Jogamos

Análise: Disgaea 5 Complete (PC) apaixona quem se aventura por sua extensa campanha

Apesar do descaso da produtora durante seu pré-lançamento, o game brilha por si próprio numa verdadeira aula para os outros representantes de seu gênero.


Conheci Disgaea em uma adaptação bem fraquinha para D20 publicada na finada revista Dragon Slayer, de RPG de mesa. Bem interessado sobre o conceito da série, fui atrás de conhecê-la. Acompanhei todos os lançamentos a partir de Disgaea 3: Absence of Justice (PS3) e também assisti ao anime que foi lançado em 2006 — que, por sinal, é bem chato, para não dizer que é ruim. Contudo, meu contato prático anterior com a franquia nos games só aconteceu por uns quarenta ou cinquenta minutos que joguei do primeiro título.


Assim, a minha primeira incursão de cabeça em relação à série foi com Disgaea 5 Complete (PC), que chegou aos PCs em outubro, depois de um período de pré-lançamento atribulado. Após originalmente dar as caras no PlayStation 4 com o título “Alliance of Justice”, ele foi um dos jogos da line-up inicial do Nintendo Switch, numa versão com o mesmo nome que esta aqui analisada, mas é importante ressaltar que esse port não é tão completo assim como seu irmão no console da Nintendo.


O carisma dos personagens também faz parte da história

Disgaea é uma série em RPG tático aos moldes dos já conhecidos Fire Emblem, Final Fantasy Tactics e Advance Wars. Cada personagem pode ser controlado individualmente por um mapa que funciona como uma espécie de tabuleiro. A movimentação se dá em grade e apenas uma ação — como atacar, entrar em modo defensivo, ou usar itens — por unidade é possível. Quando todos nossos peões já efetuaram seus comandos, o turno acaba e é a vez do oponente fazer o mesmo.

A mitologia da franquia diz respeito a uma espécie de submundo habitado por demônios composto por vários domínios temáticos diferentes chamados Netherworld. Cada Netherworld é comandado por um demônio mais poderoso, chamado Overlord, que conta com uma habilidade especial chamada Overload. Em Disgaea 5, um Overlord chamado Void Dark é apresentado como um poderoso vilão que busca dominar o mundo.

Batendo de frente contra o vilão, uma aliança rebelde de outros Overlords se formou por terem o objetivo em comum — na maioria dos casos — de se vingar de Void Dark por conta de suas ações malignas. Seraphina é a bela princesa de um Netherworld muito rico cujo pai a prometeu em casamento a Void Dark e por isso fugiu de casa. Durante uma batalha, ela é salva por Killia, um demônio errante que tem contas a acertar com o antagonista. Dessa forma, ambos se unem para assassinar o vilão.


Ao longo da história, outros aliados vão surgindo com o mesmo intuito, como Red Magnus, um poderoso demônio capaz de ficar gigante, e Usalia, a Overlord de um mundo habitado por coelhos. Ambos tiveram seus próprios Netherworlds devastados pelas forças inimigas. Christo, por sua vez, é um anjo acusado erroneamente de ser um espião de Void Dark. Por fim, Zeroken é um garoto que se une ao grupo no intuito de salvar seu mestre (o mesmo de Killia) de uma lavagem cerebral que o tornou o braço direito do vilão.

Os personagens são bem carismáticos e, apesar de haver controvérsia a respeito da densidade da narrativa em relação aos outros títulos da série, são eles que conseguem segurar o jogador em uma história envolvente que se estende por mais de quarenta horas de jogo. É uma aventura simples que se foca no desenvolvimento dos protagonistas, com novas descobertas a respeito de cada um sendo feitas ao longo do enredo, bem como os laços entre eles vão se formando e fortalecendo até a derradeira luta final.

A leveza desse roteiro chega a ser interessante justamente porque serve de contraponto a outros cada vez mais complexos ou tocantes no gênero RPG. Por mais clichê que possa parecer, é interessante ressaltar que tal história funciona dentro do que se propõe — e muito bem, por sinal.

Nota-se que além das cutscenes referentes à história — que podem se utilizar tanto dos sprites dos personagens e dos cenários das fases ou serem compostas apenas pelos retratos dos envolvidos no intuito de ilustrar o diálogo — há peças de conversa que podem ser acessadas ocasionalmente no hub e apenas ajudam a expandir a relação entre os personagens e demonstram a forma como eles próprios interagem de uma maneira mais casual. Esse tipo de conteúdo, apesar de completamente opcional e adicionar em absolutamente nada ao gameplay, nos proporciona momentos em que os personagens acabam se tornando humanos aos nossos olhos, mesmo que eles sejam, bem, demônios. É dessa informalidade que os verdadeiros laços são construídos, mesmo que quase sempre de uma maneira bem-humorada.


Demônios de todos os Netherworlds, uni-vos!

O principal atributo da jogabilidade de Disgaea é sua diversidade. Além das funções simples como atacar, defender e usar itens, há outras formas de agir durante dos combates. Uma delas, bastante conhecida para a franquia, é a possibilidade carregar outros personagens. Apesar de ter a mobilidade reduzida e não poder usar skills normais, uma unidade que carrega outra tem um poder de ataque elevado e, ao derrotar inimigos, a experiência recebida é dividida entre ambas. Considerando que é possível carregar indivíduos que já esteja carregando outros, não é incomum que possamos optar pela formação de impávidas torres de unidades.

Outra função interessante que potencializa o level design de Disgaea 5 e o torna diferente de outros RPGs táticos é a forma como as fases podem contar com os chamados Geo Panels, que formam puzzles baseados em cores. Isto é, cada fase pode contar com algumas células do chão coloridas. As unidades que estão em tais células podem contar com certos atributos, como aumentar ataque, diminuir a defesa ou até mesmo tornar unidades invulneráveis.



Caso tal atributo oferecido não seja interessante para nós jogadores, podemos atacar pequenas pirâmides chamadas Geo Symbols. Quando uma dessas de determinada cor é destruída em cima de algum Geo Panel de cor diferente, o efeito oferecido pelas células em questão muda e causa dano a todas as unidades que estejam pisando nelas. Toda vez que tal recurso é ativado, o contador de combo dispara em valores equivalentes ao número de painéis cuja cor foi trocada.

Isso colabora muito na hora de receber os itens bônus ao final das fases, visto que há diferentes recompensas que podem ser adquiridas de acordo com o nível que o medidor de combo alcançou. Existe inclusive uma recompensa única e especial a ser recebida em cada estágio, caso o nível máximo seja atingido.

A principal novidade de Disgaea 5, entretanto, é a presença do medidor de vingança. Preenchido ao longo das lutas ao receber ataques dos inimigos, as unidades podem alcançar o chamado Revenge Mode. Nesse estado, os atributos são potencializados e uma habilidade especial e temporária chamada Overload, exclusiva aos Overlords, pode ser utilizada. Red Magnus, por exemplo, conta com a Super Olympia, que duplica seu tamanho e aumenta o seu ataque em 50%. Seraphina — que é um demônio, não se engane com esse nome angelical —, pode utilizar a Balor Gaze e fazer com que as unidades masculinas inimigas próximas a ela ataquem umas às outras. Tais habilidades, vale lembrar, podem evoluir ao longo da jornada e assumir novas versões ainda mais poderosas

Também exclusivas de Disgaea 5, as combination skills são golpes especiais que uma unidade pode adquirir e usar em conjunto de outra que esteja em uma célula próxima. Há também a chamada Magichange¸ quando unidades monstruosas se transformam em equipamentos especiais que podem ser utilizados pelas unidades humanas. Essas mecânicas são interessantes para consolidar a ideia que Disgaea não diz respeito aos personagens de forma individual, mas que o jogador precisa entender o seu time como um pequeno exército em sincronia que fica mais poderoso quando age em equipe. Não existe individualidade em Disgaea — e por mais que seja tentador no começo concentrar todas as ações em Red Magnus, dificilmente será possível terminar o jogo sem dar atenção aos outros de forma igualitária.


Um multiverso de infinitas possibilidades

Além da história principal, há muito o que fazer no Pocket Netherworld, o hub em Disgaea 5. Presente desde o primeiro título da série, o parlamento demoníaco — a Dark Assembly — é um dos recursos mais engraçados. Lá é possível propor leis que servem para desbloquear ainda mais conteúdo, como liberar novas fases, melhorar os itens nas lojas e por aí vai. Quando começa a sessão plenária, podemos ver quais parlamentares são a favor ou contra nossas propostas. Aos que são contrários, podemos fazê-los mudar de ideia através daquilo que não é exclusivo, mas se tornou uma característica do nosso jeitinho brasileiro: propina. Ah, são demônios, não são? Estão longe de serem exemplos a serem seguidos.

O Item World também retorna de outros carnavais e diz respeito a uma característica de carregar uma espécie de universo próprio dentro dos itens. Na prática para nós, jogadores, esse mundo dentro de cada item é composto por uma série de dungeons aleatórias geradas pelo próprio jogo. Quanto mais fases vamos concluindo e mais longe chegamos no mundo de determinado artefato, maior é o nível que ele atinge e mais forte ele fica.


Essa mecânica é quintessencial em Disgaea e promove o grinding exagerado e virtualmente infinito característico da série. A questão é que apesar de consistir em uma atividade realizada continuamente de forma cíclica, ela não provoca o tédio da repetição porque cada fase é única. Podem não ser memoráveis por não serem humanamente criadas no intuito de marcarem de alguma forma, mas são diferentes o suficiente para que o interesse em efetuá-las continue se renovando indefinidamente.

É no Pocket Netherworld onde podemos recrutar novas unidades, seja diretamente criadas ou incorporadas à nossa aliança após interrogarmos os prisioneiros que fizemos nas fases comuns. Também podemos reorganizar nossos guerreiros da vingança em esquadrões que assumem funções diferentes nas batalhas, como se especializar em cura, capitalizar e distribuir com mais facilidade os pontos de experiência ou simplesmente participar de uma equipe que deixa gigantes as unidades integrantes nos primeiros turnos do combate.

A partir do hub também é possível acessar todo o conteúdo DLC previamente disponível, como novos personagens poderosos e itens que podem facilitar muito o caminho de um jogador iniciante. Por outro lado, esse material contribui com mais atividades a serem feitas e completas, com novas fases que estendem a campanha por ainda mais tempo.


Uma aventura nem tão completa assim

Houve muita controvérsia durante o período promocional de Disgaea 5 Complete para o PC. Um dos problemas é o adiamento que o título sofreu após a versão de demonstração acabar liberando o game completo. A NIS America, então, acabou tendo que tomar uma atitude drástica e remover todo o conteúdo já baixado não apenas do servidor da Steam, mas também das livrarias daqueles que chegaram a experimentá-lo em sua “versão demo”. Na sequência, a data de lançamento prevista para maio foi postergada para outubro na justificativa de corrigir erros encontrados de última hora.

Quando finalmente chegou ao público, jogadores da mesma versão completa de Switch perceberam que todos os recursos on-line foram removidos, a exemplo do editor de mapas, cujas criações podiam ser compartilhadas entre os usuários. Considerando a base de fãs apaixonada com a qual essa série de nicho conta, esse tipo de atitude mostrou total descaso da desenvolvedora — que até chegou a justificar o ocorrido após a repercussão negativa, mas, convenhamos, não convenceu: 
Devido a irreconciliáveis diferenças da plataforma, foi decidido no começo do desenvolvimento de Disgaea 5 Complete que as funções de rede presentes na versão original não seriam implementadas nesse port para Steam. Nós pedimos sinceras desculpas por não termos comunicado com antecedência a respeito de tais diferenças e agradecemos pela paciência e compreensão acerca desse caso. Gostaríamos de lembrar a todos os usuários que todas as compras realizadas na Steam podem ser devolvidas e reembolsadas caso o tempo total de jogo não tenha ultrapassado duas horas.
A grosso modo, a ausência de tais componentes afeta a experiência geral de jogo? A resposta é não. O conteúdo on-line com certeza não é essencial para o aproveitamento positivo de Disgaea 5 Complete. Não é como se o título estivesse completamente arruinado por conta de tal decisão da desenvolvedora, visto que o fator de replay ainda é praticamente infinito e ele continua imensamente divertido por horas a fio.

Entretanto, a atitude da NIS America não é de se isentar. É algo que deveria ter sido comunicado com antecedência, principalmente porque esse é um caso que o fã sabe exatamente o que está comprando e o que deveria receber. Ressalta-se que esse tipo de prática é completamente repudiável. É uma pena que esse revés poderia ter sido contornado com melhor planejamento e aviso prévio e um jogo imensamente divertido tenha sido prejudicado por conta disso.

Afinal, apesar de não ser tão completo assim em relação à versão de Switch do mesmo game, ainda é um trabalho competente. Há algumas decisões de design questionáveis, mas pontuais e completamente comuns em qualquer produto, como a ausência de uma grade fixa no chão dos estágios, visto que é algo que poderia facilitar a interpretação da disposição dos elementos da fase. Fora isso, o gameplay é funcional e o visual é absolutamente charmoso. É uma pena que o título tenha sido vítima de tamanho vacilo, visto que o problema não é nem tirar o conteúdo, mas a forma como foi tirado.

Disgaea 5 é uma verdadeira aula de conteúdo e diversidade

Não é incomum encontrar veteranos da série que superam as mil horas de jogo em uma iteração dela. Isso pode parecer exagerado e inconcebível ao olhar daqueles que não são habituados. Contudo, mecânicas como o Item World, que quando experimentadas, acabam abrindo os olhos do jogador e todo esse tempo investido acaba fazendo muito sentido para o indivíduo que cria coragem e finalmente decide se aventurar.

Afinal, não seria nenhuma mentira dizer que Disgaea é uma série bem pouco convidativa. Ela é o que o mercado ocidental costuma categorizar como “japonês demais”. Isso não diz respeito apenas à estética em anime, mas também a uma jogabilidade específica, complexa e característica que o ocidente não consegue digerir da mesma forma que o oriente. O quinto título da franquia, no entanto, consegue oferecer uma experiência imersiva com uma progressão equilibrada que funciona muito bem para conquistar um público ainda não-iniciado — sentimento potencializado pelo fato do game não exigir nenhum conhecimento prévio dos lançamentos anteriores. 

Disgaea 5 Complete é uma cativante aventura que transforma o jogador apreensivo do começo em um apaixonado no fim. É um RPG tático sólido que, além de não dever em absolutamente nada a outros representantes desse mesmo gênero de xadrez moderno, deveria ter seu fator replay infinito e diversidade de possibilidades no gameplay tomados como exemplo.

Prós:

  • História cativante;
  • Personagens carismáticos;
  • Muito conteúdo além da campanha principal;
  • Vasto leque de possibilidades nas batalhas;
  • Potencial de replay infinito;
  • Direção artística extremamente agradável.

Contras:

  • A maneira como a NIS America lidou com o lançamento.
Disgaea 5 Complete — PC — Nota: 9.0
Análise produzida com cópia digital cedida pela NIS America.
Revisão: Link Beoulve.

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google