Análise: Hotel Barcelona é um garrancho cheio de paixão pelo horror cinematográfico

A colaboração entre Suda51 e Swery65 desponta como um clássico cult, ainda que marcado por problemas de desempenho e jogabilidade.

em 29/09/2025


Quem nunca, em uma mesa de bar, começou a conversar com amigos sobre filmes, séries, livros ou — de forma mais pertinente ao nosso assunto — videogames? Em meio a essas conversas, é comum surgir a brincadeira do “e se fizéssemos o nosso próprio jogo?”, um exercício divertido de criatividade no qual cada um tenta misturar suas preferências em um único produto, mesmo sabendo que dificilmente sairia do papel. Pois Hotel Barcelona é justamente essa ideia levada um passo adiante: um projeto que nasceu de uma conversa informal entre Hidetaka Suehiro e Goichi Suda — mais conhecidos pelos pseudônimos Swery65 e Suda51, respectivamente

Uma declaração apaixonada ao horror trash

Desenvolvido em sua maior parte pela White Owl Inc., de Swery — enquanto Suda atuou mais como consultor geral e recebeu crédito pela concepção original da ideia —, Hotel Barcelona conta a história de Justine Bernstein, uma agente federal que, por obra do destino, acaba presa dentro do enigmático hotel que dá nome ao jogo. Embora seja conhecido na região como uma luxuosa hospedaria, o local esconde sua verdadeira natureza: um antro sobrenatural criado para atrair e reunir alguns dos serial killers mais brutais do mundo.




Embora não fosse o plano original, é do interesse de Justine descobrir mais a respeito do hotel, em parte porque divide a própria consciência com uma entidade chamada Dr. Carnival, um assassino lendário responsável pelo trabalho sujo de assumir o corpo da moça e utilizá-lo para combater diretamente cada um dos vilões espalhados pelos domínios da hospedaria. Tanto ele quanto o próprio Hotel Barcelona guardam conexões com a morte do pai da protagonista, e esse elo se transforma no fio condutor do mistério que sustenta a narrativa.

Cada um dos serial killers funciona como um “chefão” em seu respectivo estágio, e é nesse ponto que a brincadeira de mesa de bar se materializa de fato: os inimigos e cenários evocam referências distintas à história do cinema de terror, compondo um mosaico de homenagens ao gênero.




Mais do que simples menções diretas a clássicos — como o quarto de Justine no hotel ser o 217, a mesma suíte considerada proibida de O Iluminado, de Stephen King, eternizada no cinema por Stanley Kubrick — há aqui uma preocupação em homenagear o terror de forma ampla, abraçando desde o horror sobrenatural até o slasher mais trasheira, passando também pela ficção científica sufocante de obras como Alien.

Com personagens interessantes e motivações que se revelam conforme o progresso da campanha, a atmosfera paranoica de Hotel Barcelona é sublime. A escrita é envolvente a ponto de tornar prazeroso pausar entre os estágios apenas para explorar o hotel, cuja navegação funciona como um hub, só para conversar com os funcionários e hóspedes, como é o caso do barman, da ranger que libera novos equipamentos ou até mesmo o espírito confinado dentro de um armário.





Já o aspecto gráfico pode não ser o mais sofisticado, mas compensa com estilo. Sua precariedade acaba funcionando a favor da proposta, reforçada por uma identidade visual marcante que permeia o jogo inteiro — dos menus às ilustrações, passando pelas introduções animadas de cada serial killer.

Seu maior aliado é você mesmo (desde que o desempenho da jogatina anterior tenha sido bom)

Cada fase de Hotel Barcelona se desenrola como um jogo de plataforma em progressão lateral no qual Justine precisa avançar contra hordas de inimigos usando as armas disponíveis. Além da configuração padrão de lâminas e bastões, é possível equipar machados ou lâminas giratórias duplas, cada um com seus próprios combos e estilos de jogo. Some a isso as opções de ataque à distância — como revólveres, espingardas e lança-chamas — e o resultado é um número considerável de combinações possíveis.




Esses equipamentos, vale destacar, também brincam com clichês e fazem referências diretas a ícones do terror, como o machado de O Iluminado ou os discos de vinil usados como armas em Shaun of the Dead.

Derrotar inimigos não só abre caminho até os chefões, como também preenche a barra de sangue. Esse medidor pode ser convertido em um golpe especial devastador ou usado para fortalecer os atributos da agente federal, dependendo do quanto estiver cheio. Já no modo com censura ativada, o White Owl promove uma alteração bem simpática ao fazer os inimigos explodirem em pipoca, enquanto o medidor de sangue se torna amarelo por causa da manteiga. 




Cada estágio do jogo é dividido em várias etapas dispostas em formato de árvore, com diferentes ramificações. A jornada sempre começa na primeira seção, que apresenta diversas portas levando a áreas distintas (2A, 2B, 2C etc.), cada uma com design e estruturas próprias. Essas ramificações, por sua vez, conduzem a novos grupos de fases (3A, 3B, 3C e assim por diante)  até se afunilarem novamente em direção ao trecho final, onde aguarda o chefão.

Como o roguelike que é, Hotel Barcelona oferece efeitos temporários a cada porta atravessada, cabendo ao jogador escolher com cuidado o caminho a seguir em suas incursões. Em teoria, seria simples optar pelo upgrade mais adequado para a situação, mas o jogo introduz um fator único que complica essa decisão: os Slasher Phantom.




Sempre que Justine é derrotada e retorna à primeira seção do estágio, um Slasher Phantom é invocado. Na prática, ele é um espírito que repete exatamente o trajeto e as ações da tentativa anterior, lembrando os ghosts dos jogos de corrida. A diferença é que, aqui, esses fantasmas não são apenas sombras inofensivas, já que eles podem interagir com o cenário e até causar dano aos inimigos que cruzarem seu caminho.

O gerenciamento dos Slasher Phantom acaba sendo, portanto, uma das principais chaves para dominar o gameplay de Hotel Barcelona. Ter um bom desempenho em uma incursão — mesmo que ela não seja concluída com sucesso — facilita a seguinte, já que o fantasma acompanhará a nova versão de Justine por mais tempo e, em alguns casos, poderá até colaborar no combate contra o serial killer da fase.




Com todas as melhorias desbloqueadas na árvore de habilidades, é possível invocar até quatro versões pregressas da personagem. Por isso, é importante ter consciência de como cada tentativa se saiu: quase derrotar o chefão em uma rodada e, na seguinte, não passar nem da primeira etapa pode soar como um desperdício. Afinal, não há como manter apenas os melhores desempenhos, já que as versões se sobrescrevem conforme novas tentativas são realizadas.

Esse é também o motivo pelo qual a escolha de caminho em cada estágio se torna tão relevante. Os upgrades oferecidos pelas portas são aleatórios, e optar por um trajeto diferente daquele já feito anteriormente e que será repetido Slasher Phantom fará com que eles simplesmente esvaneçam, deixando o jogador sozinho para enfrentar o novo trajeto.




Trata-se, então, de uma mecânica muito interessante e útil, mas que acaba sendo prejudicada por um problema que afeta o jogo como um todo: o desempenho. Hotel Barcelona é um produto mal polido. Não é novidade que mais elementos em tela significam mais cálculos para a aplicação, exigindo cada vez mais do hardware disponível. É por isso que jogos precisam otimizar seus recursos, garantindo sempre uma experiência fluida para o jogador.

Agora, imagine o desafio de um sistema que precisa armazenar e reproduzir o progresso do jogador em quatro instâncias distintas, enquanto ainda gera novos inimigos e estruturas em tela. Em ambientes fechados, como o estágio do subterrâneo — repleto de ovos alienígenas que, se acertados, eclodem em novos oponentes — era quase impossível progredir de forma direta, sem sofrer com travamentos constantes e poluição visual.




Sendo um jogo de plataforma e hack and slash, Hotel Barcelona tinha que priorizar duas coisas: precisão e fluidez. Infelizmente, o título pena para entregar ambas, tanto em termos de desempenho prático quanto de polimento do gameplay. Além da otimização deficitária, que compromete a performance técnica, a própria jogabilidade se mostra muito precária e rústica.

Os ataques de Justine são lentos, os movimentos carecem de peso e diversos comandos são processados com atraso, o que frustra especialmente em momentos em que a tela está saturada de inimigos — situações recorrentes em que é quase impossível identificar o bonequinho da protagonista jogável. Para complementar, um dos principais elementos de defesa é o do parry, mas mesmo com as melhorias nos atributos, o jogador ainda fica à mercê do sistema decidir acatar ou não o timing correto do jogador.



A morte até que lhe cai bem, mas às vezes chega a ser exagero

A morte é um dos principais motes de Hotel Barcelona. Nos videogames, morrer nunca significa o fim, mas sim um recomeço. Sabendo disso, o título apresenta uma série de variáveis que modulam a experiência, evitando que ela se torne um exercício tedioso de repetição, já que o design das seções em si não é procedimental, ou seja, não são mapas gerados aleatoriamente.

A aleatoriedade, entretanto, se manifesta em diversas situações, especialmente antes de cada incursão. Por exemplo, tanto as condições climáticas quanto o horário do dia podem variar. Em uma jogatina sob chuva, as estruturas do estágio apresentam goteiras que dificultam o acúmulo do medidor de sangue, podendo zerá-lo se o jogador não agir com cautela.




Além disso, também nesses momentos de reinício, o tamanho natural da protagonista pode ser duplicado ou fracionado, exigindo que o jogador se adapte. Ser maior significa bater mais forte, mas também ter uma área de contato maior para os inimigos se aproveitarem. Ao custo de moedas, esse modificador pode ser forçado artificialmente ao lado de outros — como a ressurreição imediata — antes de cada fase.

Durante o próprio progresso, por sua vez, há ainda a chance de cada seção apresentar uma porta especial que leva a um cassino, onde vitórias em dados ou cartas aprimoram os equipamentos e concedem habilidades distintas, ou a uma fase extra de puro platforming, na qual é necessário destruir os bonecos de tubarão espalhados pelo cenário.




Justine também pode ser afetada por condições específicas que alteram suas habilidades. Quebrar lamparinas faz com que ela comece a pegar fogo e perca vida, enquanto cair na água não só zera o medidor de sangue acumulado, como a deixa molhada e impede temporariamente seu enchimento. Se ataques de certos inimigos a atingirem, seus ossos se quebram, impossibilitando o salto duplo até a próxima seção do estágio.

Hotel Barcelona conta ainda com um sistema multiplayer, tanto cooperativo — em que dois jogadores podem se unir para avançar no game, com um deles assumindo o papel de Ghost de Justine — quanto competitivo, permitindo que um oponente externo online invada a fase e atrapalhe o progresso. 




O vencedor recebe bônus que ajudam a evoluir os equipamentos, enquanto o perdedor precisa iniciar uma nova incursão, como esperado. Esse sistema de doppelganger pode ser bastante incômodo para quem só quer avançar tranquilamente na história, mas, felizmente, é possível desativá-lo nas configurações. Sem falar que, na prática, adiciona mais elementos em tela para serem processados, exigindo ainda mais do hardware, agora em tempo real online, em um jogo que já mal dá conta do processamento local.

Caso não esteja satisfeito com todas essas modulações oferecidas por padrão e inerentes ao sistema, é possível adicionar novas variáveis às campanhas. Conversando com a recepcionista, é possível ligar ou desligar recursos do gameplay, como armas de fogo, ataques corpo a corpo, o medidor de sangue ou até transformar a queda na água em morte imediata, entre outras opções.



A carta é de amor e tem a melhor das intenções, mas a letra é um garrancho

Considerando todos esses fatores, percebe-se uma preocupação sincera em oferecer diversidade e imprevisibilidade a um gênero que normalmente se apoia na repetição como forma de criar oportunidades de evolução e progresso. Entretanto, é um pouco complicado quando o título não conta com o polimento necessário para que o erro seja de caráter exclusivamente humano, isentando o sistema dos inevitáveis fracassos. 




Isso é uma pena, uma vez que o título traz uma história envolvente de verdade e uma atmosfera singular, mas ainda aposta demais na paciência e na boa vontade do jogador para lidar com sistemas falhos de jogabilidade. Os personagens são interessantes, o mistério é cativante e a composição estética do jogo é sublime, mas falta um pouco de autocrítica por parte da White Owl no que diz respeito à jogabilidade. Afinal, toda essa rusticidade se faz presente em quase todo produto que eles entregam — Deadly Premonition é um dos exemplos mais notórios disso — e fica feio justificar esse descaso com o público apenas em nome da identidade artística.

A sorte de Hotel Barcelona, contudo, é que ele parece ter sido feito sob medida para dialogar com um público entusiasta dos chamados filmes B, produções de baixo orçamento e valor técnico limitado, mas que conquistam a audiência com uma abordagem pouco convencional em relação ao cinema comercial.




Vários dos principais filmes de terror da história, como Halloween, Chucky, Madrugada dos Mortos, Evil Dead — dos quais Swery claramente se colocou de prontidão para homenagear — se enquadram nessa categoria. Com o tempo, conquistaram fãs que não se importam com as claras limitações técnicas. Eles são amados justamente por serem trasheiras. Nesse sentido, Hotel Barcelona sai pela tangente por conseguir dialogar quase impecavelmente com seu público pretendido.

É quase como se o título compreendesse simultaneamente o melhor e o pior jogo do mundo em um único produto — um feito bizarramente impressionante. Quem estiver disposto a enfrentar o início atribulado, antes de desbloquear habilidades que amenizam um pouco a movimentação truncada, encontrará um jogo cativante. A questão é que nem todo mundo deveria se sujeitar a uma experiência tão insalubre.



Serviço de quarto nos trinques, mas as acomodações não são das melhores

Hotel Barcelona é um jogo complicado em todos os sentidos inimagináveis. Ao mesmo tempo em que oferece um desafio interessante graças ao alto grau de imprevisibilidade diante da repetição inerente do roguelike como gênero, é difícil fazer vista grossa para os problemas de desempenho e jogabilidade truncada que ele ostenta. Trata-se de um jogo com estilo e que conhece muito bem o universo do cinema de horror, o qual homenageia com um amor evidente, mas ele quase coloca tudo a perder com uma execução capenga e quase inconsequente. É necessário um esforço para enxergar sua precariedade como charme próprio, tal como um legítimo filme de terror trasheira de baixo orçamento e intenções questionáveis. Uma vez superada essa barreira, ele logo conquista seu nicho, para o qual tem o potencial de se tornar um dos melhores games do mundo. 

Prós

  • Atmosfera envolvente, com história intrigante e personagens cativantes que prestam uma homenagem digna aos filmes de horror;
  • Mecânica dos Slasher Phantom traz um diferencial bacana para facilitar o progresso de cada fase temática;
  • Inclusão de vários sistemas aleatórios independentes que trazem variedade ao sistema de repetição inerente dos roguelite. 

Contras

  • Problemas de desempenho prejudicam a fluidez do gameplay;
  • Por vezes, a tela fica muito poluída, com muitos elementos que dificultam o foco na protagonista;
  • Jogabilidade truncada, com ataques lentos, comandos imprecisos e sistema de parry inconsistente que tornam a experiência mais difícil do que normalmente deveria ser;
  • Multiplayer competitivo pode ser mais incômodo do que divertido.
Hotel Barcelona — PC/PS5/XSX  — Nota: 7.0
Versão utilizada para análise : PlayStation 5
Revisão: Beatriz Castro
Análise Produzida com cópia digital cedida pela Cult Games 
OpenCritic
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João Pedro Boaventura
É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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