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Análise: Laika: Aged Through Blood (Multi) leva de moto a suave beleza através da desolação sanguinolenta

O cuidado de uma mãe, a potência de uma moto e a delicadeza da música para preencher a alma em meio à matança.


O primeiro diálogo de Laika: Aged Through Blood mostra a pequena coiote Puppy contando à mãe, a protagonista Laika, que seu amiguinho Poochie foi atacado pelos pássaros militares, que o crucificaram com suas próprias tripas. Não muito depois, vemos em primeira mão o que restou dessa atrocidade. Essas são as boas-vindas ao jogador.

“Bloody Sunset”

O pai do garoto é o melhor amigo de Laika e parte para Onde os Pássaros Espreitam em busca de vingança. Quando o encontramos, após um banho de sangue nos penosos, ele dá mais detalhes do que os malditos sádicos fizeram com seu filhote.

Eu já esperava que este fosse um jogo brutal sobre uma realidade devastadoramente cruel, mas essa abertura me pegou de surpresa e me preparei para a escalada da violência. No entanto, e felizmente, ela nunca retornou na mesma forma ou intensidade, o que me faz pensar que o choque inicial fica deslocado na narrativa e, portanto, era desnecessário.


Sim, os pássaros do exército são terríveis, mas as aves com que nos deparamos não têm jeito de torturadores infernais de crianças. Eles apenas não pensam duas vezes antes de puxar o gatilho para continuar o genocídio imperialista de seus senhores.

Laika também não pensa duas vezes antes de atirar, sendo essa praticamente a única forma de interação que temos com os inimigos em todo o jogo, que caem às centenas sob nossos pés.

Acontece que Laika é imortal. Ou melhor, ela sempre morre por uma fração de segundo, mas então volta a si como se nada tivesse acontecido, carregando como cicatriz a lembrança da dor de ser desfeita.




Bênção para os outros, maldição para elas, essa é a sina das mulheres de sua linhagem e será também a de Puppy algum dia. Por isso, o que ela mais teme é que chegue a hora do sangue da filha, o momento em que ela cresça e esteja pronta para se tornar a próxima protetora que morrerá mil vezes sobre uma moto e com uma arma na mão, em nome de todos que a cercam. É disso que fala o subtítulo Aged Through Blood: crescer pelo sangue da menstruação e pelo da violência.

E acredite, você morrerá muito na pele de Laika, seja pelas balas dos pássaros ou quebrando os ossos ao cair da moto. Na teoria, pilotar uma moto não é complicado: acelere com um botão e mude de direção com outro, que também serve para rebater projéteis mortais caso você acerte o timing. Nada de direcionais analógicos para andar: o da direita serve para mirar, o que é auto explicativo, e o da esquerda serve para fazer manobras, o que merece ser contado em mais detalhes a seguir.

“Playing In The Sun”

Laika: Aged Through Blood é um “motorvania”, isto é, um metroidvania que se julga diferente o bastante para criar uma nova variação do nome desse subgênero de plataforma e ação. Não é só marketing, o jogo realmente merece usar da alcunha para representar sua identidade que mistura o conceito estrutural e narrativo dos MVs com a plataforma de moto baseada em física, uma gameplay inspirada em títulos antigos como Kikstart 2, Elasto Mania e também série Trials.

As piruetas que Laika realizará sobre duas rodas têm finalidades abstratas e práticas. Elas servem para dar a excitação de usar a física para controlar o movimento de sua máquina, saltando de rampas enquanto passa por um triz em meio a tiros, suspendendo a respiração diante da fusão de habilidade e sorte que te fizeram sobreviver no limite da batalha.



Se fosse só pela emoção, o público acabaria preferindo jogar seguro, certo? Para sanar a questão, as mecânicas implementadas tornam as manobras obrigatórias: o fundo da moto defende de balas, um flip para a frente recarrega a habilidade de rebater projéteis e um para trás recarrega a arma equipada.

Para ter uma ideia, o revólver começa com dois tiros e chega a ter quatro, então você precisará recarregá-lo com tanta frequência que o aparente absurdo de fazer um 360º para ganhar munição se tornará instintivo e será feito até nos menores saltos que surgirem pelo caminho.

Para completar, sempre que você segura o gatilho, o tempo entra em câmera lenta, dando tempo para mirar e acertar vários pássaros seguidos.




Agora tente imaginar tudo junto: Laika sendo obrigada a seguir o fluxo da moto acelerada, virando a moto em uma posição defensiva em pleno ar para bloquear balas inimigas enquanto, em câmera lenta, enfia as suas em cabeças de aves de uniforme, completando o movimento circular para recarregar a arma e ainda pousar na posição certa para não quebrar o pescoço. É como dançar com a vingança em um baile sangrento de um belo filme de ação.

Não se preocupe, a física das manobras não é tão louca e punitiva como nos jogos que citei acima. Na maior parte do tempo, funciona muito bem, mas também não é muito prática quando você só quer fazer um movimento suave e preciso, como mudar de caminho ou tentar passar de uma rampa sem saltar sobre ela.



Também não é estimulante quando queremos algo simples, como atirar em uma caixa de recursos, mas estamos descarregados e temos que buscar uma lombada só para dar uma cambalhota. Bem que poderia recarregar automaticamente com o tempo quando estamos fora de combate.

Outras mecânicas poderiam ser melhores (penso que deveria haver mais pontos de viagem rápida para incentivar a busca por recursos e itens de missões) ou são desnecessárias (perdemos parte dos pontos de experiência ao morrer, como nos souls, mas com a benevolência de poder morrer mais vezes seguidas sem perder tudo). Além disso, a ideia de ter que comprar os mapas não combinou muito bem com o tipo de exploração de Laika e seria melhor que preenchesse à medida que desbravássemos os locais.




Devo ressaltar ainda que a coiote possui apenas um ponto de vida. Levou, morreu, checkpoint. Quando juntamos isso à gameplay de manobras e tiros em pleno ar, um dos efeitos colaterais é que os inimigos e chefes tiveram que ser um tanto limitados para a brincadeira não ficar complexa demais.

Portanto, prepare-se para repetir as ações tanto em combates (pelas mortes) quanto fora deles (para conseguir o que pretende). Se esse é o preço a pagar na execução da proposta, digo que o benefício da experiência “motorvania” compensa o lado trabalhoso.



“The Whisper”

Para além da gameplay, a experiência compensa porque Laika: Aged Through Blood é lindo. Sim, cruamente violento, mas sobriamente lindo em seus traços limpos de história em quadrinhos.

Por sinal, se fosse uma HQ, eu apontaria o bom trabalho do colorista com os tons brandos de amarelos e sépias que pintam os desertos, os fins de tardes, a ferrugem, as carcaças de veículos de guerra e a deterioração das ruínas da guerra. O próprio mundo parece definhar lentamente, desfazendo-se em poeira sob os pés e as rodas daqueles que tentam sobreviver mais um dia.

É um panorama desolador de faroeste pós-apocalíptico no qual a esperança significa a tentativa de reter o pouco que resta de humanidade, um dia de cada vez. Ainda assim, o jogo usa algo simples para moldar essa realidade em algo mais profundo: os nomes.


Em meio aos textos de palavrões e conflitos, a vila da protagonista é referenciada como Onde Vivemos, seu lar é Onde Sonhamos, o bar é Onde Esquecemos. Essa camada de solenidade construída na linguagem faz uma ponte entre aquela realidade de jogo e as nossas emoções, transmitindo um pertencimento vital que une os lugares e as pessoas.

Nota: usei de tradução livre para os nomes acima, uma vez que, infelizmente, o game não possui versão em nosso idioma.

Perpassando todos os sentimentos e a construção de mundo está a música, um dos grandes destaques do jogo. A trilha sonora é cantada e apresentada no estilo playlist, isto é, em vez de uma música fixa para cada local ou situação, há uma sequência de canções que aumenta sempre que encontramos uma nova fita cassete. Eu gostaria que mais jogos usassem esse formato.




Com um tempero de metaficção, as faixas são gravações da banda fictícia The Wastelanders, marcadas pela voz deliciosamente tênue da cantora Beícoli, que existe tanto no jogo como na vida real: ela é a compositora do estúdio espanhol Brainwash Gang, criadores de Laika: Aged Through Blood e, anteriormente, de The Longest Road on Earth.

A música preenche a atmosfera da campanha e se entranha na identidade da obra (os subtítulos deste texto são os nomes de algumas das melhores). Digo com certeza que é uma das melhores trilhas do ano.




Assim, Laika se desenha nos contrastes suaves: a violência silenciosa de uma mãe afetuosa, a música intimista que embala os banhos de sangue, os traços claros em cenários detalhados, a câmera lenta nas cenas intensas, a grosseria pragmática de um povo solene, a aceitação de um destino que se luta para adiar e a admiração pelos resquícios de beleza em meio à catástrofe.

“The Last Tear”

Mesmo com algumas mecânicas que deixam a gameplay mais trabalhosa, Laika: Aged Through Blood deixa um rastro de emoções intensas ao manobrar uma moto pelo deserto contra um exército implacável. O contraste entre a violência crua e a beleza dos cenários desenhados e, especialmente, das músicas cantadas, converge para a representação de tragédias humanas na luta pela sobrevivência neste metroidvania único, sangrento e lindamente melancólico.



Prós

  • A mistura de metroidvania com pilotagem de moto baseada em física funciona muito bem e dá identidade única ao jogo;
  • O combate sobre duas rodas passa uma sensação de impacto e urgência, repleto de momentos empolgantes em câmera lenta em que sobrevivemos por pouco em meio a piruetas no ar;
  • O visual desenhado à mão como o de histórias em quadrinhos de contornos limpos é sempre atraente;
  • A trilha sonora no estilo playlist é excelente, destacando-se pelas muitas músicas cantadas que aprofundam a melancolia da ambientação a um ponto quase pacífico, em contraponto à violência do tema e da gameplay.

Contras

  • Algumas mecânicas tornam a jogatina mais trabalhosa e repetitiva que o necessário;
  • A gameplay de moto é oito ou oitenta: ou brilha com sua agilidade e manobras circulares hipnotizantes, ou quebra o fluxo nos levando à tentativa e erro;
  • Sem tradução para português brasileiro.
Laika: Aged Through Blood - PS4/PS5/PC/XBO/XSX/Switch - Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão:  Heloísa D’Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital cedida pela Headup Games


Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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