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Análise: Children of the Sun (PC) é o que acontece quando Hotline Miami e killer7 se encontram

Mistério, conspiração, ultraviolência e ocultismo calcam a atmosfera na nova aposta da Devolver Digital.



É muito interessante olhar para killer7 (GC/PS2) em retrospecto, uma vez que é um título que consiste em uma abordagem muito pouco convencional para o mercado na época, especialmente se levarmos em consideração que sua trama, atmosfera, e jogabilidade pouco convencionais precisaram da ajuda do figurão Shinji Mikami para bancar o projeto na Capcom.


Anos depois, Hotline Miami (Multi) chegou em um contexto diferente e conseguiu se aproveitar de sua condição de jogo indie para chamar atenção para o cenário no sentido de mostrá-lo como um terreno fértil para ideias diferenciadas. Children of the Sun claramente carrega esses dois games em seu DNA ao mesmo tempo em que consegue oferecer uma experiência única.




A nível de gameplay, a nova aposta da Devolver é, essencialmente, um quebra-cabeça disfarçado de jogo de tiro. No papel de uma misteriosa garota mascarada, cada fase consiste em se posicionar a um raio de distância do território inimigo — e, aqui, trata-se literalmente de um raio no sentido matemático mesmo, visto que ela se movimente sempre em uma circunferência — e, com um único projétil, dar cabo dos cultistas que guardam o local.

Uma vez que o tiro é disparado ele precisa necessariamente acertar alguém ou algum objeto interativo. No instante em que o alvo é abatido, o tempo congela e precisamos aproveitar a janela para acertar o próximo até, enfim, limpar a área. A sacada aqui é agir com certa velocidade a fim de criar assassinatos em combo que aumentam a pontuação, e ficar de olho no ambiente ao redor para manter essa sequência, sendo possível acertar pássaros e tanques de gasolina no intuito de manter o disparo “vivo” até a conclusão da fase. Nota-se que o tempo só corre enquanto o tiro está no ar em direção ao seu próximo alvo, remetendo à mecânica principal de Superhot (Multi).




Ao progredir em sua história, a garota aprende novas habilidades psicocinéticas que, efetivamente, servem de power-up e ajudam também a manter a jogabilidade sempre fresca, embora a campanha em si seja bem curta, sendo possível concluí-la em aproximadamente quatro ou cinco horas. 

Por exemplo, acelerar a velocidade da bala para aumentar sua potência ou fazê-la mudar de direção em pleno ar são mecânicas adicionais que vão sendo implementadas aos poucos, bem como inimigos diferenciados com coletes à prova de bala ou com campos de força que exigem um planejamento adicional na hora de serem encarados. A chave do sucesso está na otimização da estratégia para reduzir ao máximo movimentos inúteis que podem colocar o progresso a perder.



A questão da pontuação também ajuda a manter a vida útil do título, uma vez que sempre é feito um cálculo que envolve variáveis como distância percorrida pelo trajeto, tempo despendido na fase, parte do corpo do oponente atingida ou se o alvo está em movimento. Ressalta-se também que, embora haja um placar global com as pontuações, o fator replay reside especificamente na possibilidade de múltiplas resoluções de cada estágio. Para complementar, o trajeto percorrido pelo tiro é sempre mostrado em uma visão panorâmica, o que nos ajuda a ter noção da magnitude do estrago que produzimos na área. 

Falando nisso, embora o jogo seja curto, cada localidade de Children of the Sun consegue ser especial, como o posto de gasolina ou do Motel NMH (referência a outra obra do Suda51, diretor do killer7). A arquitetura geral de cada fase é bastante interessante, embora haja a frustração eventual de ter que falhar algumas vezes no intuito de descobrir inimigos escondidos dentro de certas construções dentro das quais a visão da atiradora, que acontece antes do primeiro disparo, seria normalmente incapaz de identificar.




Mais do que simplesmente marcantes, a percepção da progressão desses cenários é suficiente para entendermos a história, uma vez que aos poucos é possível perceber que a atiradora está em uma jornada pela estrada atrás do líder cultista, cujo passado vai sendo revelado alternadamente através de cutscenes estáticas compostas por ilustrações muito potentes em um estilo de revista pulp, algo feito por The Fabulous Fear Machine (PC), mas que tem uma execução muito superior nesse título justamente pela ausência de texto expositivo, seja por meio de narrações ou de diálogos.

Eventualmente, o título decide brincar um pouco com suas próprias capacidades ao implementar uma fase com carro — que é bem ruinzinho de se dirigir — antes de entrar no estilo habitual no qual precisamos acabar com todo o comboio à nossa frente ainda em movimento. A despeito do controle capenga do veículo, você vê um cuidado constante do René Rother, o game designer principal do game (um cara que parece bem humilde no ex-Twitter), para manter tanto a jogabilidade quanto a história igualmente envolventes.




Isso é algo que tanto o Hotline Miami quanto o killer7 fazem bem, especialmente por ambos serem altamente atmosféricos e lidarem com essa temática de cultos e conspirações. Vale notar que a história pode ficar um pouco exagerada ou mesmo pesada para quem não é chegado nesse tipo de clima ou tópico, o que faz com que o produto acabe assumindo uma faceta um pouco mais nichada. 

É perceptível também que qualquer extensão da duração seria capaz de atrapalhar esse ritmo tão bem tecido, mas ele ainda assim poderia ser um pouco mais longo, uma vez que termina deixando uma impressão de “quero mais” em quem o completa. Novamente, a questão dos placares e das múltiplas resoluções para cada quebra-cabeça ajudam, mas ainda não são suficientes para saciar por completo.




Ainda assim, Children of the Sun é uma experiência única. Ela pode ser um pouco derivativa das obras citadas, mas não muda o fato de que o jogo tem uma identidade própria e cheia de personalidade ao simplificar sua jogabilidade e apostar na variedade de situações nas quais essa pode ser utilizada, sustentando com maestria o interesse do jogador. Pena que a curta duração acaba por minar um pouco o impacto desse estiloso suspense paranormal regado a ocultismo e paranoia.

Ah, um adendo: o Suda é muito fã da Devolver a ponto de, inclusive, ter sido o anfitrião de uma das conferências da (finada) E3 da empresa. Se ele não jogou Children of the Sun, eu sou uma geladeira. 

Prós

  • Jogabilidade sólida aplicada aos quebra-cabeças muito bem planejados;
  • Encontra força ao simplificar a jogabilidade e aplicá-la em situações suficientemente distintas;
  • Campanha intrigante e que é capaz de segurar a atenção do jogador do começo ao fim;
  • Muita competência na concepção da atmosfera que ajuda a amarrar a jogabilidade e o enredo bruto.

Contras

  • Mesmo com fator replay competente, a campanha ainda é curta demais;
  • A arquitetura que esconde alguns inimigos pode ser mais incômoda do que inventiva;
  • Estilização e temas da narrativa podem torná-la um pouco exagerada, dependendo do perfil do jogador;
  • A fase no carro é bem intencionada, mas manobrar o veículo o faz parecer com um caminhão de doze eixos.
Children of the Sun — PC — Nota: 7.5
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Devolver Digital


É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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