Analógico

Bloodborne (PS4): Yharnam e as cidades oníricas de Lovecraft e Lord Dunsany

No aniversário de nove anos de Bloodborne, vejamos uma comparação literária com cidades de sonho e pesadelo.

em 25/03/2024

É sabido que a obra do autor americano H. P. Lovecraft (1890–1937), que deu o formato moderno ao antigo horror cósmico, foi uma grande inspiração para Bloodborne. O jogo da FromSoftware, encabeçado pelo diretor Hidetaka Miyazaki, foi lançado no Ocidente em 2015, no dia 25 de março, e tornou-se para muitos, inclusive para mim, uma porta de entrada ao punitivo estilo de jogos que vieram a ser conhecidos como soulslike.

O parentesco entre o jogo e os escritos do autor não é algo abertamente explicado por Miyazaki, então tudo o que podemos fazer é inferir nós mesmos as semelhanças e apontá-las de uma forma que uma aprofunde e lance perspectivas sobre a outra — os estudos comparativos são uma vertente da teoria e crítica da arte, afinal.


Assim, o mais óbvio grau de sangue entre essas obras quase um século distantes entre si provavelmente está no panteão de horríveis deuses cósmicos que ambas carregam no peito, e também no efeito de insanidade que acomete aqueles que buscam desvendar os segredos enterrados pelo tempo. Lovecraft diz, em seu ensaio sobre literatura de horror sobrenatural:
“A coisa mais misericordiosa do mundo é, segundo penso, a incapacidade da mente humana em correlacionar tudo o que sabe. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude, e não fomos feitos para ir longe. As ciências, cada uma empenhando-se em seus próprios desígnios, até agora nos prejudicaram pouco; mas um dia a compreensão ampla de todo esse conhecimento dissociado revelará panoramas da realidade e do pavoroso lugar que nela ocupamos, de modo que enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos dessa luz fatal em direção à paz e ao sossego de uma nova idade das trevas.”
A mesma ideia de que o conhecimento é uma porta para a loucura cria uma mecânica em Bloodborne: há um atributo chamado Discernimento (Insight), que é aumentado quando descobrimos certos chefões e locais, e cujo acúmulo tem o efeito de passarmos a ver e ouvir coisas que não podíamos antes, como os mensageiros do sonho do caçador, a própria boneca que canaliza nossos ecos para passarmos de nível, a canção das terríveis Lanternas do Inverno e, de forma mais assombrosa, as monstruosas Amígdalas que infestam a cidade, observando tudo sinistramente.

No entanto, é de outro ponto que quero tratar hoje. Outra semelhança não confirmada declaradamente, mas perceptível na arquitetura espiritual do lugar onde se passa Bloodborne.



Yharnam

Com sua fantasia sombria tingida de sangue e mistério, Bloodborne carrega uma aura de pesadelo barroco que tem no palco da história a verdadeira protagonista: a terrível cidade de Yharnam.

De forma sucinta, Yharnam e seus arredores são o cenário onde acontece a Noite da Caçada, quando seus habitantes, intoxicados pela dependência do sangue antigo, transformam-se nas feras que espreitavam em seus corações, ávidas por brutalidade.

Por trás de tudo, há os Grandes Deuses; as fundações ancestrais Pthumerianas nos labirintos que jazem nas profundezas; a universidade de Byrgenwerth, que deseja ascender a humanidade pelo Discernimento; a Igreja da Cura, que almeja o mesmo, mas por meio do sangue antigo; e também os caçadores, que perseguem as feras e correm o risco de, em sua sede por sangue, tornarem-se monstros eles também.


Algo que impressiona em Yharnam é a arquitetura urbana, repleta de pináculos e torres que dão uma verticalidade fenomenal e tão grandiosa que chega a ser sufocante, como se a cidade empilhasse século em cima de século de construções vertiginosas e ornamentadas para expressar na pedra esculpida toda a convulsão que se retorce no interior.

Delineada como um organismo complexo, a cidade tem uma alma, mas está contaminada, enlouquecida na alienação que ignora a própria putrefação inexorável. 

Cidades antigas e insondáveis formaram alguns dos elementos preferidos de certos autores de fantasia do início do século XX, como Robert E. Howard (criador de Conan, o Bárbaro), Clark Ashton Smith e também H. P. Lovecraft. Antes de todos esses, foi Lord Dunsany quem se aventurou no tema, no longínquo ano de 1912, mas vamos antes focar no escritor dos mitos de Cthulhu.

Kadath e as cidades dos sonhos

Lovecraft não foi apenas o patrono do horror cósmico. Entre 1919 e 1927, ele escreveu contos diferentes em uma fase conhecida como o Ciclo dos Sonhos, que deu fruto a contos como Celephaïs, O Navio Branco, Os Outros Deuses e Os Gatos de Ulthar.

O ciclo teve fim com A Busca Onírica por Kadath, uma rara incursão do autor em textos mais longos, mas que chama atenção para nosso tema porque a tal Kadath é uma cidadela desconhecida onde habitam os Grandes Deuses. O protagonista, Randolph Carter, adentra o mundo dos sonhos em busca desse lugar ermo, como diz o título do livro. A intenção dele, no entanto, é ali descobrir informações sobre a localização de outra cidade ainda mais incógnita, que lhe apareceu em sonhos, mas da qual não sabe nem o nome.



A descrição da cidade é de um lugar grandioso, um mistério além da compreensão humana, e já inicia o livro assim:
"Por três vezes Randolph Carter sonhou com a cidade maravilhosa, e por três vezes perdeu-a enquanto se detinha no alto do terraço que a dominava. [...] Quando pela terceira vez acordou sem descer os lances marmóreos e sem explorar as silenciosas ruas ao pôr do sol, rezou com paciência e fervor para os deuses ocultos dos sonhos que habitam com os todos os caprichos divinos acima das nuvens na desconhecida Kadath, em meio à desolação gelada aonde nenhum homem se atreve. Porém, os deuses não ofereceram resposta e não fizeram menção de ceder [...].

Por fim, farto de ansiar pelas cintilantes ruas ao pôr do sol e pelas crípticas estradas que cortavam as colinas por entre telhados ancestrais, e incapaz de afastá-las dos pensamentos, fosse no sono ou na vigília, Carter decidiu aventurar-se onde homem nenhum jamais havia estado e desafiar os gélidos desertos mergulhados na escuridão onde a desconhecida Kadath, envolta em nuvens e coroada por estrelas inimaginadas, abriga secreta e noturna o castelo de ônix dos Grandes Deuses."
A inspiração para a cidade onírica veio de um sonho inquietante do próprio autor, que ele descreveu em carta da seguinte maneira:
"Várias noites atrás sonhei com uma estranha cidade — uma cidade repleta de palácios e cúpulas douradas, situada em um vale entre cordilheiras de terríveis colinas cinzentas [...] Eu via, por assim dizer, tudo ao mesmo tempo; sem as limitações impostas pelas direções. [...] Lembro-me de uma vívida curiosidade em relação à cena, e de um esforço agonizante para recordar sua identidade; pois eu sentia que a conhecia bem e que, se conseguisse lembrar, seria levado de volta a um período muito remoto — milhares de anos atrás, quando algo vagamente horrível tinha acontecido. Em um dado momento estive a um passo da revelação e sucumbi a um surto de medo frenético, embora eu não soubesse o que deveria lembrar."
O sonho também é uma temática muito importante em Bloodborne. Ali, nosso personagem é um caçador que vive e morre em um ciclo no qual não consegue mais distinguir entre sonho e realidade. Ele ou ela sempre retorna ao local conhecido como Sonho do Caçador e, de lá, parte mais uma vez para a noite da caçada. A terrível verdade é que esse sonho sangrento é um desígnio imposto pela Presença da Lua, um dos Grandes Deuses que não permitirá a fuga do pobre caçador, não importa quantas vezes morra nos pesadelos que circundam a mitologia de Yharnam e suas fronteiras.

Ainda que Kadath faça parte do legado de veneração a cidades míticas de sublime e inescrutável grandiosidade, veremos dois pequenos trechos de criações de Lovecraft que dão a pitada de horror que falta para enlaçar o parentesco com Yharnam.



Thalarion e Xura

O ponto que mais diretamente me trouxe a sensação de similitude está no conto O Navio Branco, em que um faroleiro assolado pela solidão é levado pelo devaneio e sobe a bordo da tal embarcação para um tour pelas terras dos sonhos. Leia a seguir mais dois trechos da verborragia lovecraftiana:
Enquanto o Navio Branco se afastava em silêncio dos terraços de Zar, divisamos no horizonte à frente os coruchéus de uma cidade esplendorosa; e o homem disse, “Eis Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, onde moram todos os mistérios que o homem tentou em vão desvendar”. 

Olhei outra vez, mais de perto, e notei que a cidade era maior do que qualquer outra que eu tivesse visto ou sonhado. Os coruchéus dos templos desapareciam nos céus, de modo que era impossível divisar seus cumes; e além do horizonte estendiam-se as muralhas cinzas e sombrias por detrás das quais se viam apenas alguns telhados, bizarros e soturnos, mas adornados com frisos trabalhados e formosas esculturas.

Eu ansiava por entrar nessa cidade incrível e a um só tempo repulsiva, e implorei ao homem de barba que me deixasse no píer junto ao enorme portão lavrado Akariel; mas ele, cheio de bondade, negou meu pedido dizendo:

“Muitos já adentraram Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, mas ninguém retornou. Lá não há nada além de demônios e criaturas desvairadas que perderam a humanidade e de ruas brancas com as ossadas insepultas dos que olharam para o eídolon Lathi, que preside a cidade.”

[...] Então chegamos a um litoral agradável com flores de todas as cores, onde lindos bosques e arvoredos radiantes estendiam-se até onde a vista alcançava sob o calor do sol meridional. Dos caramanchões além do horizonte vinham explosões de música e trechos de harmonia lírica intercalados por risadas tão deliciosas que apressei os remadores para chegarmos o mais rápido possível àquela cena. O homem barbado não disse uma palavra, mas ficou me observando enquanto nos aproximávamos da costa salpicada de lírios.

De repente uma brisa cruzou os prados floridos e os bosques folhosos e trouxe consigo um perfume que me fez estremecer. O vento foi ganhando força e o ar encheu-se com o odor letal e pútrido das cidades flageladas pela peste e das covas abertas. E enquanto nos afastávamos como loucos daquele litoral abominável o homem de barba enfim disse: “Eis Xura, a Terra dos Prazeres Inalcançados.”
Essas pequenas passagens entregam apenas o suficiente de antiguidade, decadência e morbidez para a imaginação transformá-los em regiões lúgubres de soulslikes. Para mim, a descrição de Thalarion trouxe a associação de imediato e, pelo paradoxo do horror, tive o anseio de ver dentro das muralhas e atravessar suas ruas malditas como um dia fiz também em Yharnam, Lordran, Lothric e Boletaria.



Lovecraft disse em carta a um amigo que estranheza e antiguidade são os dois elementos que mais atraem sua imaginação. Para quem joga videogames é fácil entender o poder de sedução que essas qualidades exercem sobre nós. Quantos RPGs fazem uso delas? Quantas ruínas misteriosas atravessamos? Quantos monstros encaramos durante as viagens por terras distantes? Esses locais repulsivamente estranhos impõem o medo do desconhecido (a forma de medo mais antiga, pregava Lovecraft) e, ao mesmo tempo, incitam a curiosidade, aquela inerente vontade de entendimento que é o grande motor do conhecimento humano.

As cidades da FromSoftware, especialmente Yharnam, têm antiguidade e mistérios estranhos de sobra e permitem aos jogadores mais sensações e impressões do que conhecimento e entendimento, deixando sempre a noção de que nunca as desbravamos por completo. Sempre haverá uma tumba mais profunda e mais antiga que jamais desvendaremos. A lacuna é parte do apelo no imaginário de quem percorre a Noite da Caçada, indo e vindo dos sonhos do caçador.



Um anexo: Lord Dunsany

Como a comparação de Yharnam com Lovecraft é mais aproximada, esta parte tem um quê de apêndice, mas está aqui porque, se Yharnam teve inspiração em Lovecraft, podemos dizer que Lovecraft teve inspiração em Lord Dunsany (1878–1957).

O americano ainda não era pai de Cthulhu quando leu os contos do irlandês e reconheceu as semelhanças de olhar artístico, elogiando-o em cartas a amigos e criando contos com linhas de semelhança às vezes muito diretas, como no caso do conto Celephaïs, que é basicamente uma reimaginação de A Coroação do Sr. Thomas Sharp, de Dunsany. Ambos envolvem cidades orientalistas maravilhosas, mas não exibem terrores sublimes. O olhar artístico em questão é uma vertente romântica. Como explicou o próprio Dunsany:
“O sonho, a subjetividade exaltada, o apelo à sensibilidade, o culto do passado, as noções de transcendência e o pendor para o sombrio, o grotesco e o sobrenatural, todos fazem parte da atmosfera do Romantismo.”


Tanto A Busca Onírica por Kadath como O Navio Branco estão repletos de todos esses traços. Também podemos dizer que O Navio Branco surgiu de ideias dunsanianas, compartilhando a mesma ideia de uma viagem de barco pelas terras dos sonhos do conto Dias Ociosos no Yann. Nesse conto temos uma pequena menção a uma cidade mais próxima do horror, quando o protagonista narra:
“Expliquei a eles que minha imaginação habitava mais o deserto de Cuppar-Nombo, nas redondezas da bela cidade azul chamada Golgoth, a Condenada, guardada por lobos e suas sombras, e completamente desolada por anos e anos por causa de uma maldição que os deuses uma vez proferiram em sua ira e que não conseguiram desfazer desde então.”
O conto “Como alguém chegou, como fora previsto, à Cidade do Nunca” fala de como o protagonista subiu ao topo da montanha mais alta para chegar à mítica cidade, apenas para encontrar um mistério maior:
“Ao se aproximar do talude mais afastado da cidade, onde habitante algum circulava, e olhar para a direção na qual nenhuma das casas estava voltada com suas janelas róseas, viu subitamente ao longe uma cidade ainda maior, que apequenava as montanhas. Quer aquela cidade tivesse sido construída sobre o crepúsculo, quer se erguesse das costas de algum outro mundo, ele não sabia dizer. Viu que ela dominava a Cidade do Nunca e empenhou-se em chegar até lá; mas a visão desse imensurável lar de colossos desconhecidos fez com que o hipogrifo entrasse em pânico, e nem o cabresto mágico, nem nada que ele fizesse conseguia fazer com que o monstro voltasse o olhar para a gigantesca cidade. [...]

Por fim, dos arredores desertos da Cidade do Nunca, onde nenhum habitante caminhava, o cavaleiro voltou-se lentamente em direção à terra e descobriu por que todas as janelas voltavam-se para esse lado: os habitantes do crepúsculo olhavam para o mundo, mas não para algo que era maior que eles.”
Para finalizar, trago um trecho do conto A Provável Aventura dos Três Literatos, que não trata de uma cidade, mas de uma fortaleza que me fez pensar de imediato no Pesadelo de Mensis, a última área de Bloodborne, representando bem o sentimento de quando primeiro encaramos o enorme perigo que espreita nossa chegada ao local. Na história, três ladrões conseguem pegar o que foram buscar ali, mas a fuga é interrompida por uma sinistra luz do alto:



“Chegaram em silêncio ao pé da escadaria. E sucedeu que, no instante em que se aproximavam em segurança, na calada da noite, alguma mão em um quarto elevado acendeu uma luz perturbadora, acendeu-a e não emitiu nenhum som.

Por um momento poderia ter sido uma simples luz, fatal como a essa altura uma luz assim poderia bem ser; mas quando ela começou a segui-los como um olho e a ficar cada vez mais vermelha ao observá-los, foi então que até mesmo o otimismo se desesperança.

E Sippy, muito imprudente, tentou fugir, e Slorg, com igual imprudência, tentou se esconder; porém Slith, bem ciente de por que a luz havia sido acendida naquele quarto secreto e de quem a acendera, saltou sobre a orla do Mundo e ainda está caindo, afastando-se de nós, na escuridão silenciosa do abismo.”
Bem como eu, desesperado diante do Cérebro de Mensis que se acende para me receber com sua luz do frenesi toda vez que chego ao pesadelo sobre o qual ele vigia.

Revisão: Ives Boitano
Imagens: Bloodborne Official Artworks

Fontes: 
DUNSANY, Lord. Contos maravilhosos. Tradução: Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte & Letra, 2011.
LOVECRAFT, H. P. A busca onírica por Kadath. Tradução: Guilherme da Silva Braga. São Paulo: Ed. Hedra, 2012.
LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. Tradução: Celso M. Parcionik. São Paulo: Iluminuras, 2007.

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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