Analógico

A morte e os games: uma relação difícil, mas necessária

Lidar com a morte na vida real é algo muito difícil, e cada vez mais os jogos seguem o mesmo caminho. Seria possível sofrer com a morte virtual?


“Quando eu morrer, você joga”. Essa é uma frase comum aos jogadores da atualidade, que lidam com a morte de maneiras muito diferentes das que lidamos no mundo real. Mas, nos últimos tempos, os games vêm apresentando novas visões e opções de vivenciar este momento tão trágico, trazendo sensações nunca antes vivenciadas em uma mídia digital.


Com o surgimento do mercado dos jogos eletrônicos, as pessoas foram introduzidas a novas maneiras de se divertir com a televisão, envolvendo imagens em movimentos correspondentes aos botões que apertavam. Com a pouca qualidade visual e a fraca tecnologia, a solução encontrada pelos desenvolvedores para limitar a duração de uma partida foi a de aumentar o nível progressivamente até que o personagem morresse, e tudo começasse novamente.
Space Invaders (Multi) trouxe tudo o de mais comum da época: cenário preto, poucas cores, tiros e tema espacial.
Curiosamente, os jogos antigos lidavam muito com temas espaciais e com guerras, já que os cenários pretos e os tiros eram muito fáceis de serem reproduzidos (além do momento que o mundo vivia nos anos 1970). Os jogadores encaravam a morte, ali, da mesma maneira que um soldado que morresse no mundo real: apenas números e alguns feitos seriam lembrados pelos que continuavam vivendo, sendo esquecidos apenas quando alguém fizesse algo ainda melhor. A sensação de ser apenas mais um era transmitida pelo fato de, em pouco tempo, morrer em um jogo não significasse nada — era só recomeçar e tentar novamente.
Com a introdução dos jogos narrativos, as coisas começaram a mudar. Em Mario Bros. (NES), por exemplo, morrer não faria o jogador ter que voltar ao começo de tudo, tendo que repetir apenas a fase em que estava. Isso dizia muito sobre a população e a constante necessidade de não falar tanto sobre a morte: ela era, então, apenas um obstáculo para chegar ao objetivo final.
Ao contrário do cinema, o envolvimento com um personagem de um jogo passou a ser algo muito mais profundo. Ver alguém morrer em um jogo de Final Fantasy foi o suficiente para categorizar seus vilões como uns dos piores da história, e até hoje suas músicas causam arrepios em muita gente. Percebendo a potência que isso teria com a utilização de novas tecnologias, morrer passou a ter diversos resultados e foi visto de maneiras diferentes de acordo com cada jogo. Afinal de contas, cada um lida com a morte de maneira individual, não é mesmo?
Em Final Fantasy VII (PS), os acontecimentos são tão fortes que basta uma imagem para trazer sentimentos aos jogadores.

Caiu um cisco no meu olho

Lembro-me da primeira vez que terminei Final Fantasy X (PS2), após 70 horas de jogo. Com os meus 14 anos, lutando para entender a língua inglesa e compreender a história, resolvi enfrentar o chefe final com um amigo ao lado. Em questão de minutos, ambos estávamos com os olhos cheios de lágrimas, com vergonha de compartilhar essa experiência. Não contei para ele, mas passei dias cabisbaixo por conta da morte de um personagem importante e que me acompanhou por diversos dias.
Cada vez mais, nos emocionamos com os videogames. Em games como Never Alone (Multi), vivemos aventuras que jamais teríamos em nosso próprio país e conhecemos culturas sensíveis e humanas, de forma impossível em qualquer outra mídia. A identificação é tão forte que chegamos a ter medo ao ver inimigos enormes, e até mesmo suarmos após uma difícil batalha. 
Voltando um pouco no tempo, percebemos o quão difícil é, também, matar em um jogo eletrônico. Call of Duty: Modern Warfare 2 (Multi) nos colocou no papel de executar diversos civis em um aeroporto, sem nenhum motivo além de terrorismo. Além de exibir imagens chocantes, o jogador se sente em um embate complexo: devo matar todo mundo e seguir com o jogo, ou paro por aqui? Quais os limites de colocar uma pessoa no controle de um universo tão realista? Neste caso, havia a opção de pular a missão, mas talvez seja preciso que vivenciemos algo tão trágico, já que os games também ensinam sobre a vida.
Para quem sempre condenou atitudes terroristas, é muito difícil vivenciar momentos como esse nos videogames.

Em jogos como Mortal Kombat, as mortes parecem não ser nada. Pelo contrário, matar de maneiras cruéis é visto como algo divertido, incentivando os jogadores a buscar grandes quantidades de sangue do inimigo. Neste momento, é preciso entender que o universo proposto contém personagens com pouquíssima identificação, cujo objetivo é o de fazer coisas que jamais ocorreriam no mundo real — levando em consideração as pessoas sãs e conscientes. Desta maneira, é como assistir uma cena extremamente falsa de uma morte em um filme: se não causa a sensação de realidade, não nos sentiremos incomodados.

Mortes virtuais também são reais

Com a internet, os jogos online dominaram o mercado. World of Warcraft (PC) tem uma gigantesca base de fãs que gastam muito dinheiro e passam diversas horas de seus dias vivendo em seu universo. Hoje, a vida virtual é levada tão a sério quanto a real. Há pessoas que se conhecem no jogo e criam laços físicos, chegando até mesmo a casar. Morrer passa a ter outro significado.
Essa visão se torna cada vez mais comum em World of Warcraft: jogadores se reúnem para lamentar a morte de um de seus colegas.
O primeiro pensamento que vem em nossa mente ao ler a frase “O jogador morreu” é o de uma tela preta, com os dizeres “Game Over” em grandes letras e a opção de recomeçar o jogo. Mas atualmente, a morte no mundo real de um jogador comove e afeta todos os que conviviam com ele em um universo online. Não é estranho encontrar jogadores realizando enterros virtuais ou homenagens aos que se foram, deixando de batalhar entre si para lembrar histórias e momentos com o seu personagem, que se foi junto com o criador.
Esse tipo de humanização de um personagem, que morre com o seu controlador, dominou o mercado nos anos 1990. Muitas crianças passavam horas cuidando de seus Tamagotchi, os famosos “bichinhos virtuais”, fazendo atividades entediantes apenas para que pequenos pixels na tela vivessem por bastante tempo. Assim como um animal real, ocorria identificação e as mortes eram sentimentais — reiniciar o aparelho traria outra criatura, e o processo de apego voltaria a ser longo e demorado. Eram muitos os que choravam quando perdiam seus queridos amigos digitais. 
Com a evolução da tecnologia, pessoas reais ocupam cada vez mais o espaço dos personagens controlados pela inteligência artificial. H1Z1, um game que promete trazer o apocalipse zumbi aos extremos, tem a proposta de criar um espaço onde todos os humanos sejam pessoas reais. Ainda em versão alfa, muitos já se aventuram com personagens únicos e insubstituíveis — caso um jogador morra, seu personagem morrerá junto e nunca mais voltará. Com isso, além da grande veracidade, as relações passam a ser mais humanas, e matar alguém se torna muito mais difícil. O que vale mais a pena: conviver e lutar juntos, ou ser forte sozinho? Esta dúvida, que tanto atinge a sociedade atual, se torna cada vez mais frequente nos jogos.
Apesar de ainda estar em desenvolvimento, H1Z1 já pode ser comprado e jogado, dando aos jogadores uma ideia do que terão na versão final do game.

Games são coisa séria

Final Fantasy Type-0 lida com a morte de maneira bem diferente: assim que um personagem morre, todos os que o conheciam esquecem-no instantaneamente. Apesar de parecer mais aliviante, isso nos faz pensar no quão triste é encontrar vestígios de alguém que já foi importante, sem saber de fato quem eram. 
Há muito o que nunca saberei ou entenderei. Desde pequeno, não conseguia entender o que levaria uma pessoa ao suicídio, já que não conseguia sequer me machucar propositalmente. Conforme cresci, e entendi que a mente humana é algo muito complexo, passei a perceber o poder da dor psicológica e o tamanho do mal que ela pode causar. Mas nenhum discurso foi capaz de me trazer a sensação de estar no corpo de alguém prestes a acabar com a própria vida como o jogo The Static Speaks My Name (gratuito no site da thewhalehusband).
Em The Static Speaks My Name, o cenário com imagens repetitivas e sons perturbadores já nos fazem nos sentir na pele do personagem: extremamente incomodados.

Criado por uma pequena equipe indie, The Static Speaks My Name dura cerca de dez minutos e coloca o jogador no papel de um homem com sérios problemas, fazendo com que seus objetivos incluam se alimentar de camarões de estimação vivos e eletrocutar um homem em uma gaiola. Nada é explicado: a obsessão do personagem por uma gravura nos faz perceber que ele está perturbado e que nada de bom sairá dali. É somente no final do game, quando o objetivo é “descansar”, que ele se mata — o que traz um enorme alívio ao jogador.

Com apenas alguns segundos de agonia, saber que o destino da pessoa está em nossas mãos traz um estranho e incômodo poder, que parece ser necessário dentro daquele universo. Mas, ao mesmo tempo, imaginar que isso afetará o restante de uma história pode ser assombrador. O segundo episódio de Life is Strange (Multi) trouxe isso de um jeito que me atingiu de maneira imensurável.
Em Life is Strange, a personagem principal tem o poder de voltar no tempo e salvar vidas. Ainda assim, é aterrorizante visualizar pessoas queridas morrendo.

Da mesma forma como fazer uma amizade envolve tempo e dedicação, conhecer um personagem virtual por muitas horas cria um certo vínculo. Saber que sua vida está em suas mãos e que qualquer deslize pode mudar o restante da narrativa é muito diferente de simplesmente reiniciar o jogo e tentar novamente. Sem burlar o sistema, aceitei o final trágico que dei ao personagem que se suicidou e resolvi encarar os fatos: teria que fazer o mesmo na vida real, se estivesse em situação semelhante. É a vida aprendendo com os games.

Viva a morte

Apesar de causar certo incômodo, a maioria dos jogadores concorda que morrer em um game é necessário. Seja para aprender com o próprio erro ou para encontrar um desfecho para uma história, ela nos mostra que tudo continua e que a vida sempre vai existir, seja ela digital ou não.

Em tempos onde Bloodborne (PS4) e Dark Souls (Multi) trazem mortes rápidas e imperdoáveis, é impossível que não relacionemos o conhecimento adquirido com o jogo com as dificuldades impostas na vida real. Se há anos a mídia tanto realça erroneamente as influências da violência virtual no perfil social de uma pessoa, é preciso que entendamos o bem que os games podem trazer no seu amadurecimento e nos benefícios que eles trazem a longo prazo. E se grande parte do mérito existe através das mortes, que elas sejam celebradas.

Revisão: Alberto Canen
Capa: Jean Bohlen


Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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