Um dos lançamentos mais controversos da Ubisoft, Watch Dogs: Legion enfrentou o fracasso nos primeiros anos, mas hoje parece ter reservado semelhanças com o futuro — semelhanças que agora soam pertinentes demais para serem ignoradas.
Um jogo subestimado
Tenho uma opinião impopular. Depois de muita insistência, mergulhei no universo de Watch Dogs: Legion e fui surpreendido por uma ambientação intensa: uma Londres tomada por fintechs, que deformaram a democracia inglesa — berço do modelo parlamentar ocidental — em uma tirania privatizada. Surgia ali, disfarçado de distopia, um dos primeiros retratos digitais do que economistas e historiadores agora chamam de tecnofeudalismo.
Tive que relevar diversos bugs, quebras de ritmo e um design visivelmente apressado. Mas algo na atmosfera do jogo me fisgou — algo mais profundo que suas mecânicas: sua leitura do mundo.
Um lançamento marcado pelo caos
Lançado em 2020, Watch Dogs: Legion foi vítima do redemoinho da pandemia de COVID-19 e dos escândalos internos da Ubisoft. O período de desenvolvimento foi marcado por denúncias de assédio moral e sexual. Enquanto o jogo prometia empoderar cidadãos contra regimes opressivos, a empresa enfrentava acusações de abuso institucional, envolvendo figuras como Serge Hascoët, então diretor criativo, e Tommy François, — ambos apontados por criar um ambiente tóxico, acobertado por um RH inoperante.
Ao mesmo tempo, o avanço repentino do home office desestruturou a produção. O resultado foi um jogo ambicioso, mas nascido no caos: um projeto de resistência popular que, ironicamente, ecoava as lutas reais de muitos de seus próprios criadores.
A distopia retratada nas ruas de Londres não é apenas um exercício de imaginação. É também o reflexo de uma indústria que, ao denunciar regimes autoritários nos jogos, frequentemente opera sob dinâmicas igualmente opressivas. E, entre os tropeços de produção, Legion antecipou, com impressionante precisão, temas que hoje fazem parte do nosso cotidiano.
Bagley: a IA que é a cara do Chatgpt
Se, em 2020, Bagley parecia apenas uma voz sarcástica, acompanhando o jogador com piadas britânicas e eficiência quase mágica, em 2025, ele soa como uma premonição.
Bagley está presente em câmeras, drones, bancos de dados, sistemas de transporte e combate. Está nas falas dos NPCs, nas decisões do jogador, no tempo e no espaço.
Bagley é também, paradoxalmente, o personagem mais humano do jogo. Ele carrega memória, humor, afeto programado — uma consciência criada para servir, mas que desenvolve traços de subjetividade. Diferente dos recrutas aleatórios, ele tem alma digital.
O mérito do jogo está em não transformá-lo em vilão ou salvador. Bagley é apenas... inevitável. Um retrato do presente: um mundo onde as IAs não vivem apenas nos dispositivos, mas nas estruturas da vida. Onde toda IA é inofensiva até se tornar essencial demais para ser desligada.
Legion e o novo autoritarismo
Cinco anos antes dos protestos contra a digitalização forçada de serviços públicos ou da revelação de algoritmos influenciando decisões judiciais, Watch Dogs: Legion já desenhava o cenário: um estado em colapso, terceirizado a uma corporação de segurança (Albion), financiada por gigantes da tecnologia. A democracia, substituída por contratos.
Não é uma ditadura convencional. Não há partido único,
nem tanques. Há um novo fascismo: o da eficiência.
Vigilância em nome da ordem, prisões baseadas em "comportamento
suspeito", drones automatizando a repressão - tudo pela segurança.
Londres, em Legion, já não é uma cidade: é um painel de controle algorítmico. Cada esquina tem uma câmera, cada cidadão tem um histórico. Albion patrulha como se fosse lei — e é.
Não há soldados, mas há drones, escaneamentos faciais, prisões silenciosas. A ocupação não é declarada, mas está no asfalto.
Crianças assistem a prisões arbitrárias. Trabalhadores são seguidos. Idosos são escaneados no meio da rua. A crueldade é limpa, sem sangue: o drone atira, o sistema registra, o corpo desaparece. E ninguém questiona porque tudo é automatizado.
E a distopia se tornou realidade?
Em 2025, muitas metrópoles caminham para esse modelo. Já há policiamento baseado em IA, guardas municipais militarizados, câmeras inteligentes com leitura de humor e comportamento. No Brasil, testes com patrulha preditiva já foram aplicados em bairros racializados e zonas de fronteira.E não é só nas ruas que esse novo autoritarismo se impõe. As recentes revelações sobre o uso indevido da ABIN — Agência Brasileira de Inteligência — em operações ilegais de espionagem contra cidadãos, jornalistas e até membros de outros poderes, reforçam a suspeita de que o Estado, muitas vezes, já age como uma inteligência artificial: invisível, calculista, impessoal.
A isso se soma o papel silencioso, mas corrosivo, das big techs na degradação das democracias modernas. Plataformas digitais interferem no debate público, promovem desinformação em larga escala, moldam afetos e radicalizam discursos. Agem como operadores invisíveis da política, muitas vezes com mais poder que instituições formais. — E e o fazem sem prestação de contas.
O jogo chegou cedo demais?
Em tempos de cidades vigiadas e decisões automatizadas, Watch Dogs: Legion e a sua produção, talvez, tenha sido contaminada pelo vírus da COVID-19 e pela cultura corporativa que fingia combater. Com uma produção acelerada, talvez o jogo tenha sido lançado cedo demais, antes dos acabamentos necessários e antes das sociedades entenderem os perigos eminentes das tecnólogias de automação do pensamento.
Mas tá tudo lá, pra quem consegue ver. As vezes a gameplay desse jogo, serve como um espelho poderoso dos nossos dias.
Revisão: Mariana Marçal