Perfil

Kyohei Hamura, a peça central de Judgment (Multi)

À melhor história do RGG Studio, o melhor antagonista da série Yakuza.

Judgment
(Multi) tem início em uma história típica do sistema de justiça japonês. O corpo de um jovem yakuza do fundo da hierarquia é encontrado no beco de um bar. Há sinais de que o crime foi cometido por um assassino em série; a vítima teve ambos os olhos removidos após a morte, o que já havia acontecido duas outras vezes a pessoas da mesma organização no passado recente.


A polícia escolhe não fazer relação entre os incidentes, considerando o novo crime um caso isolado, e por ele prendendo o suspeito mais óbvio: um membro de outro grupo yakuza, em guerra com o da vítima, visto pela última vez empurrando-a para dentro do bar.
 
Em mais uma noite no bairro de Kamurocho, Tóquio, um detetive particular entra em uma briga com delinquentes locais que tentaram roubá-lo. No meio da ação, um yakuza — velho conhecido, essencialmente “irmão” do detetive, e aquele mesmo que seria preso mais tarde — aparece para protegê-lo. A ação é julgada desnecessária, mas ele insiste: para ele, punir os inimigos do filho adotivo do chefe é questão de defender a honra da família, não importa o quanto ele se ressinta do rapaz.

É assim que somos apresentados a Kyohei Hamura, capitão da Família Matsugane e antagonista mais importante das próximas horas de jogo. Hamura é uma figura que inspira poder; ele rende tanto dinheiro para os Matsugane que tem mais influência nos rumos do grupo do que o próprio chefe/figura paterna. O primeiro capítulo de Judgment nada mais é do que amostra após amostra desse poder, em todas as cenas em que ele aparece — e as coisas vão continuar assim pelo resto do jogo, que, pouco a pouco, pinta a figura de um dos melhores antagonistas que a franquia Yakuza já criou. Esta é sua história.

“O ilustre Capitão Hamura… sarcástico como sempre.”

Judgment começa com a defesa de Hamura, conduzida pelo advogado Masamichi Shintani com a ajuda daquele detetive de antes, Takayuki Yagami — e a descoberta de sua natureza. De fato, ele não matou ninguém, mas um gosto amargo fica no ar.

Um dos maiores elementos que compõem seu álibi é o fato de que, durante o espaço de tempo em que a acusação afirmava que ele estaria cometendo o assassinato, câmeras de rua o viram completamente bêbado, agredindo um transeunte a troco de nada enquanto deixava a sauna local; uma perfeita pintura do caráter de nosso réu. Nada indica que qualquer retribuição legal surgiu do ocorrido.

Durante a investigação do caso, Yagami descobre que o buraco é mais embaixo. O capitão dos Matsugane pode ser inocente desta vez, mas diversos aspectos indicam que pode haver uma conspiração maior envolvendo este incidente. A teoria de Yagami é a de que Hamura criou uma abertura para outra pessoa cometer o crime, indo, em seguida, criar um álibi para si próprio.
 



Não é, contudo, a função da defesa resolver o caso. Tudo que Shintani e Yagami precisavam fazer era provar a inocência do cliente. O advogado se contenta com tanto, mas o detetive, não; começa aqui, definitivamente, a história de Judgment, com a busca de Yagami pelo cúmplice que acredita que Hamura tem.

Também é neste ponto que a relação entre os dois personagens começa a se desenvolver. As sementes já haviam sido lançadas na primeira cena, mencionada acima; os dois são, em essência, filhos adotivos de um mesmo homem, o patriarca yakuza Mitsugu Matsugane. Yagami, formado em Direito e não exercendo mais a profissão (mas ainda atuando com seus antigos colegas, como agora), é a voz da família no mundo civil; Hamura, o irmão mais velho, o mais rentável, é quem de fato guia os Matsugane pelos mares do submundo.

O ressentimento de um pelo outro é palpável mesmo quando deveriam estar se ajudando. Hamura fala de Yagami com orgulho para intimidar os ladrões e manter a honra da Família Matsugane intacta, mas enquanto apresenta o “irmão” aos novos subordinados, reconta os piores erros da vida do detetive enquanto ri na frente dele. É uma mensagem codificada. “Você pode ser o favorito do nosso pai, mas sou eu quem manda.”

“Eu fiquei a minha vida inteira indo atrás desse sonho por você!”

De fato, é a busca pelo amor e atenção de Matsugane que guia todas as ações de Hamura. À primeira vista, seus ardis por poder, como quando arma para expulsar seu maior rival da família e força a testemunha de seu plano a cometer assassinato, parecem ser só em nome do próprio poder. Existe a preocupação de que Hamura planeje tomar o lugar do patriarca, mas a verdade está bem longe disso.

Décadas atrás, Matsugane expressou o sonho de ter uma família de sucesso. Hamura o ouviu. Ele sabia que o que seu pai queria era impossível sem que sangue fosse derramado — e sujou as próprias mãos para manter limpas as dele.

A crueldade e arrogância do capitão são formas de amor, de certa maneira, apesar de condescendentes. Ele entalhou o próprio nome na maior posição de poder da família por sentir que era o único que poderia carregar tal fardo; todas as outras figuras proeminentes tinham bússolas morais firmes o suficiente, mas ele já havia abandonado tudo há muito tempo.

Em certo ponto da história, Yagami confronta a inação de Matsugane diante de tantas vidas perdidas em seu nome, dizendo que, no passado, ele nunca teria sido ambivalente. O patriarca apenas responde: “Não me faça repetir. Os tempos mudaram. Hamura é a Família Matsugane agora.” 
 

 
As coisas chegam ao ponto de Matsugane inteiramente abandonar o sonho, mas já é tarde demais. Hamura já deixou de lado partes demais da própria humanidade — e já se envolveu com todas as pessoas erradas.

Há um flashback que ilustra a lenta queda do personagem, mostrando a quão fora do próprio alcance o sonho de Matsugane o levou. Na cena, ele é intimidado a seguir colaborando com figuras corruptas, depois de ter completado o que achava ser só mais um trabalho isolado em companhia de seu assassino de aluguel.

Esse assassino, muitos anos atrás, era nada mais do que um informante. Foi ele quem sugeriu a Hamura que começassem a matar pessoas por lucro; a parte mais interessante é que, no início, o capitão resistiu à ideia.

Judgment abre com a impressão de que Hamura é só um bandido sem coração guiado pela sede por poder, mas, conforme as peças do quebra-cabeça se juntam, a história muda. Ele nunca quis estar aqui.

Ele é um fantoche em um palco muito maior do que ele, conforme Matsugane o descreve. Ele é a salvação da família e a bancarrota moral dela. Ele é um homem forçado a tomar uma posição para a qual não está preparado. Ele é o filho mais velho, que faz tudo por todos e nunca recebe agradecimento — e o busca apesar de saber que não o merece.

“Eu já perdi minha chance, mas você ainda pode ter a sua.”

Em sua primeira aparição, Hamura ajuda Yagami em nome da honra da Família Matsugane. Ele faz exatamente a mesma coisa na última vez em que aparece; desta vez, contudo, o custo pessoal para ele é infinitamente maior.
 
Depois de ter sido finalmente quebrado por completo, ele sabe que não existe mais lugar para ele na conspiração em que se envolveu. A decisão que ele faz é a de sair de cena sob os próprios termos, derrubando todos que o forçaram a desempenhar seu papel.

Quando os dois filhos de Matsugane se veem no mesmo lado pela primeira vez, é para que Hamura finalmente pague pelo que causou. Matsugane dissera que tudo havia sido culpa dele mesmo; “eu não era bom com a parte de negócios, e por causa disso você teve de cruzar o limite para nos proteger”.

Talvez seja verdade. Talvez ele tivesse priorizado Yagami demais — dado atenção apenas para o filho que pôde se manter limpo, ainda que só por causa do trabalho sujo do outro o financiando. Talvez os “irmãos” tivessem tido uma relação melhor se Matsugane tivesse tentado mais. 
 



Para Hamura, não importa. São os erros dele que têm de ser corrigidos, e é o que ele faz, não importa o quão tarde. Todos esses anos, ele agiu por amor a Matsugane; no final da história, ele percebe que a maior prova de amor que poderia dar é simplesmente expiar os próprios pecados, e perceber que Yagami nunca deveria ter sido seu inimigo. Um final humilde para um homem que sempre tentou projetar arrogância.

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli

Jornalista formada pela PUC-SP e eterna apaixonada por videogames, especialmente aqueles japoneses de mistério. Sempre tem alguma redação gigante para escrever depois que zera um Yakuza.
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