Discussão

A maioridade nos games — Parte 1: O processo de maturidade da Indústria

Somos uma geração de gamers mais velhos, crescemos jogando e a indústria cresceu conosco. Da infância à maturidade, revisitaremos esse processo.

Virou um bordão dizer que games não são mais coisas de criança. Eu particularmente odiava ler e reler isso por aí. Sacava logo de cara que, quando um redator queria abordar temas mais sérios, começava com esse papo de: “se você pensa que videogame é coisa de criança, está enganado...”.


OK, sabemos que os games (na verdade os gamers) cresceram, mas deixando de lado este clichê jornalístico, há uma importante história a ser contada aí, um processo de maturidade que, talvez, esteja só começando, mas que já deu alguns passos fundamentais. Iremos remontar esses passos e um pouco desse processo na primeira parte desta matéria.


Enfim a maioridade

Pesquisas mostram que a idade predominantemente do público gamer é de 31 anos, sendo que 48% deste público é feminino. Há mais mulheres jogando videogames do que adolescentes homens, por exemplo, algo inimaginável há pouco tempo.

Isso demonstra que hoje os games podem, com desenvoltura e terreno aberto, explorar qualquer tema, seja ele o mais controverso ou polêmico, e não somente nesses aspectos, mas também nos artístico, filosófico e intelectual.
Já não é mais um tipo especifico de público que “joga”, isso permite à indústria uma abertura crescente e uma possibilidade de gêneros e abordagens bem diversas no mundo dos videogames.
Nesse sentido, podemos dizer que chegamos a uma maioridade nos games, e assim como na vida, é na maioridade que encontramos a chamada “liberdade” para explorarmos os caminhos que quisermos, certo? Não há mais lugares que não possamos ir, tampouco censura. Ainda que, só lembrando, muitos não estejam prontos para tanta “liberdade”.

Infância, brincando de videogame

Nem sempre foi assim, a criança gamer cresceu com muitas regras, vejamos um exemplo: a palavra morte é uma constante no mundos dos jogos eletrônicos, você está acostumado a morrer, você está acostumado a vê-la impressa na tela de sua televisão.

No entanto, se você é da época do Nintendo 8-bits (Nintendo Entertainment System), poderia dizer um jogo que tenha usado esta palavra? Ou mesmo as palavras"die" "kill" or "killed”?

Na assim chamada infância dos videogames, a morte era usada e graficamente expressada com muito cuidado, assim como outros temas “maduros demais” para uma criança.
Se era assim com a Morte, o que dizer
de temas como sexo ou nudez?
Para a Nintendo, que (era mãe) dominava a indústria no final dos anos 80 e começo dos 90, essas palavras não poderiam ser usadas (salvo em situações de não violência) sendo partes de seu conjunto de regras para a aprovação ou não de um jogo para seu console nos Estados Unidos.
Nos manuais da época, nunca se lia “Mario deve matar os Goombas”, mas “Mario deve derrotar os Goombas”. Fonte: Jjmccullough
A Nintendo of América era quem ditava essas regras para todo o mercado ocidental, e ela entendia que seus jogos (e os jogos que apareceriam em seus consoles), deveriam atender as normas da “moral e dos bons costumes” ou, nas palavras da própria Nintendo em seu guia de conteúdo:
A Nintendo está preocupada com que nossos produtos não contenham material que a sociedade como um todo julgue inaceitável (...)
Assim, conteúdos que demonstrassem ou sugerissem nudez, sexo, racismo, violência doméstica, e até mesmo conteúdo que se referisse a alguma religião ou nacionalidade eram censurados e modificados.

Já na Nintendo do Japão, não havia tal guia, o que possibilitava uma liberdade maior aos criadores, coisa que demoramos para ver aqui no Ocidente.

Vamos explicitar alguns exemplos famoso da era NES/SNES sobre e censura de conteúdo que sofreram alguns jogos ao serem traduzidos e localizados para o inglês e aproveitar para revisitarmos algumas dessas regras, retirados do Guia da Nintendo de Conteúdo:
Castlevania IV (SNES)
A Nintendo não irá aprovar jogos que...
Incluam conteúdo sugestivamente ou explicitamente sexual, incluindo estupro e/ou nudez.
Earthbound/Mother 2 (SNES)
Ducktales (NES)
Símbolos que estejam relacionados a qualquer raça, religião, ou nacionalidade ou grupo étnico.
Final Fantasy III/VI (SNES)
Uso de drogas ilegais, material relacionado ao fumo, e/ou álcool. 

No caso o símbolo da Cruz Vermelha em Earthbound fazia alusão à Suíça, país sede da organização, e a Cruz ao Cristianismo, ambos banidos e alterados em suas versões ocidentais. O mesmo, obviamente para bares por exemplo, nada de cigarros ou álcool nos games, coisas que estamos tão acostumados hoje, como vimos no exemplo de Final Fantasy IV (III no Ocidente), onde os bares mudaram para cafés.

Além desses, há ainda o famoso caso do Mortal Kombat, pesadamente editado e censurado em sua versão para Super Nintendo, e totalmente liberado no Sega Genesis, sendo um dos motivos de a Nintendo até hoje ser conhecida (e hostilizada) como uma empresa de jogos infantis.

Ainda que não fosse o caso e havendo evidentemente alguns exageros (e paranoias) por parte da Nintendo, os jogos de videogame, sobretudo no Ocidente, eram feitos e jogados por crianças (nós) na década de 80 e começo de 90, e como qualquer empresa fabricante de produtos infantis, a Nintendo se preocupava com a opinião e aprovação dos pais, certo?

Criança prodígio, porém...

Tempos esquisitos estes, não? Quem vive hoje a era do Xbox e do PlayStation e ainda da imortal Nintendo acha estranho que um dia toda essa censura tenha sido imposta por causa desta última, mas a verdade é que os jogadores, e toda a indústria, estava crescendo rápido demais, e logo reclamou por mais espaço.

Um olhar mais atento de quem pertenceu a essa época de ouro já poderia dizer isso, havia muito mais nos jogos do que um simples brinquedo ou passatempo, tanto é que nossa querida indústria se um dia foi uma criança, foi uma prodígio, destinada a ultrapassar, em pouco tempo (nas últimas três décadas), os maiores ramos do setor de entretenimento, como a música e o cinema, vindo a invadir, mais recentemente, até mesmo os ramos de esportes.
“Números do setor apontam que as vendas de consoles, jogos e serviços relacionados a games online hoje ultrapassam os US$ 60,4 bilhões anuais, podendo chegar a US$ 75 bilhões até 2015. Para se ter uma ideia da relevância desse montante, em 2010 todos os filmes produzidos em Hollywood faturaram pouco mais de US$ 31,8 bilhões.” Fonte: Tecmundo

Período de transição

Voltando à polêmica citada acima sobre Mortal Kombat, cabe dizer que ela foi um divisor de águas na indústria e entre os jogadores também, nunca, até então, o clamor por (sangue e) conteúdo adulto e sem censura fora ouvido tão forte, levando inclusive à criação do orgão de regulamentação nos 
Você conhece bem este símbolo
videogames conhecido como (Entertainment Software Rating Board) ESRB, que assinala indicadores de idade e conteúdo para o público.

Estamos no ano de 1994, ano que marcou também a entrada do primeiro PlayStation no Japão, e deu início à quinta geração de consoles juntamente com a transição para o uso do 3D como próximo grande passo no mundo dos videogames.

A Sony, novata no ramo, introduziria com seu PlayStation, uma nova tendência na indústria, o console com múltiplas utilidades e portanto “não apenas um videogame”/ É algo que estamos bem acostumados hoje, mas que começou com um videogame que rodava também “cds de música”.
O primeiro console a utilizar CDs como mídia principal, servia também para reproduzir CDs de áudio, uma grande novidade na época e um charme que fez diferença.



Chegava ao fim a era do 2D, jogos como Donkey Kong, Chrono Trigger, demonstravam que a indústria havia amadurecido o gênero a seu ápice, começava então uma nova fase, com novas tendencias, temas e aberturas. Muitos jogadores haviam parado de jogar por terem “crescido”, mas já havia quem estava de olho neste público…

O playstation não fazia questão de nenhum mascote, até então requisito para se ter sucesso nos videogames até então, no vídeo abaixo, um comercial do console de 1994, já da pra sentir uma tentativa de relação da empresa com um público mais maduro.:



Assim, a Sony, com seu PlayStation, viu essa abertura e começou a vender a imagem de console com jogos maduros e sérios (não meras brincadeiras de criança), para jogadores que "realmente" haviam crescido.

Estes eram os primeiros passos rumo a uma tendência dominante ainda hoje: a de consoles modernos e arrojados, com jogos cada vez mais complexos. Mas uma coisa é a maturidade da indústria, outra, dos jogadores, certo? E aí entramos num terreno mais subjetivo. Mas que vale a pena dizer algo e que também é o objetivo desta matéria.

Qual foi o seu rito de passagem?

Em outras palavras, a partir de qual game você começou a levar o ato de jogar videogames mais a sério? Prestando mais atenção aos detalhes, a experiência que um jogo poderia proporcionar não apenas como um brinquedo?

De maneira rápida, eu citarei Breath of Fire 2 (SNES), como meu exemplo pessoal.
Ele foi um jogo que se diferenciava de tudo na época para mim, um grande fã de Mega Man e de jogos de plataforma (na época, jogos de fases com um chefe no final). Sim, afinal era um RPG, coisa que nunca havia ouvido falar.

A dificuldade era enorme em todos os sentidos, a começar pelo idioma (drama que muitos de nós vivemos), além de menus complexos e pouco intuitivos. Mesmo assim, por uma razão especial, eu quis entender como tudo aquilo funcionava e qual era o sentido daquele estranho jogo cheios de textos e diálogos que em tudo me soava complicado demais, mas charmoso e secreto, me prometendo algo mais recompensador que qualquer outro jogo…

Sinta o drama:



Logo de cara, eu percebi que aquele game era um caso a parte, um “jogo sério”, e não era por que não sabia jogá-lo que desistiria dele, iria aprender!

Sozinho, e pouco a pouco, lutando com um dicionário de inglês e vasculhando cada cantinho do mapa, mesmo sem entender completamente a história, nem o que deveria fazer, fui me emocionando, vivendo e vencendo todos os desafios do jogo, e isso mais pela insistência do que qualquer outra coisa.
Acredito que todos nós que continuamos jogando ainda hoje passamos por este rito de passagem, o vencemos e depois nunca mais fomos os mesmos em relação ao games. Qual foi o seu?

Games que amadureceram toda uma geração

Games in Concert
Pouco a pouco, impulsionado pelos números, ou pela própria maturidade de seu público, os games foram tomando mais espaço e profundidade, complexidade e alcance, mesmo em meios pouco pensados há alguns anos:

Verdadeiras orquestras que rodam o mundo exclusivamente com músicas e canções de videogames

Canais especializados em esportes começam a cobrir também eventos de esportes eletrônicos, ou e-Sports, apontando para um futuro ainda mais promissor para o mundo dos videogames.
Estádio lotado para uma final de E-Sport
Se esses passos foram dados nas últimas três décadas pela indústria, também o foi pelos jogadores em certos aspectos. Talvez não seja coincidência o fato de que a média de jogadores atuais seja de 31 anos, o que nos faz lembrar que, quase literalmente, crescemos com os games.

Não podemos deixar de apontar alguns jogos chaves nesse sentido, que marcaram tanto toda uma geração de jogadores quanto os rumos da indústria, pois tanto um como outra são feitos por jogos no final das contas, para isso preparamos um top 10 na parte 2 desta matéria. Não perca. Até lá

Revisão: Alberto Canen
Capa: Felipe Araujo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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