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Análise: Shanghai Summer (Multi): 12 dias para resolver arrependimentos e anseios da vida

Na pele de Tu Baichuan, precisamos nos livrar das amarras do passado para seguir em frente.


Às vezes, os melhores jogos parecem ser aqueles que vemos sem pretensão alguma. Digo por experiência própria, pois só soube de Shanghai Summer ao ver um trailer deste título de aventura depois do seu lançamento, em 8 de fevereiro.


A princípio, a criação do FUTU Studio parece ser um projeto modesto — afinal, não temos aqui gráficos extraordinários e animações elaboradas —, com uma história fragmentada e um tanto confusa. No entanto, conforme avançamos na trama, logo percebemos a profundidade de todos os elementos que compõem essa aventura.

12 dias para colocar as engrenagens no lugar

A história de Shanghai Summer se passa, como o nome sugere, em Xangai, China, no ano de 2003. Neste início de século XXI, acompanhamos o dia a dia de Tu Baichuan, um recém-graduado na faculdade que administra a livraria do pai de Su Jingxian, uma caloura na mesma instituição em que Baichuan se formou. A vida é relativamente pacata para o rapaz, porém ele sofre constantemente com sonhos lúcidos relacionados ao seu passado e a uma ex-namorada da época de colegial, Ji Qiuyu.

Certo dia, um misterioso gato preto falante aparece para Baichuan e explica que as “anomalias” que o protagonista está vivenciando são diferentes linhas de realidade e que o “Baichuan do mundo real” sofreu graves consequências por suas escolhas do passado — e Qiuyu parece estar ligada a elas. A partir das explicações dadas pelo felino, o rapaz tem 12 dias para se livrar das amarras do passado e escolher qual caminho seguir: encarar a realidade nua e crua ou continuar sua vida tal qual está.


Para não dar muitos spoilers sobre a trama em si, é importante ter em mente que a narrativa se apoia drasticamente no backtracking — não no sentido de ir e voltar a lugares para realizar missões, mas sim nos nós temporais que compõem cada um dos 12 dias do verão de Baichuan. Cada dia é composto por alguns pontos-chave, mas, se quisermos uma analogia mais direta, é como se tivéssemos 12 capítulos diferentes com vários intertítulos.

Em alguns momentos, não temos acesso a muitas escolhas e o próprio jogo nos obriga a visualizar um final ruim para que possamos voltar àquele ponto específico e habilitar escolhas diferentes para dar prosseguimento à jornada de Baichuan; em outros, podemos deliberadamente tomar decisões, seja por insistência (por exemplo, decidir voltar para casa sem conversar com algum personagem, mesmo que um primeiro diálogo reforce a importância de fazer essa interação), seja por curiosidade (“o que acontece se, em vez de eu optar por A, eu decida fazer B?”).

O mais interessante nesses loops temporais pelos quais Baichuan viaja é que nem sempre as escolhas trazem consequências para o protagonista em si, mas sim para as pessoas com quem ele se relaciona. Então, embora esse backtracking narrativo soe negativo à primeira vista, logo nos vemos na tentação de explorar todas as possibilidades possíveis a fim de chegar ao desfecho verdadeiro.

Curto e profundo

A duração aproximada de Shanghai Summer é de cinco horas, fazendo com que ele seja classificado como “muito curto”. No entanto, esse número em nada reflete na experiência proporcionada pela narrativa, que traz temas importantes e atuais.

Quantas vezes não ficamos com medo de seguir em frente por temer as consequências do futuro? E quantas outras mais não nos arrependemos por não termos agido quando mais precisamos? Às vezes, não é mais fácil apenas seguir o fluxo, sem mudar nada, porque está tudo bem?


Sem tirar nem pôr, Shanghai Summer traz aquele quê de efeito borboleta, em que uma ação gera uma reação e nos vemos constantemente voltando no tempo para refazer decisões. Às vezes, elas não parecem ruins para nós, mas e para quem está ao nosso redor? Os desfechos foram positivos no fim das contas?

Reflexões à parte — afinal, trata-se de um título claramente voltado à reflexão —, a jogabilidade é fluida e muito dinâmica, bastando apenas controlar Baichuan para lá e para cá, interagindo com os habitantes da cidade e também com outros elementos nos cenários. Essas interações geram tópicos no diário do protagonista, aos poucos revelando os aspectos de suas vidas.


Embora acabemos tropeçando em alguns clichês narrativos no meio do caminho, todos os personagens do círculo social de Baichuan são bem-construídos e verossímeis, sendo difícil não se conectar a eles de algum modo. Contudo, o ponto mais interessante de Shanghai Summer está nas poucas partes de reconstrução de fatos.

A primeira vez na qual temos contato com elas é com o diário de Qiuyu, que o misterioso gato preto entrega ao protagonista. Em posse dele, precisamos reconstituir os relatos escritos pela garota com base em tópicos adquiridos durante a interação com objetos e outros personagens. Essa atividade se repete mais algumas vezes na trama, nos dando mais pano de fundo para entender o tipo de relação que Baichuan e Qiuyu tinham.


Outro modo da reconstrução de fatos é o chamado “Inquérito”, no qual Baichuan é apresentado a diversos tópicos que podem estar ligados às suas amarras. Não é possível fazer escolhas erradas, uma vez que as necessárias para seguir adiante estão destacadas em rosa, mas é interessante ver essas correntes se quebrando e libertando o rapaz para viver a realidade.

Como comentei, esses momentos são poucos, mas não considero que o jogo precisasse de mais deles. Afinal, embora a história tenha como base o crescimento de Baichuan frente às consequências da vida real, é na interação do dia a dia que a aventura se sustenta.

A simplicidade é uma faca de dois gumes

Tudo é simples em Shanghai Summer, das artes às faixas que compõem a trilha sonora, podendo enjoar ao longo do tempo, um problema que também aflige os cenários da aventura. Tirando a parte das músicas e a repetição constante de locais que Baichuan pode visitar, que realmente sofrem com a faixa de diversidade, eu gostei bastante dos aspectos visuais do jogo, em especial o efeito da chuva, mas acredito que pessoas mais exigentes podem reclamar que o título de FUTU Studio merecia melhor polimento nos sprites.

Em contrapartida, as CGs são bem bonitas e, embora escassas, com certeza dão um charme a mais. Infelizmente, não há uma galeria externa para rever as CGs em uma resolução melhor, então precisamos nos contentar com a visualização oferecida pelo diário de Baichuan.


Um detalhe interessante é que existem 14 cartas de uma série fictícia envolvendo polvos espalhadas pelos cenários. Encontrá-las acaba sendo uma motivação para explorar todos os cantinhos da Xangai fictícia, em especial para colecionistas de plantão.

Para fechar a parte técnica, infelizmente a tradução para o português brasileiro deixou a desejar: além de ser uma tradução literal, muito provavelmente (mal)feita por uma máquina (tipo Google Tradutor), ela impacta diretamente no entendimento da história como um todo. Desse modo, fui obrigada a reiniciar a jornada em inglês — a tradução para esse idioma, embora melhor em termos de qualidade, ainda possui alguns tropeços aqui e ali que poderiam ter sido facilmente corrigidos com uma revisão mais minuciosa da qualidade.

Felizmente, a desenvolvedora está ciente das falhas que o jogo possui até o momento e está comprometida em aplicar melhorias em diversos pontos, como correção de bugs, adição de outras CGs para os finais ruins, entre outros. A título de curiosidade, quando baixei o jogo no Steam, todas as conquistas estavam em chinês e eu não tinha ideia do que eu havia desbloqueado; alguns dias depois, contudo, esse texto já tinha sido traduzido para outros idiomas.

Um convite à reflexão

Shanghai Summer pode não ser um jogo de saltar os olhos, mas é, com certeza, mais uma recomendação para quem gosta de narrativas introspectivas e densas. É difícil não se colocar no lugar de Baichuan; afinal, é muito improvável não termos vivido, em maior ou menor grau, as situações pelas quais o rapaz passa.

Mesmo com algumas falhas e uma simplicidade que é uma faca de dois gumes, este título de aventura é um belo convite à reflexão. Talvez Shanghai Summer não seja a resposta para os nossos problemas, mas certamente pode ser aquele empurrãozinho que faltava para finalmente encararmos nossos arrependimentos passados e anseios futuros.

Prós

  • Atmosfera e personagens bem-construídos e verossímeis;
  • Apesar de curto, debate e reflete sobre temas importantes, como depressão e a importância de não ficar preso ao passado;
  • A arte é simples e agradável aos olhos, especialmente nas CGs;
  • Possibilidade de revisitar fragmentos da história para obter desfechos diferentes, incluindo os finais possíveis para Baichuan;
  • As cartinhas colecionáveis são um ótimo motivo para explorar todos os cenários;
  • A trilha sonora combina com os momentos do jogo.

Contras

  • A tradução para o português brasileiro é lamentável, prejudicando o entendimento da história como um todo;
  • Mesmo melhor em qualidade, a tradução para o inglês possui tropeços de digitação que poderiam ser evitados;
  • As músicas acabam se tornando repetitivas com o passar do tempo, bem como os cenários;
  • Sem galeria para rever as CGs em maior resolução.
Shanghai Summer — PC/PS4/PS5/Switch — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Davi Sousa
Capa: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida por Astrolabe Games

Também conhecida como Lilac, é fã de jogos de plataforma no geral, especialmente os da era 16-bits, com gosto adquirido por RPGs e visual novels ao longo dos anos. Fora os games, não dispensa livros e quadrinhos. Prefere ser chamada por Ju e não consegue viver sem música. Sempre de olho nas redes sociais, mas raramente postando nelas. Icon por 0range0ceans
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