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Análise: Soul Gambler (PC) é uma aposta certa nos jogos brasileiros

A literatura ganha vida e sua índole será testada quando a sua alma for o preço de suas ações nesta profunda aventura visual feita por brasileiros.

Uma coisa que todo estudante de ensino fundamental e médio sofre no Brasil é criar gosto pela literatura. É claro que existem aqueles que acabam desenvolvendo interesse pela arte da escrita e da leitura, mas a grande maioria, criada na base da ação, do dinamismo e do fluxo rápido da informação, não consegue ter prazer em encontrar páginas e mais páginas de texto bruto e contínuo, sem imagens. Talvez seja culpa do início brusco da literatura que temos, talvez apenas estejamos mal-acostumados, mas uma coisa é certa: se todos conhecêssemos a literatura da forma que Soul Gambler (PC) nos apresenta, o problema poderia ser solucionado.

Todo mundo tem um preço

Soul Gambler coloca o jogador sob controle de Fausto, um homem comum, em um emprego comum, com uma vida comum. É bem fácil se identificar com o personagem, já que ele tinha grandes expectativas para a fase adulta, mas acabou algemado à rotina que domina a grande maioria dos seres humanos. Contudo, algo inesperado acontece com ele em uma volta para casa que tinha tudo para ser como qualquer outra: lhe surge a oportunidade de ter o que quiser, contanto que estivesse disposto a pagar com sua alma.
Inspiração em cadeia: a trama de Soul Gambler foi inspirada no clássico da literatura alemã Fausto, por Johann Wolfgang von Goethe, que narra a história do sábio Henrique Fausto e seu conflito entre poder obter todo o conhecimento do mundo e sua índole ao ser tentado pelo demônio Mefistófeles para lhe dar tudo o que quiser em troca da sua alma.

Contudo, mesmo a história de Goethe não é totalmente original. Seu protagonista foi inspirado em uma figura real, o mago, alquimista e astrônomo Johann Georg Faust que viveu no fim do século XV. Diversas lendas circundavam a vida de Faust relacionadas aos seus dons que eram atribuídos a um “pacto com o diabo”, além de sua morte misteriosa e brutal que, segundo o reformador alemão Philipp Melanchthon, parecia ter sido obra de um demônio. Bem, depois que o próprio ícone da reforma protestante, Martinho Lutero, o designou como “instrumento do demônio”, ficou difícil não se popularizar a lenda de seu envolvimento com o senhor das trevas.
A vida de Fausto toma um rumo totalmente inesperado quando Mefistófeles surge com a oportunidade de fazer com que a vida insatisfatória dele fuja dos trilhos e engate numa onda de sorte e bons frutos, com tudo isso custando apenas parte de sua alma. Agora, vale a pena sacrificar algo eterno como o seu espírito por uma felicidade passageira e efêmera? Bem, isso não depende somente do personagem, mas de você também.

Quanto vale sua alma?

Faça sua decisão. Sele o seu destino.
Soul Gambler possui uma jogabilidade um tanto quanto peculiar. É uma narrativa em estilo história em quadrinhos interativa, ou seja, permite que você interfira nas ações do personagem para mudar o desfecho da trama. Todavia, não confundam com o estilo point-and-click, onde você interage com o cenário; aqui seu único poder é de tomar decisões por Fausto. Isso torna o jogo ligeiramente maçante se você esperava um grau maior de interação, então fica a dica para a produtora nos próximos jogos do gênero.

A seleção de atributos ocorre
de forma inesperada.
Contudo, não são só suas escolhas que interferem no desenrolar da história. Logo no início do jogo, você deve distribuir alguns pontos de atributos para o seu personagem, no estilo RPG clássico. Os atributos são Saúde (que define sua força, resistência e vigor), Manipulação (definindo seu nível de persuasão), Inteligência (acrescentando a sua capacidade intelectual) e Carisma (fazendo do seu personagem mais querido, sendo semelhante ao segundo atributo em alguns casos).

A escolha da distribuição de pontos será um fator determinante na trama pois as mesmas decisões podem ter desfechos diferentes de acordo com a sua capacidade. Se tiver um alto grau de Manipulação, sua tentativa de convencer alguém será bem sucedida, mas se estiver baixo, o tiro pode sair pela culatra e você acabar se submetendo ao outro personagem. Os valores são praticamente estáticos, sendo raras as situações em que eles se alteram, então a escolha nos atributos é muito importante no princípio. Ainda assim eles podem se alterar, mas pelo preço certo.

O principal atrativo - e que dá nome ao jogo - é que, após realizar um pacto, você ganha o poder de interferir com a realidade, podendo alterar o desfecho de determinados eventos ao seu bel prazer. Você pode aumentar seu vigor físico, seu carisma, ou mesmo conseguir atrair a mulher que quiser. Contudo, isso tudo tem um preço: fragmentos da sua alma. Até que ponto os seus desejos compensam sacrificar uma parte tão íntima de si? Ironicamente, você pode ficar mais tentado a isso do que imagina.

O poder em suas mãos

Quanto custa a
sua integridade?
Enquanto o título não apresenta um alto grau de interatividade, ele decerto serve como alimento para o pensamento. Sua trama coloca o personagem sob diversos conflitos morais, deixando-o entre o caminho mais tortuoso e o mais acessível, a decisão entre o certo e o fácil, e embora pareça uma escolha fácil quando se leva em conta a sua própria índole, as situações que Fausto se coloca (por suas decisões) muitas vezes vão te fazer pensar se não compensa colocar um preço sobre sua própria alma.

Por essa capacidade de escolha, o final da história depende somente de você. A cada jogatina, escolhendo opções diferentes, poderá ver diferentes vertentes de uma mesma trama e perceber que, enquanto o destino não rege a sua vida, as vezes precisamos passar por certas provações para evoluir. Com isso, o jogo possui diversos finais diferentes dependendo apenas da sua sabedoria ao usar um recurso limitado - que é sua alma.

É curto, mas te coloca
para pensar.
Infelizmente, se você pegar o jogo para ir do começo ao fim, pode acabar terminando a trama em menos de duas horas. Não que isso seja um grande problema, tendo em vista que outros jogos excelentes como Shovel Knight podem ser concluídos nesse mesmo tempo, além de que o próprio jogo pode ser reiniciado para ver mais possibilidades da trama, mas deixa no ar que o jogo tinha ainda mais potencial.

Eu sei o quão difícil é fazer uma história que depende das decisões do jogador. É como escrever três ou quatro textos e no final só ter um, mas essa temática podia ser muito mais explorada e estender ainda mais a vida útil do título. O conflito moral que se enfrenta a cada decisão é um dos maiores atrativos do jogo, e deixar isso cada vez mais complexo e turvar a tênue linha entre o certo e o errado é uma oportunidade única. Talvez no futuro tenhamos mais capítulos ou oportunidades, mas o jogo por si só é bem completo. Só poderia superar os 100%.
Corta pra mim: segundo os desenvolvedores do jogo, até o final do ano deve ser lançada a versão Director’s Cut de Soul Gambler, uma edição com mais conteúdo e com pistas de uma possível continuação. Quem já adquiriu o jogo terá a possibilidade de atualizar para a nova versão gratuitamente, então pode ficar tranquilo e jogar agora mesmo!
E falando em porcentagens, se você é fã de troféus e conquistas, saiba que Soul Gambler possui uma ala dedicada para você. Com 24 conquistas desbloqueáveis, você nunca vai conseguir pegar tudo em uma só partida, precisando testar as muitas vertentes da trama para dar prosseguimento. Isso aumenta o fator replay já existente no jogo e vai colocar em teste a sua mente para conseguir decifrar cada desafio.

Uma aposta certa

Desenvolvido por brasileiros, o título que oferece a opção de se jogar completamente em português dá orgulho para o cenário nacional, sendo fácil encontrar jogadores do exterior que apreciaram o game. Com uma abordagem única e interessante da literatura clássica alemã, os quadrinhos interativos são uma maneira peculiar e divertida de se criar gosto pela leitura, uma adaptação que mistura jogos, escrita e aprendizado.


Seus poucos pontos negativos são compensados pela ampla gama de opções e história envolvente. Se você não é muito fã apenas de ler e esperava mais interatividade, pode não gostar muito, mas dê uma chance. Você pode testar o primeiro capítulo no site oficial antes de se aventurar na versão completa, então por que não tentar? Vale a pena ver esse trabalho que prova que o produto nacional também pode ser muito bom, pode apostar sua alma nisso.

Prós

  • Uma boa abordagem da literatura atualizada para o presente;
  • A variedade de opções permite várias jogatinas sem enjoar;
  • Os testes morais são envolventes e permitem fazer uma autoanálise;
  • As conquistas estendem ainda mais o fator replay;
  • É material 100% brasileiro, pode ser jogado em português e muito bem feito.

Contras

  • A trama pode ser concluída em poucas horas;
  • Não poder interagir com o cenário reduz um pouco a diversão.
Soul Gambler — PC —  Nota: 8.5
Revisão: Marcos Silveira
Capa: Daniel Machado

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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