Análise: HORSES convida o jogador a ser cúmplice do absurdo

Mais instalação artística do que videogame tradicional, a obra utiliza o desconforto para confrontar os limites do jogador.

em 18/12/2025

HORSES chega carregando um contexto que ultrapassa o próprio jogo. Disponível no PC via GOG, o título ganhou notoriedade após ser banido da Steam e Epic Games Store (plataformas conhecidas por aceitarem conteúdos adultos, experimentais e projetos de qualidade duvidosa). Esse histórico gerou curiosidade imediata e ajudou a construir uma aura de intriga ao redor da obra, levantando uma pergunta inevitável: o que exatamente poderia justificar esse tipo de exclusão?

Walking sim de rotina e degradação

HORSES pode ser definido como um walking simulator paradoxal. Ao mesmo tempo em que tenta empurrar os limites narrativos e temáticos do gênero, ele se apoia quase que inteiramente em sua forma mais básica: caminhar, observar e executar tarefas simples. Não há sistemas complexos, quebra-cabeças elaborados ou desafios mecânicos tradicionais. Tudo é deliberadamente contido.

Controlamos um jovem adulto que passa quatorze dias trabalhando em uma fazenda isolada durante o verão. A experiência é dividida nesses dias, cada um introduzindo pequenas variações de tarefas e aumentando gradualmente a sensação de estranhamento. No início, as atividades são mundanas, como colher legumes e seguir instruções diretas. Aos poucos, essas ações se encadeiam em situações cada vez mais perturbadoras.

O fazendeiro mantém “cavalos” — figuras humanas que usam máscaras de cavalo — e trata essa condição com uma naturalidade inquietante. O jogo nunca se apressa em explicar esse mundo, nem em justificar suas regras. A estranheza surge justamente da banalização do absurdo, e da forma como tarefas aparentemente simples passam a envolver ações explícitas que não posso descrever nesta análise, pois estas flertam com a degradação e quebram tabus morais que a maioria dos jogos nem sequer ousa tocar.

Cada dia termina antes de se tornar cansativo, e a progressão constante impede que a experiência se torne estática. O jogo não busca sustos, mas um acúmulo de tensão silenciosa que é construída a partir da normalização do que claramente não é normal.

Com uma duração de cerca de duas horas, a principal proposta é proporcionar uma experiência narrativa mais do que uma jogabilidade interativa profunda. Nossa presença neste mundo não é apenas uma observação; somos parte do desenrolar da história ainda que, em última instância, nosso controle sobre ela seja limitado. O jogo não é sobre decidir o destino da narrativa, mas sobre como reagimos ao que acontece diante de nossos olhos. O personagem que controlamos é mudo e suas respostas são dadas por meio de emojis — expressões simples que indicam aprovação ou desaprovação. Essas reações não alteram o curso da história, mas servem como um reflexo da nossa própria visão sobre os acontecimentos.

Cinema mudo e realidade distorcida

À primeira vista, o jogo não impressiona tecnicamente. Os gráficos são simples, com modelos pouco detalhados e ambientes visualmente contidos. Ainda assim, e paradoxalmente, esse é um dos pontos fortes do título. Aqui, a fidelidade gráfica não está ligada a realismo, mas à coerência com a proposta artística.

A estética remete a uma espécie de filme mudo e experimental, no qual o desconforto nasce mais da composição de cenas, do ritmo dos cortes e do uso do som do que de imagens explícitas. A direção sabe quando provocar, utilizando enquadramentos estranhos, silêncios prolongados e uma trilha sonora minimalista para construir tensão.

As sequências em FMV (Full-Motion Video - vídeos reais) se integram bem ao restante da experiência, tornando-se um recurso que amplia a sensação de realidade distorcida que o jogo tenta passar. O contraste entre os trechos interativos e os vídeos reais curtos criam uma quebra proposital, lembrando o jogador de que há algo “fora do lugar” o tempo todo.

Em um gênero no qual a interação é mínima, a apresentação se torna essencial. HORSES entende isso e utiliza sua estética de forma funcional, não para embelezar a experiência, mas para torná-la mais incômoda.

Longe demais?

A grande curiosidade que há em torno do jogo é a de entender se o conteúdo apresentado realmente justifica o banimento em múltiplas plataformas. A resposta, como quase tudo aqui, não é simples: ela depende do ponto de vista.

Como alguém habituado ao cinema de horror, dos filmes mais comerciais aos mais experimentais, HORSES não chega a se fixar na memória com a mesma força com a qual obras marcantes do gênero o fazem. Ele provoca, surpreende em alguns momentos pontuais, mas raramente ultrapassa o limite do impacto duradouro. Ainda assim, seria desonesto ignorar que certas imagens e situações pegam o jogador desprevenido, justamente por surgirem em um meio que costuma suavizar esse tipo de abordagem.

Nos videogames, o terror tradicionalmente empurra seus limites por meio do gore, da violência explícita ou do choque visual imediato. Aqui vemos um caminho diferente, no qual a violência não se resume ao sangue ou à mutilação, mas ao desconforto psicológico e à forma como o jogo coloca o jogador em situações de obediência, cumplicidade e silêncio, tratando de temas de natureza sexualmente transgressora e violência simbólica perturbadora.

A narrativa se constrói como uma reflexão sobre perda de inocência e trauma geracional, utilizando metáforas abrasivas que raramente são exploradas com frontalidade nos jogos. O conteúdo é adulto, se apresenta como tal e exige maturidade do jogador para ser absorvido. Ele não busca escandalizar pelo excesso, e sim provocar pelo envolvimento, e é aí que reside tanto sua ousadia quanto sua controvérsia.

Jogo por tecnicalidade

A experiência surpreende em momentos específicos, especialmente quando rompe com a expectativa do jogador. As imagens finais e as ideias que o jogo levanta contribuem para ampliar o repertório temático do terror nos videogames, mas não chegam a transformá-lo em algo essencial dentro do gênero. Ele provoca mais pela curiosidade que desperta do que pela força do conjunto.

Nesse sentido, HORSES se aproxima mais de uma instalação audiovisual do que de um videogame tradicional. Isso não o invalida, mas ajuda a entender por que ele parece existir mais como um experimento do que como uma obra plenamente realizada.

Ainda assim, é fundamental reforçar que, independentemente de sua eficácia como entretenimento, nenhuma obra deveria ser censurada, muito menos uma que tenta desafiar, narrativamente, os limites e convenções da mídia. O público deve ter o direito de adquirir o título e atribuir a ele o valor que desejar, sem que plataformas atuem como filtros morais. Impedir o acesso a experimentos como este é limitar a própria evolução do que os jogos podem ser.

O rastro do incômodo

É difícil ignorar que boa parte de sua notoriedade vem do contexto externo ao jogo. Sem o banimento e a aura de “obra proibida”, HORSES provavelmente seria recebido como um walking simulator experimental, voltado a um público adulto e interessado em narrativas extremas. Suas ideias são válidas, sua estética é coerente e sua abordagem é incomum nos videogames. Vale o preço para quem busca curiosidade, provocação e um experimento narrativo fora da curva, para além disso, não é uma experiência definidora do gênero. É um jogo que incomoda, cutuca e passa.

Prós

  • Proposta narrativa provocativa e incomum dentro dos videogames;
  • Estética coerente com a intenção artística;
  • Ritmo curto e bem delimitado, evitando desgaste da proposta.

Contras

  • Pode soar mais como um experimento conceitual do que um jogo completo;
  • Grande parte do seu valor reside na polêmica e na curiosidade, mais do que na qualidade da obra em si;
  • Para veteranos do horror experimental, o choque pode ser passageiro e não deixar uma marca duradoura.
HORSES - PC - Nota: 7.0
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo redator
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Matheus Oliveira
Entusiasta de games e cinema, sempre explorando novos gêneros e estilos enquanto acumula um backlog infinito. X e Instagram
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