Fantasiando-se de suspense político, killer7 segue até hoje como um marco na história dos jogos eletrônicos. Desafiando as convenções vigentes para a mídia, ele transpõe os princípios do surrealismo — como a justaposição do irracional, a fragmentação da identidade e a subversão da lógica narrativa — para o domínio interativo dos videogames. Até hoje, em pleno 2025, tal produção continua questionando, provocando e resistindo à assimilação fácil por parte do jogador, mesmo vinte anos após seu lançamento original.
Quebrando a barreira entre o Ocidente e o Oriente
É uma história bastante conhecida que, diante do desempenho insatisfatório do Gamecube, a Nintendo firmou, em 2005, uma parceria com a Capcom para a concepção de cinco jogos exclusivos para a plataforma. Um deles, especificamente, seria encabeçado por um jovem designer de histórico peculiar. Ex-coveiro fissurado por luta livre e pela indústria midiática ocidental, Suda51 nunca tinha emplacado de verdade um game do outro lado do globo.
Ele até conseguiu algum reconhecimento local com The Silver Case e Flower, Sun and Rain, mas nada que o colocasse de verdade no radar do Ocidente em uma época em que a indústria não era tão globalizada quanto hoje. Naquele tempo, eram necessárias verdadeiras forças-tarefa para promover a interação entre o mercado norte-americano, o asiático e o europeu, já que nem todo lançamento era localizado. A Capcom foi a principal oportunidade que Suda teria para fazer seu nome por estas bandas.
Um nome, entretanto, foi essencial para que o jogo de Suda saísse do papel e se tornasse realidade. Se não fosse pela insistência de Shinji Mikami em bater de frente com a Capcom — que obviamente queria um produto considerado mais convencional —, killer7 certamente não teria saído do papel. O criador de Resident Evil era uma figura de importância na empresa e cedeu carta branca a Suda para que ele tocasse o projeto à sua própria forma.
Originalmente previsto apenas como o escritor geral, o que havia sido concebido por Suda naquele momento era tão complicado que Mikami incentivou que ele se tornasse o diretor geral da produção, assumindo o controle total de cada aspecto do game e gozando de uma liberdade criativa que, segundo declarações do próprio, jamais chegou a ter novamente em projetos posteriores.
Mikami, por sua vez, blindou Suda de qualquer dedo que a Capcom quisesse colocar no desenvolvimento. Isso serviu para fortalecer a relação entre ambos, que até hoje nutrem uma forte amizade e, eventualmente, chegaram a trabalhar juntos novamente em Shadows of the Damned.
Lançado em 7 julho de 2005, killer7 não foi exatamente um sucesso de vendas (seu verdadeiro hit no Ocidente veio a ser No More Heroes), mas repercutiu o suficiente para que o nome de Suda passasse a ser visto com mais atenção pelos jogadores fora do Japão. Assim como outros projetos do Capcom Five, o game deixou de ser exclusivo para o console da Nintendo já no lançamento — recebeu uma versão para o PlayStation 2 — e, após muito tempo preso nessas duas plataformas, enfim chegou ao PC em 2018 com uma remasterização quase exemplar.
Política do medo e paranoia sensorial
Superficialmente, é possível descrever a história de killer7 como uma trama não linear protagonizada por um assassino de múltiplas personalidades chamado Harman Smith e seu envolvimento em uma espécie de um conflito velado entre os Estados Unidos e o Japão — impedidos de ir às vias de fato por tratados internacionais de paz.
Ambientado em um futuro alternativo, o jogo retrata um mundo em que os confrontos armados diretos foram substituídos pelo chamado soft power — a influência sutil, porém poderosa, exercida por meio de lavagem cerebral e bombardeios midiáticos. Essa crítica direta à forma violenta e desastrada com que os EUA conduzem sua diplomacia se entrelaça à narrativa de maneira incisiva. Nesse cenário, a consciência coletiva que compõe o protagonista, por sua vez, acaba sendo convocada para operar por baixo dos panos e eliminar os Heaven Smile, uma organização terrorista responsável por disseminar um vírus capaz de despertar o instinto assassino dos infectados.
A partir daqui, qualquer interpretação dos fatos que se desenrolam acaba entrando no campo da incerteza. Contada em segmentos fragmentados, com cortes secos, exposição mínima e sequências visuais de teor absurdo, o jogador se depara com uma trama não linear que formam um quebra-cabeça. A questão é que é como se na caixa tivesse umas três imagens distintas a serem montadas ao mesmo tempo em que várias peças estão faltando.
killer7 é, acima de tudo, um enredo surreal — o cinema de David Lynch foi nominalmente mencionado por Suda em relação às suas influências — de caráter pós-moderno que, vinte anos depois ainda se destaca pela ousadia e estrutura fora do convencional mesmo dentro dos próprios videogames.
Mais do que ser plenamente assimilado, killer7 também busca incomodar. Com um estilo em cel-shaded altamente estilizado, ele parece mesclar o cinema noir com estética de anime e a pop art de Andy Warhol. Os cenários minimalistas contribuem para evocar um sentimento de vazio melancólico e instabilidade psicológica.
A trilha sonora, assinada por Masafumi Takada (responsável também por No More Heroes, God Hand e Danganronpa) entrega uma miríade de composições tão complexas quanto intensas, e ajudam a ditar a atmosfera do título, exercendo a função constante de provocar o jogador.
Fragmentado em trilhos
Se a narrativa de killer7 optou por uma rota pouco tradicional em sua exposição, a jogabilidade não fica muito para trás. Distante das convenções tradicionais para jogos de ação ou de tiro vigentes na época, o game consiste em uma abordagem que mescla mecânicas de um shooter em trilhos com elementos de resolução de quebra-cabeças.
Na prática, isso se traduz como a limitação do jogador em controlar o personagem principal. Em vez de se movimentar livremente pelos cenários, é necessário escolher direções fixas ou pré-determinadas a fim de prosseguir pelos estágios com o personagem controlado em terceira pessoa.
Os inimigos, por via de regra, são lentos, porém invisíveis a olho nu, revelando-se apenas quando estão próximos do jogador. Daí, é necessário entrar na interface de combate, momento em que a perspectiva muda para primeira pessoa e se torna possível escanear tal oponente para, então, atirar em seus pontos fracos. É uma dinâmica de constante alternância entre a exploração, com seus quebra-cabeças, e o combate.
Derrotá-los preenche um medidor de sangue, que pode ser utilizado para várias finalidades distintas. Esse recurso pode ser utilizado pelas diversas personalidades jogáveis de Harman Smith, sendo que elas podem ser alternadas de acordo com a necessidade e trazem diversidade à jogabilidade prática. Dan Smith, por exemplo, pode usar o sangue para fortalecer os tiros dados pelo revólver, enquanto Kaede corta os próprios pulsos a fim de absorver o sangue do estágio, revelando certos segredos dele.
De um modo geral, a estrutura das fases consiste em fazer com que o jogador as percorra com o objetivo de coletar as chamadas Soul Shells, que servem como taxa de entrada para as áreas em que estão os chefes das fases. Para isso, então, é necessário percorrer os ambientes, interagir com os NPCs espalhados e decifrar os segredos a fim de avançar no game como um todo.
“Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.”
O gameplay é simplista, mas isso é proposital. Com uma abordagem quase onírica, é muito difícil encontrar um sentido na história ampla. Os próprios diálogos muitas vezes parecem descontextualizados ou pouco úteis no entendimento do contexto geral. Nada nele faz muito sentido e isso é proposital. Mesmo quando o título tenta se explicar, ele o faz só para subverter qualquer entendimento e contradizer qualquer exposição que tenha feito até então.
Nas artes clássicas, o movimento surrealista conta com um filme chamado Um Cão Andaluz entre suas obras expoentes no cinema. Dirigido por Salvador Dalí em colaboração com Luis Buñuel, a obra tornou-se um clássico justamente por seu impacto visual e simbólico, fruto de uma sequência de cenas aparentemente desconexas. O valor de choque é um dos principais motores da narrativa — ou da ausência dela — e se manifesta de forma contundente em uma das sequências mais icônicas do filme: o close de uma navalha cortando um olho humano, que jorra um líquido espesso. Essa imagem, brutal e perturbadora, tornou-se um marco do cinema surrealista, exemplificando seu propósito de desafiar a lógica e provocar reações viscerais no espectador.
killer7, por sua vez, carrega essa mesma veia surrealista e não se furta de provocar desconforto. O jogo reserva momentos igualmente perturbadores, como a cena em que Suzie Sumner — uma das personalidades assimiladas pela mente coletiva de Harman — relata em minúcia como desenvolveu prazer em torturar e mutilar os homens que a maltratavam.
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| Existem gifs da cena completa, mas não é todo mundo que aguenta o tranco e preferimos optar pela discrição. |
A frieza e a riqueza de detalhes com que Suzie descreve suas ações intensificam a sensação de inquietação, funcionando não apenas como provocação gratuita, mas como parte de uma lógica simbólica maior que permeia toda a obra. Assim como no cinema surrealista, o impacto vem tanto da forma quanto do conteúdo — ambos utilizados para romper expectativas, subverter convenções e arrastar o público para um território instável e desconcertante.
O game, tal como a escola artística de Dalí, também abdica de uma estrutura tradicional baseada em causa e consequência durante sua progressão. É um conjunto de aleatoriedades aparentes que vão depender da leitura individual de cada jogador na hora de realizar a função de tentar vedar alguns dos vários buracos propositalmente deixados pela narrativa.
killer7, em sua totalidade, não aparenta ter uma solução. É um resultado completamente ousado que, por vias naturais, jamais teria sequer chegado ao mercado se não houvesse gente bem intencionada querendo manter intacta a visão de seu criador. killer7 não é feito para ser apenas jogado, tampouco para ser plenamente compreendido. Com uma atmosfera única, propositalmente desconfortável, que mescla psicodelia e paranoia, killer7 é feito para ser sentido.
Revisão: Johnnie Brian






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