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Análise: Tormenta: o Desafio dos Deuses (PC) é uma tentativa ousada de sucesso

Entre acertos e erros, primeiro jogo do cenário Tormenta traz uma história boa de se acompanhar, mas um jogo ruim de se jogar.



Houve uma época entre os anos de 2001 e 2008 (que engloba toda a geração de consoles PS2/GC/Xbox/DC) na qual eu não pude ter um videogame novo porque minha família não tinha dinheiro e todo esforço financeiro era focado em bancar uma educação de qualidade pra mim. Nesse período, acabei conhecendo os RPGs de papel. Era um bom investimento porque, para começar a jogar, bastava apenas comprar uns livros de regras e conhecer um pessoal.


Durante esse período, um grupo de editores da saudosa Dragão Brasil, entitulado Trio Tormenta, formado por Marcelo Cassaro, J.M.Trevisan e Rogério “Katabrok” Saladino resolveu criar um mundo de RPG baseado em diversos materiais que eles já haviam escrito, em um cenário de fantasia medieval que ficou conhecido como Tormenta. Em paralelo a este movimento, Cassaro divulgava seu sistema de RPG, o 3D&T (em sua versão mais consolidada), um sistema de regras simples, que precisava de um único livro de dados de seis lados para ser jogável.

Goste você ou não de Tormenta e 3D&T, são inegáveis as portas que estes produtos abriram dentro do mercado brasileiro. Gente que nunca havia ouvido falar de RPG na vida, eu incluso, agora era capaz de obter conteúdo de fácil compreensão textual por preços na faixa de 10 reais em muitas bancas de jornal. Para entender o que isso representava na época, os poucos manuais de Advanced Dungeons & Dragons e do ainda bebê Dungeons & Dragons 3a edição traduzidos para o português custavam, quando barato, cerca de 80 reais. 10 reais era minha mesada na época e, por bastante tempo, metade dela ia para a Dragão Brasil.
Trevisan, Saladino e Cassaro, o Trio Tormenta
Meu interesse e modo de escrever sobre jogos em geral tem poderosa influência deste trio e, faça-se justiça, do excelente trabalho do Pablo Miyazawa a frente da Nintendo World e Pokémon Club (fiquei realmente feliz ao descobrir que ele voltaria a se dedicar exclusivamente ao mercado como editor-chefe do portal IGN Brasil). Meu interesse sobre game design foi alimentado pelas páginas de Dicas de Mestre e Turbleshooters que, mensalmente, surgiam nas Dragão Brasil. Meu interesse por fantasia se deve, em grande parte, ao maravilhoso cenário criado por Tormenta. Curiosamente, até o interesse despertado por ver videogames de forma mais crítica foi alimentado muitos anos depois por retweets ou recomendaçõs do J.M. Trevisan no Twitter.

Exatamente por isso que, quando o projeto Tormenta: o Desafio dos Deuses foi anunciado, senti necessidade de contribuir com aquilo. Não criei absolutamente nenhuma expectativa a respeito do jogo, mas agora que tenho uma situação financeira mais agradável, precisei ajudar de alguma forma aquele projeto a existir por tudo que o cenário — hoje, bastante diferente se comparado a época que o acompanhava freneticamente — e o esforço feito para que ele existisse a preços acessíveis significou um dia para mim.

À vaca fria

Existe um conceito popular no mundo dos jogos que diz que se você é capaz de retirar todos os aspectos de estética, level design, etc. do jogo e ainda assim torná-lo um brinquedo interessante, você faz um bom jogo. Bem, este não é o caso de Tormenta: o Desafio dos Deuses. O jogo é um beat’em up básico em 3D que nos dá a opção de controlar dois personagens: o guerreiro humano Samson e a elfa arqueira Selena.

A começar por eles, são dois personagens com os quais a empatia é baixa. Seus perfis são bem estereotipados para os padrões de Arton, o guerreiro grosso que quer ser o grande herói e a elfa arrogante de personalidade fechada. Não é o primeiro jogo do gênero com personagens assim, e seria algo a relevar se as suas mecânicas compensassem. Infelizmente, também não é este o caso. O jogo é vagaroso e pouco natural. A música e a dublagem (limitada a gritos dos protagonistas e inimigos) pouco contribuem para melhorar essa sensação. Na verdade, até pioram. Em um resumo simplista, é chato mover a espada e matar uns monstros.

Dado que Tormenta, em sua origem, já é um jogo, e o grande diferencial de o Desafio dos Deuses seria dar novas mecânicas compatíveis a videogames para o cenário, não tornar este diferencial agradável foi um erro grave. Tem bastante coisa bem pensada aqui, mas tudo vai por água abaixo se a qualidade é baixa quando começamos a ação de fato. Talvez um jogo de adventure, ou até mesmo um plataforma 2D fossem mais competentes, mesmo sendo menos ousados. Mas aí fica na teoria.

Nem tudo é ruim, pelo contrário

Reconheço que Tormenta: o Desafio dos Deuses tem diversos fatores formidáveis. A começar pelo level design, simples e competente. O jogo ensina o que deve ser feito pelas fases e pela estética. É fácil saber quais objetos são quebráveis e o que cada item coletável faz sem precisar pegá-los. O jogo nunca é desonesto, possui uma dificuldade agradável, chefes desafiadores e inimigos de diversos tipos, desde os grandões resistentes aos irritantes “goblinóides tacadores de pedra”.

O sistema de pontos, vindo do RPG, é inteligente e didático. Como em uma mesa de D&D, não dá para ser excepcional em tudo, então temos que conviver bem com nossas virtudes e defeitos, e o jogo trabalha isso bem. As regras de pontuação são todas muito bem equilibradas, algo esperado de uma equipe que tem como game designer alguém da excelência de Guilherme Dei Svaldi. Souberam adaptar bem uma linguagem de RPG “de mesa” para um ambiente completamente diferente.


A customização dos personagens e a compra de itens também é boa. Temos diversas armas e itens para comprar com o dinheiro que obtemos ao longo do jogo e, para não tornar o atributo carisma “apelão” (ele garante mais moedas e maior barganha), as lojas existem apenas em determinados pontos do jogo. Uma arma nova realmente faz diferença, já que possível vencer um mesmo inimigo com metade do número de golpes em comparação com uma arma imediatamente mais fraca.

Mas o roteiro é, sem dúvidas, o motor de vendas do jogo. Apesar dos protagonistas, o resto da história vale bastante a pena, exatamente o que esperamos do trabalho de alguém como Leonel Caldela, autor da Trilogia da Tormenta. A história tem impactos diretos com o mundo de Arton: chegamos a entrar diretamente em uma área de Tormenta! Ter contato direto com personagens históricos deste universo (os quais não darei spoilers para não prejudicar a experiência do leitor) e ver seu progresso realmente fazer a diferença no mundo é uma ótima experiência.

Uma tentativa que valeu a pena

Tormenta: o Desafio dos Deuses ousou fazer algo novo, um passo inédito para um cenário tão querido no Brasil. O jogo sofre de uma dicotomia perigosa: traz aspectos brilhantes dos RPGs de mesa, mas peca bastante no diferencial de levar isso para os jogos eletrônicos. Considero o jogo um passo importante para o cenário e não me arrependo de ter contribuído para isso. Tenho certeza que tem bastante bagagem para se aproveitar daqui e fazer um bom título. Infelizmente, não foi nesta tentativa.

Prós

  • Level Design competente e honesto
  • Sistema de RPG de mesa bem-adaptado
  • História ótima e impactante no cenário

Contras

  • Protagonistas pouco carismáticos
  • Mecânicas de combate vagarosas e pouco atrativas
  • Música e efeitos sonoros ruins

Tormenta: o Desafio dos Deuses — PC — Nota: 7.0


Revisão: Jaime Ninice
Capa: Felipe Araujo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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