Dentre as inúmeras bandeiras políticas levantadas rotineiramente no Brasil, está a do movimento manicomial, cujos vieses social e sanitário, dentre seus objetivos, luta pelo fim da chamada lógica manicomial, que consistia na internação como maneira de excluir da sociedade aqueles que sofrem de transtornos mentais. Embora o Zeitglass seja um estúdio de jogos suíço, Sanatorium — A Mental Asylum Simulator, desenvolvido por eles, conversa muito bem com essa pauta.
Situado em uma versão retrodistópica dos anos 1920, o jogo propõe uma representação da rotina em um hospital psiquiátrico naquela época, período em que a prática médica ainda transitava entre métodos científicos emergentes e concepções arcaicas de tratamento. Por sua vez, o protagonista, um jornalista em declínio profissional e pessoal, recebe uma carta de sua tia informando ter sido internada no manicômio Castle Woods. Movido tanto por laços familiares quanto por um impulso investigativo, ele decide se infiltrar na instituição, assumindo falsamente o papel de um médico especialista.
Essa dissimulação não apenas impulsiona a trama, mas também cria um paralelo interessante entre o aprendizado do personagem e o do jogador, que, a partir de então, precisa compreender os fundamentos — por vezes contraditórios — da psicologia e da frenologia praticadas no sanatório. A aprendizagem mecânica e a construção narrativa se entrelaçam, fazendo com que o domínio das ferramentas de diagnóstico e tratamento se converta em metáfora para o processo de absorção e crítica dos saberes médicos da época.
A estrutura de jogo reforça essa duplicidade. O dia a dia dentro do manicômio se organiza a partir de uma rotina de trabalho rigidamente burocratizada. Cada dia de trabalho se inicia com a compra das cartas referentes a exames e terapias, que depois são utilizadas na análise das fichas dos pacientes. Nelas, aparecem informações básicas e sintomas que podem ser combinados com os exames adequados, levando a um possível diagnóstico.
O êxito clínico gera pagamentos e melhora a condição dos pacientes, enquanto falhas ou omissões podem agravar os casos. Esse sistema cria um ciclo de repetição que, embora mecânico, é tematicamente coerente, afinal, o trabalho de diagnóstico se transforma em um exercício de poder, em que o jogador, assim como o personagem, aprende a manipular discursos sob diferentes pretextos.
Entre um expediente e outro, o jogador também pode explorar as dependências do sanatório, recolhendo pistas e evidências que ajudam a compreender o que realmente se passa por trás da fachada do lugar, introduzindo uma tensão investigativa que serve para alternar um pouco com a rigidez desse cotidiano. Essa exploração é limitada — pelo menos nessa versão de teste —, mas dá ao jogo um tom de mistério que complementa bem o aspecto mecânico das tarefas diárias.
Além disso, essa brecha narrativa ajuda a consolidar uma atmosfera paranoica que traz consigo o tema do confinamento como espetáculo e vigilância, o que, indo um pouco mais longe na força sociológica do jogo, remete diretamente a uma leitura foucaultiana do hospital e da prisão como espaços de disciplina e normalização. A posição do protagonista como impostor acentua a ambiguidade ética do jogo: ele é simultaneamente observador e cúmplice, investigador e agente do sistema.
Tendo isso em vista, Sanatorium corresponde a uma experiência geral bastante interessante, com uma premissa sólida por trás. A questão é que, a nível técnico, nem sempre ela se mostra das melhores. Por exemplo, durante a minha jogatina na demonstração, eu me deparei em uma espécie de soft lock, que impediu o avanço da campanha independentemente de quais eram as minhas ações do dia anterior. Eu começava o novo dia no quarto e não conseguia sair dele, nem acessar o menu.
Adicionalmente, também questiono a ausência de certos recursos de qualidade de vida que poderiam ser implementados e com certeza contribuiriam para uma jogatina mais prazerosa, como o ajuste da velocidade do texto, que é exibido letra por letra, o que, por vezes torna a leitura um pouco cansativa.
Também nessa versão de teste, também senti falta de um sistema de salvamento manual, especialmente sabendo que a história vai contar com encerramentos distintos em sua versão final. Esperemos que essa precariedade de configurações seja restrita apenas a esse playtest, estando presente em sua forma completa.
Visualmente, Sanatorium adota uma estética de art déco em declínio, uma escolha coerente tanto com o período histórico quanto com o discurso simbólico do projeto. O art déco, marcado pelo otimismo modernista e pela celebração da técnica, aparece aqui corroído, transformado em vestígio de uma racionalidade que já não se sustenta.
Ainda, apesar de haver um fundamento teórico bem interessante nessa escolha, a impressão que eu tenho é que o visual ainda carece de um polimento ou estilização maior. Embora competentes, os cenários são um pouco insossos, mas não para representar um local inóspito, e sim por falta de uma identidade mais chamativa mesmo.
Ainda assim, mesmo com suas limitações técnicas e estéticas, a versão de teste de Sanatorium demonstra potencial para se consolidar tanto como uma crítica lúdica àquilo que Foucault chamou de “a grande internação” — o processo pelo qual a sociedade define, regula e silencia seus desvios, isolando-os da convivência geral —, quanto como um jogo de mistério envolvente que remonta os point and clicks clássicos, com sua cadência investigativa tão característica. Essa ambivalência é precisamente o que confere força ao título: é simultaneamente denúncia e simulação, reflexão e entretenimento.
Sanatorium — A Mental Asylum Simulator tem previsão de chegar ao Steam em 6 de novembro de 2025.
Revisão: Beatriz Castro
Texto de impressões produzido com cópia digital de versão de teste cedida pela Shoreline Games









