Analógico

Mass Effect e a ficção científica nos jogos

Não é de hoje que ficçoes futuristas figuram como uma das temáticas de maior sucesso. Amparados por livros, filmes e verdadeiros universo... (por Unknown em 11/10/2013, via GameBlast)

Não é de hoje que ficçoes futuristas figuram como uma das temáticas de maior sucesso. Amparados por livros, filmes e verdadeiros universos expandidos criados pela comunidade interessada, fazendo a cabeça de muita gente. Entretanto, assim como a nossa noção de futuro, o gênero também precisa modernizar-se. Se antigamente carros voadores, salas com computadores gigantes e vídeo-conferências eram vistos como uma realidade distante, hoje muito disso já virou passado. Assim sendo, é natural que de quando em quando surja uma nova obra fundamental, elaborada sobre os mais modernos preceitos científicos para preencher este vazio. Nesta década, esta chama-se Mass Effect.


O funcionamento das obras de ficção científica é relativamente simples. Diferente daqueles gêneros mais distantes, de fantasia espacial, a ficção científica trabalha em um certo limiar do conhecimento humano, mostrando coisas que podem não existir na prática mas que mostram-se suficientemente próximas da nossa realidade para soarem críveis. Na televisão, obras como Fringe e Avatar são dois bons exemplos para tratar do assunto.

Em Fringe, Dr. Bishop trabalha em uma divisão científica altamente experimental e conceitos extremamente avançados de física são usados como justificativa para todo acontecimento bizarro. Já em Avatar temos uma sociedade devastadoramente humana invadindo um planeta distante em busca de um recuso mineral caríssimo. Curiosamente, este mineral, embora explique o conflito central do filme, é totalmente deixado de lado em prol de uma metáfora sobre a colonização e nosso comportamento civilizatório destrutivo. Percebeu uma constante nas duas obras? De modos diferentes elas se mostram precisamente humanas, seja no conhecimento, seja no comportamento.

A ganância é um traço constante nas obras
Como resultado dessa breve – e verdadeiramente simplista – análise, a primeira ideia que temos é que, por mais ficcional que um universo seja, ele deve ser humano suficiente para ser crível, o que nos leva ao segundo ponto-chave: a ficção em si.

Tratar de conflitos e aspectos humanos é algo que existe em uma enorme diversidade de gêneros. Todos nós sabemos que a grande graça da ficção é ver aqueles apetrechos tecnológicos que parecem incrivelmente realistas, eis a jogada magistral. Inventar uma super arma, poderes mutantes e afins é sempre muito fácil, e nunca garantiu a nenhuma ficção científica o mesmo impacto que falar de simples câmeras na obra 1984, de George Orwell. A questão aqui não está em qual é a tecnologia, mas em como você a aborda, isso faz toda a diferença.

De modo resumido: estamos tão habituados com certas coisas que temos um pensamento absolutamente viciado. É difícil percebermos o quanto somos dependentes de nossas engenhocas, por esse motivo, também não percebemos o enorme impacto que estas exercem sobre o mundo à nossa volta. A falha de muitas obras é exatamente mostrar grandes apetrechos tecnológicos mas que soam incrivelmente destoantes da realidade social a sua volta.

Os Geths são um resultado direto da tecnologia em Mass Effect
Em duas breves proposta: tente imaginar como seria um mundo onde nossa sociedade fosse exatamente igual, mas sem computadores. Impossível, correto? A questão aqui é simples. Sem computadores nosso mundo atual seria inviável. Muitos trabalhos não existiriam, este site não existiria, este texto não existiria. Um único, e relativamente simples objeto, mas que na realidade agrega um enorme peso social. Imagine então uma máquina de teletransporte.

Como segunda proposta criativa, precisamos pensar na temporalidade da obra. Dias em nosso pequeno mundinho possuem 24 horas. Para a maior parte do planeta (incluindo civilizações que foram pilares de nossa cultura), estas horas são divididas em períodos de maior e menor luminosidade, que se dividem pelas estações e pela noção de dia e noite, ciclicamente. Assim sendo, todo nosso sistema legal e nosso vocabulário foi construído para tratar da vida na Terra. Afinal, se nossos dias tivessem 18 horas, dedicar 8 horas de seu dia ao trabalho não faria o menor sentido, assim como falar em dias no espaço só pode ser feito de um modo comparativo aos dias do planeta Terra. portanto, a própria noção de tempo para um povo com um planeta de órbita menor pode ser radicalmente diferente.

Após este breve panorama, podemos agora começar a abordar um pedaço do que é Mass Effect.

Uma trama inteligente

Ambientado no ano de 2183, Mass Effect apresenta ao jogador um universo interessante, composto por uma coletividade de sociedades alienígenas estabelecidas em uma espécie de confederação galáctica. Nesta realidade, são comuns viagens espaciais, escudos de energia, motores de fusão, armas energéticas e outra infinidade de apetrechos que fariam qualquer geek feliz. ainda assim, todos esses objetos e conceitos são suficientemente próximos dos paradigmas atuais de nossa ciência e de qualquer livro do Stephen Hawking.

Tão próximo para o jogador quanto os anos 2050 para alguém de 1900, a primeira grande sacada do enredo é colocar o jogo menos de duzentos anos no futuro, garantindo assim uma margem segura para adaptar nossa tecnologia atual aos mesmos padrões. Podemos notar no design dos equipamentos que os computadores, as interfaces e tudo o mais apresentado é baseado em propostas já elaboradas de design para aparelhos das próximas décadas.


Além do contexto tecnológico, tais sociedades futuristas lidam com conflitos próprios da natureza social humana. Guerras, fome, pobreza, disparidade social, preconceito… Bem como amor, amizade, comércio, justiça. De modo simples, a trama de Mass Effect sintetiza em uma macro-estrutura uma pequena extensão do desenvolvimento humano. Não podemos garantir que o significado de amor seja o mesmo nem para dois irmãos, mas ainda assim a ideia por trás da proposta é significativamente fácil para acreditarmos que possa ser assimilada por outras raças.

O mesmo pode-se dizer de comércio. Ainda que nem toda sociedade humana trabalhe com o conceito de capital, é fácil entender que entre povos de origens diferentes, o valor de troca de determinadas mercadorias é relativamente dependente das necessidades de cada povo. Assim sendo, o que para uns vale muito, para outros vale pouco. Portanto, seria necessária uma ferramenta de mediação de valores, função esta atribuída à moeda.


Por último (nesta micro-abordagem, visto que o assunto poderia ser tema de um doutorado), podemos falar sobre o inimigo comum. Como já tratamos no Top 10 de fins do mundo, a ideia de extinção é uma constante da raça humana. Filosoficamente, este pensamento, oriundo de nossa própria mortalidade, pode ser também correlacionado com qualquer outra espécie de seres vivos se assumirmos que tais outras espécies inteligentes não são imortais.

Assim, a ciência de sua própria mortalidade garante que deva existir entre eles algum tipo de ideia sobre o fim da existência. Portanto, nada mais unificador que criar um inimigo que ofereça perigo não somente à raça humana, mas a todos os outros seres do universo, criando a ameaça de uma extinção em massa provocada por seres incompreensivelmente superiores, ou seja: aliens, no sentido mais puro do termo.

Um ingrediente secreto

Curiosamente, por mais bem elaborado que esteja o enredo de Mass Effect, está faltando algo que é crucial em toda boa ficção. Como já vimos acima, grande parte da graça de uma obra está na adaptação tecnológica e no impacto social desta. Quem jogou Mass Effect sabe: ainda que o jogo seja grandemente embasado cientificamente, a existência de Warp Gates, Biotic Energy e outros grandes elementos dentro da trama encontram-se fora dos limites de nosso conhecimento científico.

Portanto, como suporte unificador da trama, temos tradicionalmente um elemento X, algo que é totalmente fictício mas serve para dar a liga entre as coisas e dar aquele empurrãozinho que nossa tecnologia supostamente precisaria para chegar no nível desejado para a obra. Estamos falando agora do Element Zero.


Na trama de Mass Effect, Element Zero é o nome dado a um material raríssimo descoberto pela humanidade no século XXII. Este elemento tem a capacidade de, quando submetido a correntes elétricas, liberar energia escura, uma forma de energia diretamente relacionada a dilatação universal (energia esta que já é discutida pela nossa ciência), aqui utilizada para aumentar ou diminuir a massa de qualquer objeto em seu campo de ação, permitindo assim desde a manipulação gravitacional e a dobra espacial, até o fortalecimento de ligas metálicas e a utilização de todas aquelas habilidades bióticas espetaculares dos personagens da série.

Traduzindo em miúdos, este suposto elemento – e a ficção vai até aqui – é utilizado para criar energia negra (uma das mais discutidas teorias no mundo da física), que, por sua vez, seria utilizada para criar fenômenos quânticos, que possibilitam a viagem sideral (também já discutida e teorizada) e as habilidades especiais dos personagens. Como vemos, a função do Element Zero na trama é similar à função do mineral flutuante no filme do Avatar. Ele serve como catalisador, justifica muita coisa e fica suficientemente no plano de fundo para não ter sua credibilidade colocada em foco. Ele permite a nossa tecnologia o empurrão que falta para chegar no que o jogo propõe, e sobre este elemento ficcional, todo o resto é quase física pura.

Adaptando-se à jogabilidade

Eis um dos maiores problemas com obras de vários gêneros, a dissonância ludo-narrativa. Como já discutida em outro texto, esta dissonância ocorre quando elementos da jogabilidade contradizem a proposta maior do universo do jogo. Quando seu herói caçador de dragões é impedido de avançar num corredor pela existência de uma simples cadeira bloqueando o caminho, e afins. No caso de Mass Effect, um dos maiores cuidados foi empregado na justificativa de cada elemento do jogo.

Além da ação tradicional, de poder hackear sistemas elétricos e computadores, e de todas as escolhas morais, uma grande ênfase do jogo é dada à exploração universal. Tendo sua nave, a SSV Normandy, como hub e uma única grande cidade como localidade-chave, o jogo garante ao jogador a possibilidade de viajar a inúmeros planetas. São apresentadas detalhadas explicações sobre cada corpo celeste encontrado no caminho, detalhes como a história e composição de cada um, assim como a possibilidade de descer naqueles que contenham anomalias a serem investigadas. Sabiamente, o número de planetas a serem explorados é tão grande que a maioria dos jogadores não se dá ao trabalho de visitar todos, assim garantindo um bom senso de vastidão ao universo da série.


No aspecto da continuidade, outro grande feito da série foi introduzir de modo revolucionário o senso de existência permanente. Tradicionalmente, terminar um jogo e pegar o capítulo mais novo da mesma série significa abdicar de armas e equipamentos para começar tudo do zero. Em Mass Effect não. Aqui existe todo um sistema de importação de saves para garantir ao jogador que ele esteja continuando a aventura e não mudando de jogo. Ainda que muito de seu equipamento seja perdido – com algumas das melhores justificativas do universo, devo dizer – você mantém parte de suas habilidades, sua aparência, sua história e, mais importante, suas realizações. Deste modo, o destino que você decidiu a cada personagem é respeitado. Personagens mortos permanecem mortos, e por ai vai. Isso garante ao jogador um senso de pertencimento à obra. O seu personagem não reflete apenas um jogo, mas sim o seu jogo, as suas escolhas, o seu Mass Effect.

Curiosamente, o maior triunfo da obra seja talvez sua grande falha. O jogo se deu tanto trabalho para estabelecer as próprias regras que, quando estas são subvertidas ao longo da série, o sentimento de frustração é um tanto desolador. Em primeiro lugar, podemos notar que o primeiro título da série trabalhava mais com elementos de RPG e customização, enquanto os títulos seguintes mostravam-se mais orientados à ação. Para justificar esta mudança foram necessárias também adaptações de enredo e equipamentos. Dentre as mudanças envolvidas, uma das mais estranhas foi perceber que as armas de energia do primeiro jogo passaram a necessitar de balas para funcionar. Como explicar isso? Será que elas involuiram?

Aqui a justificativa caiu bem.  Armas de energia sobreaqueciam demais, e, portanto, foi desenvolvido para elas uma espécie de clip de refrigeração universal, compatível entre os mais variados modelos de armas que evita o sobreaquecimento do equipamento. É, não são balas… são clips de refrigeração. Ok, até que passa. Vamos aos problemas realmente negros.

No canon de Mass Effect, é dada uma importância ímpar ao Conselho Universal, responsável pela mediação e unificação das diferentes raças. Em determinado momento da série, é imposta ao jogador uma escolha que pode fazer toda a diferença na existência deste conselho ou não. Infelizmente, assim como outras escolhas da série, o resultado da sua escolha torna-se um tanto irrelevante, visto que a decisão, surpreendentemente, não influencia em grande coisa no enredo.

De modo semelhante, é dada ao jogador a possibilidade de escolher o embaixador responsável pela humanidade. Do mesmo modo, sem muita razão aparente, a escolha é ignorada e o personagem que assume o cargo é sempre o mesmo. Este tipo de situação se repete diversas vezes durante a série e, para uma série que estabeleceu uma linha de ficção tão magistral, é incrível que as maiores falhas de enredo estejam na parte humana do título.

Ainda assim, no que tange a ficção científica, é inegável, Mass Effect apresenta uma jogabilidade realmente condizente com o universo proposto.

Em linhas gerais

Mass Effect é um marco. Não somente nos jogos ocidentais mas em todo o universo de ficção científica. Não nos demos conta, mas pela primeira vez tivemos um universo ficcional altamente desenvolvido interativo. Ainda que possua muitos problemas (que soam mais como problemas de natureza comercial, como prazos e limitações por parte de mídia), a série representa um grande avanço para o gênero da ficção. Se antigamente era preciso que histórias fossem fechadas para que estas garantissem sua coesão, Mass Effect estabelece uma nova proposta de narrativa guiada, usando das melhores técnicas literárias e teorias sobre jogos para desenvolver uma experiência altamente futurista, mas ainda realista e altamente pessoal.

Indo mais além, se fosse para resumir tudo em um momento: o começo de Mass Effect 2 é uma obra prima que sintetiza tudo que há de melhor na série. Se fosse para apontar os momentos mais geniais da ficção científica, ou mesmo da história dos jogos, sem dúvida este estaria no Top 10.


Jogou a série? Gostou? O espaço abaixo é seu. Não jogou? Ta perdendo tempo.

Revisão: Samuel Coelho
Capa: Sybellyus Paiva

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google