Análise: Tales From Candleforth (Multi) foca nos puzzles em meio a um conto breve e encantadoramente mórbido

Ajude Sarah a desvendar enigmas, conseguir seus poderes e descobrir a verdade sobre sua avó desaparecida.

em 08/05/2024

No conto, a essência está no número um. Só cabe uma coisa na essência dele, ao redor da qual todas as outras coisas orbitarão. Pode ser a história de uma cena, um recorte, uma situação, um dia, uma pessoa, uma relação, uma ideia, um tema, um mistério, uma reviravolta.

Colocar mais que isso traria o risco de inchar o conto e fazê-lo transbordar seus excessos, tirando o foco daquilo que é o verdadeiro centro. Para não dispersar sua força, o conto precisa enxugar, reduzir e condensar seus esforços para aquilo que mais importa nele. 

Por isso, a brevidade do conto não é um problema, ela é sua arma, sua carta na manga e seu desafio de alcançar um objetivo narrativo e estético com o pouco espaço e tempo ao dispor.

Como é dito no título em inglês, Tales from Candleforth é um conto e mantém a essência da brevidade, mas também tem outras camadas compondo o todo.



Horror, surrealismo e família

Por um lado, o jogo desenvolvido pela espanhola Under the Bed Games é um conto de fadas, com uma criança que terá que se virar em meio a horrores de um mundo contaminado pelo sobrenatural.

No prólogo, jogamos com Dorothy, uma idosa que parece precisar fugir de algo. Após o misterioso desaparecimento dela, entramos na pele de sua neta, Sarah, que irá cumprir as instruções de uma carta da avó para tentar encontrá-la.

Por outro lado, há a melancolia decadente de contos de Edgar Allan Poe, temperados com uma sensibilidade de simbolismo surrealista (há trechos de clara inspiração na obra de Frida Kahlo). Então, mesmo que ainda possamos chamá-lo de jogo de horror e faça uso do grotesco, não se trata da vertente chocante e sanguinolenta do gênero.



Sarah nunca está em perigo concreto e nem ela nem a pessoa que joga vão encarar a punição da morte repetitiva pelos erros, tão comum nos videogames. O que paira é o mistério e a iminência de um destino perverso que ronda a menina e sua família, forçando-a a se expor a forças que desconhece.

Em alguns momentos, fui surpreendido não por sustos, mas pela estética do inesperado. O apelo desse horror está muito mais no lado do inquietante (uma das possíveis traduções para o conceito que Freud chamou de Unheimlich), isto é, da distorção de coisas simples e familiares que, ainda que retenham parte de sua beleza suave, são tornadas incomodamente desconhecidas em sua aparência e significados sombrios.


O departamento visual sabe aproveitar muito bem essas nuances de simplicidade cotidiana de onde emergem traços macabros de uma verdade mais sinistra e perigosa. Todo o jogo parece um livro ilustrado e, ainda que alguns desenhos sejam modestos, há as partes que se destacam com a união detalhada de encanto e assombro, reforçada pela música soturna de piano.

A brevidade do jogo-conto não significa apenas que ele é curto (levei quase três horas e meia para finalizar), mas também que a história não pretende se desenvolver além do principal. Na trama, que não tem tradução para português brasileiro, vemos o começo, recebemos pela carta de Dorothy o objetivo de encontrar três artefatos em locais diferentes da região e, assim que conseguimos, chegamos ao clímax e ao final um tanto súbito que o acompanha.

Dessa forma, todo o miolo do enredo é uma jornada de puzzles. Até tem texto no meio disso, mas a sensação é a de um grande interlúdio narrativo antes de poder entregar o final da trama.

“Espere, acho que vi isso em algum lugar”

Cada capítulo tem um local para explorar e solucionar enigmas. Nós não controlamos Sarah diretamente, apenas passamos de um cenário para outro ao clicar nas setas das laterais de cada lugar, e também usamos o cursor para interagir com os objetos. Até temos um pequeno inventário para carregar coisas, mas boa parte dos quebra-cabeças são questões de associação lógica, como acertar uma sequência, mover itens para formar um padrão correto e ligar/desligar conjuntos. Tem até um de empurrar coisas, no estilo Sokoban.

Solucionar enigmas cria o efeito cascata em que uma coisa ajuda a abrir outra, até chegar ao objetivo final do capítulo. Muitos puzzles também seguem a pegada surrealista e é a nossa mente que faz a conexão entre os problemas e as dicas, pois elas não existem de uma forma clara.




É daquele tipo em que você acha uma sequência de números e tenta usá-la para alinhar algo do outro lado da sala sem qualquer motivo real além da coincidência de terem a mesma proporção. Uma coisa ou outra até fica obscura e cheguei a empacar em alguns puzzles, mas, na maior parte, achei que a lógica-de-não-haver-lógica foi implementada de forma intuitiva e prazerosa. Infelizmente, não há sistema de dicas para quem ficar travado.

Assim como o jogo é humilde de uma forma geral, seus problemas também o são. Há alguns de movimentação e de lógica, que poderiam ser suavizados com algumas mudanças, mas que, da forma que estão, não chegam a impedir o bom proveito.




Um exemplo prático é que senti falta de uma ferramenta para destacar os elementos com os quais podemos interagir em uma tela. Isso não impactaria no desafio dos puzzles (afinal, não é um jogo de objetos escondidos), mas nos ajudaria a saber quais recursos temos para solucionar os enigmas e evitaria que tivéssemos que recorrer ao método de “clicar adoidado em toda parte” para tentar descobrir o que está faltando. Isso tira parte da imersão cognitiva que, no restante do tempo, é bem intuitiva.

Algumas partes de puzzles são bem difíceis de enxergar, o que também contribui para a indesejada sensação que surge quando o processo de tentativa e erro substitui o de raciocínio e associação lógica.

A propósito, é possível mudar de uma tela para outra usando os direcionais, o que é mais prático do que usar o cursor para clicar nas setas das laterais, mas isso é algo que o jogo não ensina.



ContoS no singular

Talvez o principal problema seja a expectativa gerada pelo título, que está no plural: Contos de Candleforth. A descrição oficial do jogo também gera essa ideia ao falar que “Tales From Candleforth é uma coleção de contos de fadas” e “neste primeiro conto, vamos conhecer Sarah”.

Ou seja: é passada a ideia de que há mais contos por vir, o que poderia ser por DLC ou, talvez, jogos separados, como na série The Dark Pictures Anthology. Se for o segundo caso, seria bom que houvesse subtítulos para diferenciá-los. A questão é que não há confirmação de que realmente haverá outras histórias para a suposta coleção, que pode ser apenas uma menção fictícia, uma vez que as desventuras de Sarah acontecem dentro de um livro de biblioteca, também chamado Tales From Candleforth.

No fim das contas, o que temos até agora tem a faca de dois gumes de ser sucinto o bastante para deixar a sensação de que deveria haver mais na história e bom o bastante para dar a vontade de ver esse conto ser enriquecido ao fazer parte de uma pequena coletânea.



Fica a vontade por mais “Contos da Travessia da Vela”

Tales from Candleforth é um point-and-click levemente mórbido e curto, bom o bastante para que eu deseje que o plural do título se torne realidade e ganhe a forma de uma coletânea de pequenas histórias que somem suas forças em uma obra maior. Por enquanto, o conto de Sarah agrada, os puzzles mexem com nossas associações lógicas e a arte une habilmente assombro, encanto e surrealismo, compensando a sensação de que a experiência acaba antes da hora.



Prós

  • A arte desenhada à mão dá ares de livro antigo ilustrado;
  • A música melancólica de piano, os tons de cores envelhecidas e a simbologia surrealista das imagens formam uma atmosfera inquietante de mistério macabro;
  • A narrativa entrega um conto satisfatório, ainda que simples e curto;
  • A gameplay acontece com muitos puzzles interessantes e, em geral, intuitivos, que requerem olhar atento para associação de padrões.

Contras

  • Alguns podem achar a campanha curta demais, principalmente pela expectativa de coletânea de contos que o título e a descrição oficial do jogo indicam;
  • Senti falta de recurso para destacar os elementos interativos e evitar a obrigação de ficar procurando a esmo;
  • Alguns elementos visuais são difíceis de notar;
  • Sem português brasileiro.
Tales from Candleforth — PC/PS4/PS5/XBO/XSX/Switch — Nota: 7.0
Versão utilizada para análise: PS5

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital concedida pela Feardemic
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Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies. Veja minhas análises no OpenCritic.
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