O gênero shooter de extração tenta, há alguns anos, assumir o posto deixado pelos battle royales como o próximo grande fenômeno multiplayer. Mas essa promessa ainda não se cumpriu, especialmente nos consoles, onde nomes como Escape from Tarkov nunca chegaram. ARC Raiders surge justamente para preencher esse vazio, trazendo ao gênero o tratamento de uma produção triple A, com estilo, ambição e uma identidade própria.
Extração a todo custo
Analisar jogos estritamente multiplayer é uma tarefa complicada. Diferente das experiências off-line, em que há uma trajetória mais definida, os jogos on-line dependem totalmente da dinâmica entre jogadores. Cada partida é um espaço onde diversão e frustração se alternam, conforme decisões, sorte e habilidade.
Mas, antes de mergulhar em ARC Raiders, vale explicar o que é um extraction shooter. Nesse subgênero, cada jogador é lançado em um mapa compartilhado, geralmente, em zonas diferentes. Lá, enfrenta inimigos controlados por inteligência artificial e também outros jogadores humanos. O objetivo é explorar o cenário, coletar itens valiosos e, o mais importante, extrair do mapa com o saque intacto. Caso morra antes de escapar, tudo é perdido, exceto a experiência acumulada.
Essa estrutura cria tensão constante. Cada encontro com outro jogador se torna um dilema moral: cooperar ou eliminar? A linha entre aliados e inimigos é tênue, e qualquer hesitação pode custar caro. Essa incerteza é o que torna o gênero tão envolvente, um equilíbrio entre ganância e sobrevivência, entre confiança e traição.
Raiders
A história em ARC Raiders funciona como pano de fundo, oferecendo contexto suficiente para as ações dos jogadores, e isso é o bastante para dar sentido à jornada. No universo do jogo, robôs tomaram a superfície da Terra, forçando a humanidade a se refugiar no subsolo. Essa premissa simples, mas eficiente, explica a rotina dos jogadores: cada partida representa uma expedição à superfície em busca de suprimentos e equipamentos que sustentam a vida subterrânea. Cada peça de sucata recuperada pode ser usada para aprimorar bancadas, criar novos itens e fortalecer o personagem para a próxima incursão.
O contexto também dá vida aos inimigos. Embora possuam visuais robóticos simples, a brutalidade de seus ataques os torna genuinamente ameaçadores, tornando-se um lembrete visual e mecânico de por que a sociedade humana precisou se esconder.
Além disso, a ambientação reforça a estética única do jogo. Tudo em ARC Raiders transborda estilo: o visual retrofuturista, as roupas inspiradas em um retro punk industrial e a trilha sonora pulsante criam uma identidade marcante dentro do gênero. A direção de arte combina nostalgia e inovação, resultando em um mundo que parece velho e novo ao mesmo tempo.
Os NPCs vão além de simples vendedores. Eles também oferecem missões, muitas vezes básicas, como “eliminar um robô com uma granada incendiária”, mas que dão propósito imediato a cada expedição. Algumas dessas tarefas, no entanto, revelam fragmentos de história e ajudam a construir uma noção mais ampla do que restou da humanidade.
Entre inimigos…
Em um jogo onde tudo pode ser perdido, o combate precisa ser preciso o bastante para equilibrar risco e recompensa.
Decidir engajar outro jogador é uma escolha estratégica. Mais do que se preocupar com o inimigo, é preciso considerar o ambiente, pois cada disparo pode atrair as máquinas, que, em segundos, transformam um duelo tenso em um massacre. A todo momento, o jogador pesa terreno, distância, munição e armamento antes de se perguntar: “Vale a pena lutar?”.
Mesmo sendo divertido e intenso, muitas vezes o combate não compensa o risco. Quando tudo o que se conquistou em um round está em jogo, cada troca de tiros carrega um peso psicológico típico do gênero. A melhor abordagem, quase sempre, é atacar primeiro ou evitar o confronto completamente, aproveitando o caos ao redor.
Mas, inevitavelmente, nem sempre se é o caçador. Na maioria das vezes, o jogador é a presa. E, quando isso acontece, o sistema de defesa é justo, permitindo sobreviver a disparos longos com escudo cheio, recuperar-se e até planejar uma contraofensiva. De perto, a história muda, exigindo reflexos e precisão que definem o resultado. Um erro, e tudo que foi conquistado pode desaparecer.
Contra as máquinas, a abordagem é diferente. Cada tipo exige um comportamento específico: drones perseguem sem descanso, e desperdiçar munição neles costuma ser sentença de morte. Enfrentar inimigos maiores, por outro lado, é quase sempre um ato suicida, já que a estamina raramente é suficiente para escapar. Nessas situações, resta apenas aceitar a derrota.
…e amigos
A brutalidade das máquinas pode ser um lembrete constante de que ARC Raiders é um jogo sobre sobrevivência — mas também cria oportunidades inesperadas de solidariedade. No mapa Blue Gate, onde a densidade de inimigos é particularmente alta, é comum ver jogadores se ajudando instintivamente diante do perigo. Essa cooperação espontânea, muitas vezes silenciosa, nasce menos da empatia e mais da necessidade: em um mundo tão hostil, sobreviver é mais fácil em grupo.
Esses momentos de união forçada estão entre os melhores do jogo. Enfrentar máquinas ao lado de estranhos, sem saber se serão aliados ou traidores, gera uma tensão que poucos shooters conseguem reproduzir. Cada gesto de cobertura carrega uma desconfiança palpável. A qualquer instante, um parceiro pode decidir que sua mochila cheia de loot vale mais do que a parceria que vocês construíram em meio ao caos.
E, quando a traição vem segundos antes da extração, a frustração é genuína, mas também inevitável. É o preço de jogar um título que entende a natureza imprevisível da confiança humana.
O jogo oferece modo cooperativo para até três jogadores, transformando a experiência em algo mais coordenado, mas não menos caótico. Os confrontos entre esquadrões são longos e imprevisíveis, com tiroteios que escalam rapidamente de táticos a desesperados. Mesmo com aliados, o título nunca deixa o jogador relaxar completamente; a superfície continua sendo um campo onde cada passo pode ser o último, seja por um inimigo mecânico ou por uma decisão humana.
A experiência
A experiência em ARC Raiders é inevitavelmente pessoal. Nenhuma rodada é igual à outra, e o jogo se molda conforme as intenções de quem o joga. O que posso descrever aqui é a forma como o sistema reage às decisões e como, mesmo sem roteiro, ele cria histórias espontâneas dignas de um bom jogo single-player.
Antes de cada incursão, defino um objetivo — algo simples, que sirva de guia para não me frustrar caso tudo dê errado. No mapa Blue Gate, por exemplo, desci à superfície apenas para coletar frutas e evoluir meu animal de estimação na base. Escolhi o loadout gratuito: uma combinação aleatória de equipamentos, sem risco de perder itens valiosos.
Nos primeiros minutos, vejo outro jogador fugindo de um drone. Sem pensar muito, decido ajudá-lo. Ele sobrevive e parte sem dizer nada. Sigo meu caminho. Mais à frente, encontro outro jogador; faço um gesto de trégua, e ele retribui. Cada um segue sua rota, em silêncio, conscientes de que o pacto não duraria muito se o loot fosse bom o suficiente.
Após pegar os recursos que buscava, sou emboscado. Um confronto tenso e direto — até que as máquinas chegam. Por sorte, focam meu inimigo. Escapo por pouco, com munição baixa e respiração curta. No mapa, marco o ponto de extração mais próximo e corro até lá.
Escondo-me em uma casa próxima enquanto ouço tiros no horizonte. Outros dois jogadores aparecem, e o instinto fala mais alto: abrimos fogo juntos contra as máquinas que cercam o ponto. Quando tudo parece perdido, conseguimos extrair. A tensão não se desfaz. Nenhum de nós confia totalmente que o outro não puxaria o gatilho se tivesse mais tempo.
Cada partida é uma narrativa emergente, construída pelo equilíbrio entre ganância e sobrevivência. A frustração vem com frequência, mas o jogo a suaviza ao permitir que um item fique guardado com segurança (o “bolso seguro”), para não perder tudo de uma vez. É o bastante para tornar cada nova tentativa menos punitiva e mais estratégica.
No fim, cada rodada é uma história, às vezes trágica, às vezes heroica, mas sempre imprevisível.
Lutando por… sucata?
A experiência é mais envolvente na superfície do que no subterrâneo. Enquanto os confrontos e extrações criam tensão genuína, a gestão de recursos na base carece de propósito mais claro. Após algumas incursões bem-sucedidas, percebi que meu inventário estava cheio de itens cuja utilidade parecia duvidosa. É possível expandi-lo, mas, mesmo assim, ele rapidamente volta a lotar — e a sensação é de estar lutando por sucata, acumulando materiais sem um senso real de progresso.
Construir bancadas, fabricar armas e aprimorar equipamentos são mecânicas funcionais, mas sem grande profundidade. Quando a novidade se esvai, o ciclo de “lootear e armazenar” começa a perder o encanto. O jogo passa a depender exclusivamente da motivação pessoal do jogador para manter o ritmo.
O ganho de XP, apesar de lento, cumpre bem o papel de progressão, melhorando o personagem a cada ponto de habilidade gasto. Já os tokens para cosméticos servem como incentivo adicional, ainda que apenas para desbloquear visuais diferentes.
No fim, ARC Raiders é um jogo sobre esforço e recompensa — mas, entre a tensão da superfície e a burocracia do subterrâneo, é fácil sentir que o equilíbrio pende mais para o trabalho do que para o prazer.
Superfície e subterrâneo
ARC Raiders é uma experiência ambiciosa e cheia de estilo, que traduz bem a tensão e a imprevisibilidade do gênero de extração. A atmosfera retrofuturista, o design sonoro pulsante e os momentos de cooperação improvisada constroem partidas cheias de histórias únicas, onde cada extração bem-sucedida parece uma vitória pessoal. Quando o jogo funciona, ele é imersivo, recompensador e visualmente distinto dentro do gênero.
Contudo, a euforia da extração e a tensão do combate contrastam com a burocracia desinteressante da base subterrânea. O ciclo de "lootear e armazenar" rapidamente se torna uma luta por "sucata", em que o jogador perde o sentido de progresso. É um título que fascina pela forma e pela tensão, mas que precisa aprofundar seu loop de recompensas e senso de proposito para manter a comunidade a longo prazo.
Prós
- Atmosfera retrofuturista e direção de arte singular, com identidade forte;
- Sistema de extração que realmente gera tensão e histórias emergentes a cada partida;
- Combate dinâmico entre jogadores e máquinas, exigindo decisões rápidas e estratégicas;
- Momentos de cooperação espontânea entre jogadores criam experiências memoráveis.
Contras
- Progressão que perde impacto após as primeiras horas;
- Sistema de gerenciamento e inventário engessado, com recompensas pouco satisfatórias;
- Combate contra máquinas pode ser punitivo demais quando jogado solo;
- Falta de propósito no loop de coleta e upgrades após a fase inicial.
ARC Raiders - PS5/XSX/PC - Nota: 8.0Versão utilizada para análise: PlayStation 5
Revisão: Mariana Marçal
Análise feita com cópia digital cedida pela Embark Studios















