Nos últimos anos, os games deixaram de ser apenas uma forma de entretenimento e passaram a ocupar o status de cultura pop global. Mas junto com esse crescimento, vieram também os questionamentos, principalmente sobre como os corpos femininos ainda são representados nesse universo. Em especial nos jogos de ação, um padrão se repete: mulheres protagonistas hipersexualizadas, vestidas para agradar a um público masculino, mesmo em cenários de guerra, apocalipse ou sobrevivência.
Personagens como Lara Croft (Tomb Raider), Jill Valentine (Resident Evil) e Regina (Dino Crisis) marcaram gerações. Afinal, como explicar Jill enfrentando zumbis com uma minissaia e um top tomara-que-caia? Ou Lara Croft explorando tumbas perigosíssimas de microshorts e regata justa, com proporções corporais quase irreais?
Essas escolhas de design não são apenas “estilo”. Elas fazem parte de uma tradição que vem de outras mídias e que coloca a mulher como objeto de contemplação mais do que como sujeito da ação. Isso é o que a teórica Laura Mulvey chamou de male gaze, ou “olhar masculino”: quando a câmera, o roteiro, o figurino e até a pose da personagem são pensados para agradar quem vê, e esse “quem vê” é o homem heterossexual.
A aparência dessas mulheres não faz sentido nem dentro da lógica do próprio jogo. A sexualização das personagens chega ao ponto do absurdo: trajes completamente impróprios para cenários extremos. Quem em sã consciência usaria salto alto, minissaia ou regata colada para fugir de um apocalipse zumbi? Ou para enfrentar dinossauros assassinos? Regina, de Dino Crisis, faz exatamente isso. A sexualização vira fetiche e o corpo da mulher, um cenário decorativo.
Quando um jogo exige sobrevivência, estratégia e agilidade, o mínimo que se espera é um figurino que acompanhe essas exigências. Mas o que muitas vezes vemos é o oposto: roupas pensadas para o apelo visual, não para a funcionalidade. O corpo deixa de ser uma ferramenta narrativa e vira um cenário decorativo.
E quando os jogos tentam mudar isso, os impactos aparecem. A Jill do remake de Resident Evil 3, lançado em 2020, veste calças, tênis e colete tático. Ainda é bela, ainda é forte, mas agora faz mais sentido. E, claro, dividiu opiniões. Teve quem achasse “menos sexy”, como se o valor da personagem estivesse no quanto ela agrada aos olhos dos homens. Isso revela o quanto a aparência das personagens está atrelada a uma fantasia coletiva. E quando esse imaginário é confrontado, a resistência aparece.
Será que homens e mulheres enxergam essas personagens da mesma forma? A resposta, como muitas mulheres gamers sabem bem, é: não.
Enquanto parte do público masculino vê essas personagens como fortes, inspiradoras ou “simplesmente estilosas”, muitas jogadoras relatam se sentir excluídas ou até mesmo incomodadas com os designs hipersexualizados. O sentimento de “isso não foi feito pra mim” ainda é comum, mesmo em 2025.
A cultura gamer, infelizmente, ainda tem traços de hostilidade com mulheres. A objetificação nos jogos se reflete no comportamento das comunidades. Mulheres que usam skins femininas com roupas sensuais recebem mais assédio. Jogadoras que reclamam do excesso de sexualização muitas vezes são chamadas de “chatas”, “feministas exageradas” ou “inimigas da diversão”. Mais do que incomodar visualmente com a sexualização exagerada nos jogos, muitas jogadoras relatam que o ambiente gamer ainda é hostil: comentários invasivos, assédio, julgamentos constantes. E a forma como os corpos femininos são representados nos jogos contribui diretamente para essa cultura.
Quando um personagem masculino é criado, normalmente ele é pensado para ser eficaz, corajoso e estratégico. Já as mulheres, muitas vezes, são pensadas primeiro para serem bonitas e só depois, talvez, úteis. É como se a força da personagem viesse em segundo plano.
Os remakes e reboots mais recentes mostram uma tentativa de mudança. Personagens mais realistas, roupas funcionais, corpos menos caricatos. Mas ainda é pouco. E ainda gera resistência. Porque mudar o visual dessas personagens significa desafiar uma fantasia coletiva que, por muito tempo, vendeu que ser mulher nos games era sinônimo de ser desejável, não eficiente. Afinal, quando um designer cria uma protagonista feminina, ele pensa em como ela se movimenta, como ela sobrevive, como ela sente… ou só em como ela vai ficar bem em pôsteres promocionais?
Também vemos mudanças nas campanhas de marketing. Antes, as capas dos jogos muitas vezes destacavam o corpo da personagem mais do que a jornada. Com mais mulheres jogando e produzindo conteúdo, a pressão por mudanças está maior. Afinal, mulheres nos games podem ser tudo: líderes, guerreiras, cientistas, sobreviventes. O que elas não precisam ser é fetiche.
Revisão: Ives Boitano