogue-lite e a imprevisibilidade cômica e totalmente injusta de um jogo ao estilo party garantem uma experiência que se mantém sempre fresca e divertida.

Com uma galeria razoável de power-ups desbloqueáveis — chapéus de poder especiais e presentes secretos — o incentivo para terminar o jogo mais e mais vezes se mantém alto para os que gostarem da premissa, para muito além das três primeiras finalizações com as quais se completa o elenco de nove personagens. O fato de que as partidas são curtas, embora acabe atenuando o aspecto punitivo da fórmula, incentiva esse senso de progresso e possibilita a rotação entre os diferentes personagens, que contam com benefícios e atributos ligeiramente diferentes.

O resultado final é uma retomada sólida e bastante inspirada do clássico 16-bits, a qual consegue resgatar com precisão o charme retrô do game ao mesmo tempo em que se arrisca em atualizar sua fórmula de modo a torná-la mais dinâmica. Embora sacrifique um pouco do desafio, o título acaba ganhando em complexidade e investindo no lado mais descontraído de sua proposta, o que rende uma sequência à altura da entrada inaugural da série — e de toda a expectativa gerada pelo retorno prometido da dupla de rapmasters. Envolvente, carismático e extremamente divertido, ToeJam & Earl: Back in The Groove é uma volta em grande estilo para a dupla noventista.

Prós

  • Jogabilidade renovada dinamiza e torna mais ágil a experiência única do título de estreia da série;
  • Trilha sonora excelente dá continuidade à tradição da franquia;
  • Personagens muito carismáticos, reimaginados em boas renderizações em HD que remetem ao estilo dos cartoons dos anos 1990;
  • Variedade de itens colecionáveis e randomização dos elementos garante uma experiência sempre renovada — altíssimo fator replay;
  • Excelente multiplayer cooperativo de sofá, com sistema drop-in/drop-out facilitando a jogatina;
  • Variedade de colecionáveis e desbloqueáveis;
  • Texto repleto de bom humor.

Contras

  • Interface pouco otimizada, especialmente a visualização do mapa no modo multiplayer.
ToeJam & Earl: Back in The Groove — PC/PS4/XBO/Switch — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PC
Análise produzida com cópia digital cedida pela HumaNature Studios

é gamer pra todo jogo, mas tem predileção por títulos retrô e um bom e velho JRPG. Sonic, Donkey Kong Country, Ratchet & Clank, Final Fantasy e Disgaea são algumas das séries que formaram a paixão pelos games, desde que ganhou seu Mega Drive, muitos (nem tantos!) anos atrás. Além de escrever para o Nintendo Blast e Game Blast, pode ser encontrado tagarelando no Plano Crítico.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google