Cidades Digitais #1 - GTA V e o Mar Álamo: onde o sonho naufragou

Como a geografia real inspirou o deserto e os mistérios em GTA V

em 04/07/2025

Esta é a primeira parada de uma série de visitas por lugares que só existem nos videogames. São ruas, favelas, avenidas, metrôs, desertos, cidades inteiras — tudo digital, tudo feito pra contar uma história sem dizer uma palavra. Aqui, o controle na mão vira um convite pra andar devagar, olhar pro canto da tela, entrar nos becos, ouvir os ruídos. Em Cidades Virtuais, vou explorar esses espaços com calma, como quem caminha sem pressa. Porque, nos jogos, às vezes, a cidade é mais interessante do que a missão.

A volta a Los Santos, um lugar de nostalgia

Quando criança, meu primeiro videogame foi um Mega Drive 16 bits. Naquele tempo, os hiperestímulos eram mercadorias cobiçadas pelas crianças. Os comerciais da televisão vendiam um Sonic veloz. Eu nasci nos anos 90. O Playstation surgia, mas ainda era privilégio de poucos sortudos. Meus pais podiam me dar coisas do passado, pois elas eram mais baratas. Graças a eles, fui apresentado primeiro ao videogame quadricular. Joguinhos em 2D. Multicoloridos e hipnóticos. Tudo isso funcionou pra me manter entretido por vários anos, sentado no chão da sala, protegido dos perigos das ruas de uma São Paulo perigosa nos anos noventa. 

Quando conheci, mais tarde, a ação frenética e furtiva do Metal Gear Solid, meu Mega Drive virou uma coisa sem graça, da noite pro dia. Ele foi ficando de lado, cada vez menos solicitado. E, mais pra frente, já tardiamente nos anos 2000, eu ganhei o meu Playstation, quando já existia o Playstation 2. Meus pais só podiam me dar as coisas do passado. 

Com a ladeira da adolescência, eu fui de cabeça. O videogame foi ficando de lado. Depois, com meu primeiro emprego, comprei meu Playstation 2. E naqueles dias, tive a experiência mais absoluta que pude experimentar com um controle na mão, enfeitiçado, em frente a televisão. Depois de uma passada na feira de domingo, levei pra casa comigo o “GTA San Andreas”. A pior coisa dos jogos piratas, especificamente o GTA, carregado de dados e memória, hora ou outra, pifafa o disco pirata. O jogo travava. Uma vez por mês, era necessário um jogo novo pra continuar a campanha salva do memory-card. E muito insistindo, mas sempre desistindo, joguei o GTA San Andreas pela metade. Nunca terminei. 

Dei um tempo dos videogames durante o início da vida adulta. Troquei meu Playstation 4 por um notebook no começo da graduação. E por uma década não joguei mais coisa alguma. Mas sempre pensei que seria uma boa ideia me reencontrar com esse jogo e com a cidade de Los Santos em sua essência. A sua primeira versão. Recentemente comprei o GTA Trilogy para o Xbox Series e, pra minha frustração, era mais nostalgia que outra coisa. Joguei alguns minutos, mas penso que a experiência já não é mais a mesma, depois de ter pisado os pés na megacidade do GTA V. A Los Santos com os micro detalhes. Os estacionamentos com luz laranja. A downtown esfumaçada. Com as fuligens que caem do céu.

Foi aí que percebi: o que mais me fascina na cultura dos videogames não é o combate, nem a progressão. É a cidade. O espaço virtual onde tudo acontece. É ela que me chama — com seus ônibus vazios, com os NPCs falando sozinhos, com as calçadas grafitadas e as esquinas que lembram lugares da vida real.

Desde o meu reencontro com os consoles, adotei um novo padrão de jogo: o da observação. Meus olhos passeiam mais do que meus dedos. Em cada cidade digital, busco os sinais que contam a história daquele lugar. Entro em delegacias vazias, espero pelo metrô, sigo ônibus até o ponto final. Quero entender o que a cidade tem a dizer.

E é sobre isso que trata esta série de textos: as cidades dos videogames. Lugares artificiais, sim — mas também cheios de sentido. Algumas inspiradas em metrópoles reais, outras totalmente inventadas. Todas, de alguma forma, espelhos do mundo que vivemos ou do mundo que tememos.

Começando por um clássico

Começo esta jornada por um lugar icônico: o Mar Álamo, um canto esquecido do deserto de GTA V. Mas que, para mim, é a porta de entrada para o que realmente interessa: o mistério urbano nos jogos.

Dizer que os universos construídos pela Rockstar Games são os melhores nisso, é chover no molhado. Eles reconstroem lugares, regiões, com detalhes e uma precisão fascinante. Talvez as cidades da Rockstar sejam o melhor que se possa fazer em relação ao detalhe. No final, tudo carrega uma beleza e uma precisão que mistura arte e realidade. E o que eles fizeram com o Lago Salton, transformando-o no fictício Mar Álamo de GTA V, é um exemplo dessa obsessão pelo detalhe. 

O Salton Sea surgiu por acidente, no início do século XX, quando engenheiros desviaram o Rio Colorado para irrigação e a água inundou uma antiga depressão desértica. Criou-se um lago artificial, que virou promessa turística — mas logo se tornou uma aberração ambiental: salinidade extrema, peixes mortos, ar tóxico. A Rockstar transpôs tudo isso para o Mar Álamo: uma região sufocada pelo abandono, onde o tempo parou, e a beleza desértica convive com ruínas, ferrugem e poeira. Ali, cada detalhe é uma lembrança do que deu errado.

Durante as décadas de 1950 e 60, o Salton Sea chegou a ser vendido como o novo paraíso da Califórnia. Famílias vinham passar férias, artistas se apresentavam em clubes à beira da água, casas de veraneio eram construídas com vista para o lago. 

Os famosos cartões postais de Salton Sea, muito procurado no seu apogeu
Os peixes mortos que ocupam a beira do lago, dizem que o cheiro não é muito legal
Los Santos é a cidade que nunca dorme, cheia de luzes e sirenes. O Mar Álamo é o que sobrou quando a festa acabou. Onde o vento assobia entre as frestas de portas arrombadas, e a única coisa que se move é a sombra dos urubus circulando no céu. O Trevor não pertenceria a nenhum outro lugar. Ele é feito dessa terra rachada, desse sol que queima mas não aquece. Desse vazio que ninguém mais quer ocupar. Se Los Santos é o sonho da Califórnia, o Mar Álamo é o que acontece quando você acorda e o sonho vira só um gosto ruim na boca.

Enquanto a gente se pergunta se não tem um pouco disso dentro da gente também.


Revisão: Johny Brian



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Mateus Rudá
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