Death Stranding e a reconstrução de Kojima após a Konami

Como um jogo sobre solidão e reconstrução redefiniu o papel do autor nos videogames.

em 18/07/2025

Em 2015, Hideo Kojima saiu da Konami, e, com ele, parecia que uma era havia terminado, pois não foi uma simples troca de estúdio, foi uma separação pública, arrastada e amarga. O lendário criador de Metal Gear Solid, uma das sagas mais influentes da história dos videogames, foi desligado de forma silenciosa, excluído de premiações, removido dos créditos e impossibilitado de falar publicamente sobre o que estava acontecendo.


Kojima não saiu com suas franquias, nem com sua equipe completa, nem com contratos garantidos, somente com seu nome. Fora da máquina que o projetou ao estrelato e de sua renomada série, ele teria que reconstruir um estúdio e a própria confiança do público em sua visão criativa.

Death: a separação

A ruptura entre Hideo Kojima e a Konami foi um dos divórcios mais traumáticos e públicos da história da indústria. O que antes era uma relação simbiótica de três décadas terminou em silêncio institucional, manobras corporativas e apagamento deliberado. Não houve comunicado transparente, não houve despedida oficial, apenas um sumiço.

Tudo começou a se tornar visível durante o desenvolvimento de Metal Gear Solid V: The Phantom Pain. Mesmo sendo um dos projetos mais ambiciosos da Konami, sinais estranhos começaram a aparecer: atrasos, mudanças no marketing, o nome de Kojima sendo retirado de capas e trailers. Aos poucos, o idealizador de Metal Gear estava sendo varrido do próprio jogo.

Em paralelo, o estúdio Kojima Productions foi dissolvido internamente, sem muito alarde por parte da Konami. O momento mais simbólico da crise veio em dezembro de 2015, quando ele foi impedido de comparecer ao The Game Awards, no qual não pôde receber o prêmio de melhor jogo de ação-aventura que MGSV venceu. Geoff Keighley, amigo pessoal e apresentador do evento, revelou ao vivo que a Konami havia barrado sua presença por razões contratuais.

Nesse mesmo período, outro projeto promissor foi cancelado sem explicações: Silent Hills, o renascimento da icônica franquia de terror, que teria Kojima e Guillermo del Toro na direção e Norman Reedus como protagonista. A demo P.T. já havia recebido aclamação mundial, e mesmo assim a proposta foi morta e a demo removida da PSN como se nunca tivesse existido.

A Konami estava se desfazendo de seu realizador mais valioso de maneira fria. Sem direito a despedida.

Entre montanhas e fantasmas

Antes de fundar a Kojima Productions como estúdio independente, Hideo Kojima deixou para trás duas produções que ajudaram a moldar o momento mais intenso de sua carreira: Metal Gear Solid V: The Phantom Pain e Silent Hills. São obras que, cada uma ao seu modo, capturam a potência criativa do autor e os limites que ele enfrentava dentro da Konami. Mais do que vítimas da ruptura, foram expressões claras de um criador no limite de seus poderes.

Lançado em 2015, The Phantom Pain é um de seus trabalhos mais ousados e refinados. Ele apresenta um mundo aberto bélico e denso, com sistemas de inteligência artificial interligados, mecânicas emergentes e uma liberdade de abordagem sem precedentes. Tudo isso é envolto em uma atmosfera visualmente deslumbrante e sonoramente impactante, que eleva a experiência a um patamar cinematográfico.

Kojima criou um sandbox militar que convidava a experimentação tática em cada missão. As ferramentas estavam ali, porém, a escolha de como usá-las era do jogador, trazendo o tipo de controle criativo que ele sempre defendeu, agora traduzido em design.

A jornada de Big Boss não era sobre transformação, identidade e despersonalização. Era a história de um homem que já não sabia se era ele mesmo, algo que, olhando em retrospecto, espelha perfeitamente o momento em que seu criador vivia: alienado dentro da própria criação.

Enquanto isso, Silent Hills, que nunca viu a luz do dia, prometia ser sua nova fronteira. Em menos de uma hora de experiência, a demo P.T. entregou um dos projetos de terror mais marcantes da década. Atmosfera sufocante, arquitetura viva, ciclo narrativo enigmático. Não havia combates, apenas tensão. Não havia mapas, apenas corredores que se repetiam. Era puro design psicológico.

Mais importante do que o medo, era a sensação de prisão. O jogador girava em círculos, preso num loop, e Kojima, preso na Konami, parecia se comunicar por meio desse jogo.

Essas duas obras são fundamentais para entender o ponto de virada que levou a Death Stranding. Demonstrações de força criativa num ambiente sob pressão, e mesmo sem controle total, entregou experiências que poucos estúdios ou criadores seriam capazes de conceber.

Foi no campo minado entre essas montanhas (de ambição técnica) e fantasmas (de ideias interrompidas) que viu-se empurrado à independência.

Ponto Zero

Menos de uma semana após sua saída definitiva da Konami, em dezembro de 2015, Hideo Kojima aparece em um vídeo ao lado de Andrew House, então presidente e CEO Global da SCE, para anunciar a fundação da nova Kojima Productions, agora como estúdio independente, com suporte da Sony para seu primeiro projeto.
Sem uma franquia de sucesso para se apoiar, o visionário japonês partiu do zero. O novo projeto precisava ser original, criativo, viável no aspecto técnico e impactante na parte comercial, tudo ao mesmo tempo. E deveria dizer ao mundo que ele ainda era um nome de peso, mesmo fora do sistema que o consagrou.

Na E3 de 2016, menos de seis meses após o anúncio da nova Kojima Productions, Hideo subiu ao palco da Sony e disse:
“I'm back.”
O trailer de Death Stranding foi uma das maiores surpresas da conferência e uma das mais comentadas de toda a feira. Era visualmente impressionante, abstrato, denso, quase incompreensível, porém, magnetizante. Um homem nu (Norman Reedus) acordando em uma praia cercada por corpos mortos, com um bebê nos braços e cicatrizes em forma de algemas no pulso. Chuva. Óleo negro. Criaturas invisíveis. Música melancólica.

Ambicioso, enigmático, imaginativo, era um trailer que não explicava nada e deixava tudo em aberto, que não vendia uma ideia de jogo, vendia uma ideia de mundo.

De maneira simbólica, ele também confirmava a retomada da parceria com Norman Reedus, que havia sido o protagonista de Silent Hills antes do cancelamento. Por isso, no início, muitos imaginaram que Death Stranding seria uma espécie de continuação espiritual daquele projeto abortado, no entanto, logo ficaria claro que era algo diferente e maior.

Não se tratava apenas de terror e nem de ação. Era um jogo que não se encaixava em nenhuma prateleira conhecida. Kojima não queria apenas lançar uma nova IP, ele queria inaugurar um novo gênero.

Stranding: a nova linguagem de Kojima

Death Stranding não foi pensado para agradar. Desde os primeiros trailers, ninguém sabia exatamente o que esperar. Cenas criptográficas, fetos em cápsulas, praias desertas e chuvas que aceleram o tempo. Tudo embalado por um elenco de cinema e uma direção de arte impecável. Havia hype, curiosidade e também muito ceticismo.

O próprio gameplay foi uma ruptura. Longe de tiroteios, missões tradicionais ou progressão clássica, o jogo colocava o jogador no papel de um entregador, Sam Porter Bridges (Norman Reedus), atravessando paisagens isoladas para reconectar cidades em um mundo colapsado. Um simulador de caminhadas para alguns. Um manifesto sobre conexão e isolamento para outros.

Em um mundo de jogos mundo aberto, onde o destino é o principal da jornada, quando caminhar do ponto A ao ponto B virou algo monótono e corriqueiro, Kojima fez um jogo sobre isso: a importância da jornada, do caminhar e se organizar. O que em outros jogos se resume a segurar o analógico para frente, ou entrar em um veículo e seguir o marcador a 200 km/h sem prestar atenção no mundo ao redor, aqui ganha peso, propósito e intenção.

O diretor da obra fez o jogador pausar, olhar ao redor, observar o terreno, planejar. Preparar-se não para combates contra inimigos reciclados a cada missão, mas para atravessar montanhas, encarar a chuva, e manter o equilíbrio sob o peso da carga. A previsão do tempo importa. O tipo de bota importa. A rota importa. É o jogador, Sam Porter Bridges, BB e a solidão do caminho.

Fazer entregas nunca foi tão complexo. Caminhar em um mundo tão singular nunca foi tão memorável.

Kojima talvez seja o melhor em extrair aquilo que faz videogames serem videogames. A oitava arte é baseada em gameplay, e ele é mestre nisso. Phantom Pain ainda carrega um dos melhores gameplays da história, contudo, em vez de repetir a fórmula, ele fez diferente. Criou uma jogabilidade destacável em um aspecto que todos os jogos compartilham e poucos valorizam: o ato de andar.

Para alguém que havia sido desconectado de tudo, Death Stranding funciona como uma catarse pessoal para seu criador. É um manifesto sobre identidade e redenção. Kojima, que foi excluído, desacreditado e silenciado, criou um jogo onde o maior gesto possível não é destruir, é conectar. Essa ideia está no centro da experiência, não como metáfora distante, como sistema de jogo.

Durante a jornada, o jogador pode deixar materiais, construir pontes, erguer escadas ou pavimentar estradas que ficarão disponíveis para outros jogadores, mesmo sem jamais vê-los. Cada estrutura deixada para trás, cada rota compartilhada, carrega um valor emocional real. Em um mundo hostil, qualquer ajuda pode ser a diferença entre fracasso e avanço.

Esse sistema online assíncrono, em que você coopera sem coexistir, é uma das sacadas mais brilhantes de Death Stranding. Um design que só poderia ter surgido da mente de alguém que entende o videogame não como imitação de cinema ou simulacro social, mas como mídia própria, com linguagem própria.

Apesar da solidão da jornada, o jogador nunca se sente totalmente só. Porque mesmo sem compartilhar o mesmo espaço físico, a presença de outros caminhantes está sempre ali, nas trilhas, nas placas, nas cordas deixadas para trás. É um modo online que transforma um mundo fragmentado em algo vivo e, contra todas as probabilidades, esperançoso.

Ainda que em nova fase, permaneceu fiel a si mesmo, e como ele mesmo diz, “70% do meu corpo é feito de filmes”. Aqui, com mais de dez horas de cutscenes, ele une os dois mundos. Captura a estética cinematográfica sem imitá-la. As cenas têm uma cadência única, uma construção de mundo carregada de termos inventados e uma carga de melodrama que só ele consegue entregar.

Kojima não quis simplificar nem agradar a massa. Ele fez um jogo sobre andar, cair, levantar e construir pontes, literalmente. Em plena era de jogos rápidos, loot, ação constante e sistemas agressivos de monetização, ele entregou um jogo de ritmo lento, introspectivo e contemplativo.

A crítica ficou dividida. Para alguns, Death Stranding era uma obra-prima ousada, singular e com visão. Para outros, era um delírio arrastado de um autor sem filtros.

E como se o jogo já não fosse excêntrico o suficiente, o mundo real o ressignificou. Meses após o lançamento, a pandemia da COVID-19 explodiu. O mundo passou a viver o mesmo tipo de isolamento e distanciamento que o jogo retrata. E o que antes era estranho, virou assustadoramente relevante.

Após o primeiro passo da jornada

Death Stranding não foi o maior sucesso comercial de Hideo Kojima, no entanto, foi o suficiente para provar que sua assinatura seguia valendo. O jogo vendeu bem e foi o maior vencedor de prêmios na categoria 'jogo do ano' em 2019.

Em 2021, veio a Director’s Cut, trazendo ajustes de ritmo, melhorias na qualidade de vida, novos equipamentos e conteúdos extras. Foi a versão definitiva da sua visão e uma resposta direta ao público que havia se desconectado do jogo no lançamento. Para muitos, foi ali que Death Stranding ganhou seu segundo fôlego. Uma chance de reavaliar, redescobrir e entender a proposta do jogo sob uma nova perspectiva.

O que antes foi questionado, virou referência. O que parecia esquisito, virou estilo. Críticos e influenciadores que zombaram do jogo em 2019 passaram a elogiar anos depois, pois ficou claro que nada mais se parecia com Death Stranding. Nenhum outro título ofereceu uma experiência tão autoral, tão mecânica e emocionalmente única. “O simulador de entregas”  se tornou símbolo de uma ambição que poucos estúdios têm coragem de perseguir.

Quando Death Stranding 2: On the Beach foi lançado em 2025, seis anos após o original, a recepção positiva foi imediata e unânime. O jogo estreou com notas altas, elogios à direção, à narrativa, à evolução dos sistemas e à maneira como aprofundava tudo o que o primeiro havia apenas começado.

E talvez, agora, com sua liberdade criativa intacta e uma comunidade mais conectada à sua visão do que nunca, seja possível entender o que Death Stranding realmente representou para ele, para os videogames e para todos nós.

A imortalidade da lenda

Hideo Kojima foi expulso de sua própria casa criativa, desacreditado por uma das maiores publishers do Japão, silenciado diante do público e obrigado a começar do zero, todavia, ao invés de repetir o que já sabia fazer, ele escolheu o caminho mais difícil: criar algo novo, pessoal e arriscado.

Death Stranding pode não ter sido seu jogo mais acessível ou popular, porém, foi o mais simbólico. Um projeto que, em forma e conteúdo, refletia o exato momento que seu criador vivia: desconexão, reconstrução, busca por significado. Foi uma resposta artística a uma ruptura profissional.

E agora, aos 61 anos, Kojima contempla o tempo com outro olhar. Fala abertamente sobre mortalidade e legado, ao mesmo tempo que se prepara para o que pode ser seu projeto mais ambicioso até aqui. Physint, anunciado durante um State of Play, será seu retorno ao gênero que ele criou e revolucionou o stealth tático, e também sua entrada definitiva no cinema. O jogo nasce da parceria entre a PlayStation e a Columbia Pictures, e promete fundir linguagem interativa e cinematográfica de um jeito que só ele ousaria propor.
De forma irônica, no mesmo ano do lançamento de Death Stranding 2: On the Beach, a Konami também voltou aos holofotes com Metal Gear Solid Delta: Snake Eater, um remake de Metal Gear Solid 3: Snake Eater, o qual primeiro estreou 20 anos atrás. Uma das muitas obras-primas que saíram da mente de Hideo Kojima.

Foi um divórcio doloroso, sem reconciliação, mas o tempo seguiu seu curso. Konami e Kojima, cada um à sua maneira, estão de pé mais uma vez. Ambos no centro da atenção, lançando títulos de peso no mesmo calendário.

E enquanto se prepara sua próxima empreitada, com o olhar voltado para a finitude, suas criações já são parte do que define a história dos videogames. Ele estava lá quando a mídia ainda estava se descobrindo, e ajudou a moldá-la. 

Assim como Sam Porter Bridges e BB, ele andou por terrenos inóspitos, carregando um peso que só ele sabia o que era.

E deixou um legado que não vai desaparecer.

Revisão: Thomaz Farias
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Matheus Oliveira
Entusiasta de games e cinema, sempre explorando novos gêneros e estilos enquanto acumula um backlog infinito. X e Instagram
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