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Análise: Lkyt. (PC) é uma fantasia sombria sobre a ruína humana em meio a um contexto de guerra

Essa é uma experiência única no nicho de BL que brilha sobretudo em sua construção de mundo.


Desenvolvido pela parede e publicado pela MangaGamer, Lkyt. é uma Visual Novel (VN) de ação, drama e romance entre garotos — Boys’ Love (BL) — com erotismo, ambientação de dark fantasy pós-apocalíptica e elementos do medievo japonês. Com uma narrativa não linear e trágica, o jogo aborda sobretudo o lado frio e cruel da guerra, bem como seu reflexo na hierarquia social, colocando o jogador na pele de um jovem soldado plebeu que conhece o amor enquanto convive diariamente com batalhas, perdas e sacrifícios traumáticos de amigos e familiares.

Um mundo aterrador e impiedoso

A história se passa nos arredores da Nação de Shoreline. Especialmente, se passa na capital de Migiwa, uma cidade cercada por muralhas de uma região montanhosa em uma época na qual a humanidade sofre a sombria ameaça de criaturas chamadas Hollow.

Com a calamidade cíclica do Reino das Trevas a cada mil anos, a humanidade é impedida de evoluir muito do ponto de vista tecnológico e social. Além das perdas irreparáveis após cada calamidade, os povoados remanescentes encontram-se divididos e isolados uns dos outros em contexto de guerra.


O jogador segue Tasuku (na voz de Kazami Kaiji), um jovem guerreiro de origem humilde com apenas 21 anos e que mora com sua mãe, sua irmãzinha e seu pai (um guerreiro experiente que serve à guarda pessoal da nobreza). Sua geração teve o infortúnio de pegar um período de despertar do Reino das Trevas enquanto sua nação ainda estava despreparada e precisa se lançar em uma guerra que determinará mais uma vez o destino do mundo.

As responsabilidades sobre os ombros de Tasuku aumentam ainda mais ao perder seu pai logo no começo do jogo. Ele precisa proteger sua família, servir aos nobres da cidade e enfrentar uma guerra súbita, imprevisível e cruel.


Eventualmente Tasuku pode se unir a algum dos guerreiros mais fortes da Nação de Shoreline para evitar o fim da humanidade. Esses guerreiros são líderes militares e personagens-chave que podem mudar o rumo da guerra e levá-la até diferentes destinos e finais nessa narrativa não linear. Via opções binárias pontuais de diálogo, há também outras variações na trama após feita a escolha de com quem Tasuku estará.

Entretanto, adianto que você não encontrará finais “bons” por aqui. De todo jeito você terá uma experiência triste, dura e aterrorizante, inclusive com cenas bastante fortes de violência. A diferença maior está na preferência por personagens diferentes e por vermos alguns desfechos mais satisfatórios do que outros para a compreensão do enredo.


Como esperado em um BL, os guerreiros em questão são também os interesses amorosos de Tasuku. O mais jovem deles é o belo príncipe Takeru (interpretado por Todoroki), segundo filho do rei de Migiwa. Apesar de sua origem nobre, ele lidera os soldados do reino na linha de frente com atitude firme e sagaz, sendo um forte candidato a se tornar o herói de sua geração e o sucessor ao trono de seu pai.

As demais opções de Tasuku envolvem um certo gap de idade. Um deles é Yael (interpretado por Torasawa Nekosuke), de 28 anos. Esse é um viajante estrangeiro de um país desértico que migra entre nações, trabalhando como intérprete, mensageiro e mercenário.


Apesar de preferir lutar sozinho e não ser uma figura politicamente importante, ele é um extremamente habilidoso e uma peça importante no tabuleiro para o contato entre as nações e para a exploração de regiões e mistérios que podem abrir novos caminhos para o desfecho da guerra.

Outro guerreiro habilidoso que também está de olho no protagonista é Angu (interpretado por Nanashino Hibiki); esse é o “braço esquerdo” do rei e o filho mais velho (32 anos) da tradicional família militar Mitate. Angu é o típico personagem corajoso, justo e honrado que poderia ser um herói em muitas outras histórias de dark fantasy. Ele é talvez o soldado mais forte de Migiwa, o que por si só o coloca como alguém altamente valioso durante a guerra.


Por fim, temos Towa (interpretado por Masquerade Kise), o irmão mais velho (36 anos) do príncipe Takeru. Diferente dos demais pretendentes de Tasuku, Towa não é um guerreiro da linha de frente, mas uma figura central de suporte para a proteção da humanidade.

Esse príncipe tem uma aparência ainda mais delicada do que a de seu irmão, porém com traços de maior idade e um comportamento mais sereno. Ele raramente é visto, pois quase nunca sai do castelo, e é adorado por seus súditos como um deus, sendo responsável por manter uma barreira de proteção na cidade.


Embora a aparência jovial, fofa e ingênua do protagonista possa enganar, ele é o ativo dos relacionamentos, não importa seu par. Seja qual for sua escolha, os momentos de sofrimento e dor serão predominantes, mas haverá algumas ocasiões prazerosas e felizes para o casal. É interessante destacar que a história não enfatiza tanto o impacto emocional dos laços desses casais; os relacionamentos existem, mas dificilmente roubam os holofotes da construção de mundo, que é o ponto alto dessa narrativa.
"A palavra 'esperança' tem dois significados. Um é o desejo de que algo seja, enquanto o outro é uma força real que nos impulsiona e nos sustenta. A palavra conota tanto um desejo quanto um poder. Portanto, gostaria que você imaginasse por mim. Algo que lhe dê esperança, mesmo que seja vazio ou sem sentido. Esse será o poder que o sustentará quando tudo o mais estiver esgotado." — Towa

Entre os temas abordados durante a guerra, destacam-se hierarquia social, crise populacional e o lado sombrio da ambição humana. À certa altura da trama, percebemos que a calamidade cíclica está relacionada ao aumento da população humana. E é interessante notar como aspectos históricos do Japão medieval são readaptados a esse contexto. O culto de Towa como um deus, o valor de linhagem familiar e a divisão rígida entre nobres e plebeus, com condições materiais muito distintas, separam os humanos e às vezes os tornam quase intangíveis um do outro durante a guerra.

Esses “estamentos sociais” estabelecem problemas diversos, não apenas de desigualdade, mas também sobre os destinos de seus herdeiros, como a pressão por se tornar um grande guerreiro ou ter uma esposa e filhos. Além disso, pesa sobre Towa em particular uma expectativa irreal para um ser humano, mesmo que tenha habilidades sobrenaturais. A isso se alia o tema da ambição desmedida. Em meio a uma guerra na qual a humanidade deveria estar unida, em Lkyt. descobrimos como os humanos são muitas vezes injustos, covardes e os reais monstros a serem enfrentados; responsáveis eles mesmos por sua própria ruína.

Limitações de roteiro e audiovisual, mas com uma boa arte de fantasia histórica

Acompanhando o roteiro fantástico sombrio e o contexto medieval, Lkyt. traz uma bela arte de fantasia histórica. Vemos traços um pouco mais realistas para a estética física dos personagens, bem como um figurino inspirado em roupas de samurai e trajes tradicionais do Japão. O mesmo vale para aspectos arquitetônicos dos cenários e até mesmo alguns costumes locais. Ainda assim, há elementos típicos de anime que podem ser encontrados nos personagens principais e que os fazem marcantes em relação aos papéis menores.

Apesar da riqueza de construção do mundo, a ambientação foca-se bastante na capital e em alguns locais pontuais onde se desenrolam batalhas. A escolha por um olhar mais micro do conflito não é por si só algo ruim, mas sinto que a execução não justifica tão bem esse ponto, talvez com exceção para a rota de Towa. No mais, as poucas pessoas envolvidas possuem um papel central demais para uma guerra com um escopo gigantesco, o que não soa verossímil. Além disso, o potencial de alguns personagens, como do viajante Yael, acabam sendo pouco explorados nesse contexto microssocial.


A limitação da ambientação também afeta o peso que a guerra supostamente tem. Não há uma boa visibilidade das batalhas em maior proporção e nem dos territórios conquistados pelos Hollow. O mesmo vale para as animações, que são muito simples e não passam uma boa imersão de batalha. Isso  ainda é prejudicado pela premissa sobrenatural ter justificativas um tanto artificiais demais em alguns pontos e não explorar tão bem quanto poderia a crise do aumento populacional da humanidade.

A trilha sonora, por fim, cumpre seu papel de forma mediana. Não é um destaque em particular, mas oferece tensão nas batalhas (ainda que às vezes com peças um pouco repetitivas), e é mais sutil e conveniente para a leitura, especialmente nas ocasiões sociais e tristes. As composições geralmente enfatizam instrumentos acústicos, e algumas vezes usam instrumentos orientais.

Uma recomendação com algumas ressalvas

Apesar de algumas limitações significativas para o impacto e o escopo do enredo, como em ambientação e animação, e de algumas escolhas que poderiam ser melhor desenvolvidas para a narrativa, Lkyt. é ainda um ponto alto como Visual Novel. Em especial traz uma experiência rara em BL em termos de impacto crítico e sombrio sobre o ser humano e em termos de explorar o amor no meio de uma guerra impiedosa. Pelo peso de algumas cenas e por não enfatizar tanto o impacto emocional em si entre os casais, não o recomendo para qualquer fã de BL, mas se você tiver estômago para adentrar esse mundo trágico e sombrio, pode ter uma experiência fascinante e única.

Prós

  • Rica construção de mundo de dark fantasy;
  • Bons personagens principais que exploram contextos diferentes da humanidade em situações limite;
  • Roteiro que explora de forma impactante e crítica aspectos da ambição humana, da hierarquia social e da crise populacional;
  • Alguns bons romances com uma atuação adequada e que no geral não tiram o foco dos objetivos maiores da trama;
  • Um belo character design dos personagens, e com um figurino histórico adequado à proposta.

Contras

  • Algumas escolhas de roteiro que infelizmente não exploram tão bem o tema da crise populacional e o rico mundo caótico em que a história se situa;
  • Nem todas as rotas são tão satisfatórias em explorar o potencial dos personagens para suas repercussões sociais e o desfecho da guerra;
  • Animação e ambientação são muito limitadas dentro do escopo do mundo e da premissa de ação.
Lkyt. — PC — Nota: 8.5
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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