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Análise: Slay the Princess (PC): identidade fragmentada em um prisma de possibilidades

Sob a ótica do terror psicológico, a VN da Black Tabby Games discute sobre a subjetividade da relação com o mundo, com “os outros” e “consigo mesmo".

Slay the Princess
é uma visual novel ocidental desenvolvida pela Black Tabby Games. Com elementos de terror, o jogo brinca com a perspectiva do jogador em uma narrativa que subverte o conceito de jornada do herói.

A missão é matar a princesa

Tudo começa com uma premissa aparentemente simples: você é um guerreiro encarregado de matar uma princesa para salvar o mundo. Com uma boa dublagem em inglês, o narrador te conta que você é a única pessoa capaz de fazer isso e que precisa tomar cuidado com as mentiras dessa garota. Ela é manipulativa e você não tem noção da capacidade dela.
 
Slay the Princess é uma visual novel de terror psicológico que se baseia justamente no quão básica essa premissa é. Com poucas informações, o título busca alimentar a paranoia do jogador, explorando pouco a pouco a realidade misteriosa por trás da trama.
Cabe ao jogador explorar suas múltiplas escolhas para tirar o véu que encobre a verdade. A primeira camada da história é uma de violência e destruição, com tópicos potencialmente sensíveis como assassinato, suicídio, desmembramento e toda a questão psicológica da paranoia. Porém, há uma discussão profunda por baixo disso, trazendo à tona a natureza paradoxal do ser humano, os conflitos de identidade, a nossa relação com o outro e a nossa percepção do mundo.
 
Slay the Princess é uma história cíclica sobre nossas decisões e as mudanças de papel da princesa. Podemos seguir a voz do narrador ou desconfiar de suas intenções, matar a princesa ou tentar conversar com ela, demonstrar honestidade ou mentir.
Nesse sentido, existe uma camada bem interessante de metalinguagem sem que o jogo recorra a uma quebra de quarta parede mal-executada, que é a forma mais usual de adicionar esse elemento em jogos. O que temos é uma provocação para que o jogador pense no que está acontecendo por conta própria e entenda melhor a natureza real e as intenções dos personagens.
 
A figura do narrador ilustra bem isso. Com sua tentativa de parecer imparcial, ele molda um caminho simples para o jogador e tenta sempre manter o foco, mas levanta suspeitas em igual medida. O narrador claramente sabe muito mais do que explica e sua presença é uma constante lembrança da premissa básica da qual o jogador tende a desviar.

Um mundo em constante transformação

Em vários momentos da história, temos escolhas para fazer que impactam a evolução da trama. Porém, não é só uma questão de impacto da ação e sim a construção de um outro mundo. Nossas decisões efetivamente moldam o mundo ao nosso redor.
 
Conforme navegamos os labirintos de escolhas, nos deparamos com versões diferentes da princesa, da cabine na qual ela está aprisionada e até de nós mesmos. Trata-se de uma experiência com alto potencial abstrato no qual a nossa percepção é sempre questionada.
Essa perspectiva é especialmente reforçada pelas ilustrações em preto-e-branco com ocasionais tons de vermelho. O mundo inteiro é como um grande rascunho, cujos traços podem ter variações drásticas entre as rotas da narrativa. O resultado é uma representação visceral de uma realidade tortuosa e profundamente volátil.
 
Da mesma forma, a obra brinca com a forma como tanto a princesa quanto o próprio jogador são moldados pelas experiências. As personalidades de ambos podem variar bastante, sendo essa uma parte importante da discussão da obra. Um elemento que favorece a clareza dessa dissonância é a dublagem em inglês, com diferentes tons de fala para a princesa e as vozes internas do protagonista.

Sem entrar em detalhes que poderiam ser spoilers, gostaria de ressaltar que temos uma grande variedade de escolhas, permitindo de fato mergulhar na proposta da trama. Slay the Princess consegue discutir de forma bem profunda seus elementos e até mesmo a sua composição enquanto uma obra movida a decisões do jogador.

Honestamente falando, o único detalhe que me incomodou um pouco foi o fato de que o Quick Menu na parte inferior da tela pode se misturar facilmente com as ilustrações. Não há um bom contraste entre essas configurações e a tela com tudo em preto-e-branco. Isso é até consertável caso o jogador altere as opções de acessibilidade no menu inicial para dar contraste ao texto, mas poderia ter uma solução mais elegante, como letras com contorno. Porém, esse é um detalhe ínfimo diante de todos os grandes acertos da obra, então não chega a impactar negativamente na experiência como um todo.

Por fim, como é mais comum do gênero, Slay the Princess não está disponível em português. A única opção tanto para os textos quanto para as vozes é o inglês. Porém, os desenvolvedores estão fazendo uma enquete para ver se há interesse em traduções para o texto e o português do Brasil é uma das opções, então é possível que isso venha a ser adicionado em uma futura atualização.

Uma obra magistral

Slay the Princess
é uma visual novel profunda e impactante que consegue discutir de forma sensível a natureza subjetiva da existência. Embora os aspectos violentos possam não ser indicados para algumas pessoas, trata-se de uma experiência de altíssima qualidade na combinação de todos os seus elementos.

Prós

  • Trama profunda e cativante que discute sobre identidade, a relação com o outro, o peso da informação e a percepção de mundo;
  • Ilustrações preto-e-branco com traço rabiscado reforçam a natureza abstrata da experiência;
  • Dublagem em inglês de alta qualidade, com especial destaque para a variedade do tom da Princesa;
  • Grande variedade de escolhas com impactos nas ramificações da narrativa.

Contras

  • Trama contraindicada para quem não consegue lidar com tópicos relacionados a morte, suicídio, violência física e psicológica;
  • Sem localização para o português até o momento;
  • O menu de configurações da parte de baixo da tela acaba se misturando com as ilustrações preto-e-branco em vários momentos.
Slay the Princess — PC — Nota: 10.0
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Black Tabby Games

é formado em Comunicação Social pela UFMG e costumava trabalhar numa equipe de desenvolvimento de jogos. Obcecado por jogos japoneses, é raro que ele não tenha em mãos um videogame portátil, sua principal paixão desde a infância.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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