Jogamos

Análise: Toren (PC/PS4) é uma obra de arte que nos dá orgulho de sermos brasileiros

Desenvolvido pela Swordtales através de um financiamento da Lei Rouanet, Toren tem uma bela história com tom artístico incrível.

Que o mercado brasileiro de games está começando a aparecer, não podemos negar. O GameBlast mesmo é vitrine para muitos desses títulos independentes que são produções nacionais de qualidade média/alta, com homenagens dignas à nossa cultura e/ou a jogos clássicos que remontam à infância dos produtores e, claro, de muitos de nós. No período de um ano, não faltaram exemplos como Phoenix Force (PC/Mobile), Aritana e a Pena da Harpia (PC), Cangaço (PC) e Tormenta: O Desafio dos Deuses (PC) como representantes nacionais de games independentes.


Entretanto, a maioria desses jogos foi produzida através de arrecadações voluntárias como o Kickstarter, ou então através de investimentos dos próprios desenvolvedores através de suas recém-criadas empresas. É aí que chegamos a Toren (PC), um jogo de aventura e puzzles nacional com uma produção de quatro longos anos, dos quais, mais de um foi percorrido sozinho por seus quatro produtores, que conseguiram um financiamento através da Lei Rouanet de incentivo à cultura logo depois. O jogo pode ter suas falhas, mas representa um grande passo no mercado brasileiro de games e aqui vocês vão descobrir o porquê.

Uma história simples, mas profunda

Toren possui um enredo absurdamente simples, aparentemente. Uma menina nasce presa em uma torre e descobre já cedo que a sua missão de vida é subir até o alto dessa torre, que termina no céu. Ela (e você também enquanto joga) não sabe exatamente o motivo pelo qual tem que fazer isso, mas faz mesmo assim, descobrindo tudo que aconteceu e os porquês da história ao longo do caminho.

Parece simples demais e realmente é. Entretanto, o que Toren economiza em enredo, compensa em narrativa. A história não é explicada de forma clara e óbvia, não existe um tutorial básico e nem muito menos um momento no qual algum sábio ancião conta a história toda de forma organizada e clara. Você é a “Criança da Lua”, uma(s) menina(s) que nasceu sem saber nada sobre o seu destino e vai descobrir sozinha como superar seus obstáculos. Além de uma forma bem interessante e diferente de descobrir isso, você ainda ganha uma lição a aprender: agir sozinho, enfrentar seus medos e superar os desafios. Clichê? Pode até ser, mas coube muito bem no estilo do jogo.

Lembrando o estilo de Shadow of Colossus (PS2)  e Ico (PS2), o jogo não possui praticamente nenhum diálogo e as falas que lemos ou “ouvimos” são em formato de metáforas ou contos picados sobre algo que já ocorreu, explicando os motivos pelos quais estamos ali. Dessa forma, o jogo te induz à interpretação, não entrega tudo prontinho como é comum hoje em dia. O que torna a investigação das nuâncias do game bem mais cativante e instigante.


Cuidado artístico de botar inveja

Outro ponto interessante neste novo game indie é o seu visual. Com traços que lembram em vários momentos Journey (PS3), o já citado Shadow of Colossus e até jogos da franquia The Legend of Zelda, Toren é belíssimo. Em seus detalhes, é possível notar diferenças nas construções, modificações claras do tempo e mudanças no clima que influenciam a paleta de cores utilizada.

O design dos mapas também tem uma profundidade tão interessante quanto a narrativa da história. Com missões paralelas que envolvem o aprendizado da Criança da Lua através do seu desenvolvimento, cada mapa possui caractarísticas próprias que são passíveis de serem interpretadas de acordo com a lição a ser aprendida pela criança — um cuidado muito interessante que complementa a aventura de forma belíssima, mais uma vez, abrindo espaço para múltiplas interpretações e lições.


Com tudo isso, o ponto mais notável do visual do jogo é o desenvolvimento da(s) protagonista(s) através do desenrolar da história. Você começa jogando literalmente com um bebê de aparente um ano de idade ou um pouco mais que isso. Ao longo da história, mudanças sutis vão ocorrendo com a criança, até que ela vira uma guerreira, pronta para cumprir sua missão. Aí temos mais uma lição que o jogo pode passar: o impacto do tempo e do aprendizado em nossas vidas, algo muito sutil mas, ao mesmo tempo, impactante.

Como se não bastasse, a trilha sonora do jogo serve como moldura para todo esse incrível visual e detalhismo presente no título. Sempre em tons melancólicos ou épicos, a trilha se arrasta ao longo dos degraus da torre e se agita ao encontrarmos perigos. Também se modifica ao longo das estações e da um gostinho a mais ao chegar no final da jornada. A relação de som e imagem, e como isso tudo nos afeta enquanto jogamos, vale a pena ser experienciada, de preferência, sozinho.


Jogabilidade certeira, mesmo com deslizes

Deixando um pouco a beleza e cuidado artístico do jogo de lado, a jogabilidade de Toren encontra alguns defeitos. Primeiramente o jogo não possui um nível de dificuldade considerável, mantendo-se praticamente em uma curva de dificuldade quase que reta até o seu final. Notem que falei “quase”, pois mesmo que com pouca variação na dificuldade ao longo da aventura, ela ainda está lá.

Além disso, mesmo que seus controles funcionem muito bem no PS4 ou em um controle utilizado no computador, seus comandos através de mouse e teclado são falhos. Tamanha a diferença entre controles e teclado fizeram os próprios produtores indicarem que o jogo seja jogado através de controles, mesmo que no computador. Isso pode tornar a aventura um pouco frustrante às vezes, quando o jogador não consegue passar de determinado obstáculo por uma imprecisão do controle, não por falta de habilidade. 

Fora isso o jogo funciona extremamente bem, com movimentação fluida e animações interessantes. Elenão possui barra de vida ou níveis a serem alcançados, não é dividido em fases e nem possui itens colecionáveis ou portas secretas ao longo do caminho com easter-eggs ou coisas do gênero. Ele é todo uma única aventura, simples e complexa ao mesmo tempo, rasa ao primeiro olhar, mas profunda aos que se arriscam na interpretação. Sua jogabilidade e ritmo representam isso ao longo das missões que nos são dadas, missões essas tão sutis que muitos podem pensar que nem começaram a jogar ainda.



Quando tudo começa a ficar ainda melhor

Outro ponto consideravelmente negativo em Toren é o tempo de aventura. Pouco mais de duas horas são o suficiente para um jogador ávido acabar sua aventura. Isso não chega a ser frustrante, principalmente pelo fator replay instigante e pelo final belíssimo, digno de ser visto várias vezes, entretanto, o jogo poderia ser um pouco maior, talvez com mais andares ou coisas a se fazer ao longo da subida da torre. 

Com um tempo de jogo tão curto, muitos podem, inclusive, não jogá-lo por achar o título curto demais. Volto a frisar que a profundidade da experiência enquanto se joga é mais importante que as horas que levamos jogando-o. Como redator e jogador, posso afirmar de forma sincera que esse jogo, em algumas horas, me impactou mais com sua história simples do que vários outros depois de dezenas de horas a fio. 

Talvez esse seja exatamente o charme por trás de Toren. Ele é um jogo, mas não é para ser apenas jogado. É uma experiência interessante e instigante que nos dá um gostinho do que os desenvolvedores da nossa terra são capazes de fazer com o investimento certo.


Um pequeno passo para um jogo

Toren é divertido, sereno e absolutamente uma experiência incrível. Sua sutileza ao apresentar a história, o cuidado com os detalhes e a combinação ímpar da paleta de cores, visual e sons compensam os problemas rasos de controles, facilidade e curto período da aventura. Toren é um jogo para ser experienciado ao mesmo tempo que é jogado, pois éde interpretação subjetiva muito mais do que de resolução de puzzles.

Assim como em sua própria história, Toren é só a ponta de um iceberg que pode trazer muitas coisas interessantes por aí. A simplicidade e pretenção do título são legítimas e muito bem-vindas em um período no qual as grandes empresas formatam gêneros e trazem franquias anuais e o mercado brasileiro de games luta para mostrar o seu lugar ao país e ao resto do mundo. 

Com a Lei Rouanet de incentivo à cultura, podemos ter uma chance de ver muitas produções tão boas quanto Toren (e até melhores quem sabe) surgindo por aí. Ele pode ser aparentemente um pequeno jogo, um pequeno passo, mas na verdade possui potencial para ser um marco no desenvolvimento de games no país. Além disso, tanto com a origem do seu financiamento como também com as suas características enquanto jogo independente, o título mostra à sociedade a verdade: videogames são sim um tipo de expressão cultural e uma  forma legítima de arte. Acima de tudo isso, é um jogo muito divertido!



Prós

  • Narrativa profunda que foge do óbvio;
  • Visual impecável com atenção especial a cores e luz;
  • Trilha sonora interessante serve de complemento;
  • Possibilidade de experienciação subjetiva incrível;
  • Jogabilidade diferenciada;
  • Fator replay considerável.

Contras

  • Curto demais;
  • Controles falhos em alguns momentos;
  • Nível de dificuldade baixo.

Toren — PC/PS4 — Nota: 8.5

Revisão: Alberto Canen
Capa: Angelo Gustavo


Gilson Peres é Psicólogo e Mestre em Comunicação pela UFJF. Está no Blast desde 2014 e começou sua vida gamer bem cedo no NES. Atualmente divide seu tempo entre games de sobrevivência e a realidade virtual.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google