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Análise: The Pale Beyond (PC) é uma experiência única que mescla RPG com simulação

De uma forma simples e imersiva, este jogo oferece uma boa experiência de sobrevivência, mas há alguns pontos que poderiam ser melhores.


Desenvolvido por Bellular Studios, sob a direção de Thomas Hislop, e publicado pela Fellow Traveller, The Pale Beyond é um jogo de simulação de sobrevivência com mecânicas de RPG narrativo que aborda um grupo de marinheiros que precisam sobreviver em um local hostil enquanto procuram por uma outra tripulação que se perdera na Antártida. A trama permite várias ramificações de escolhas e uma ênfase de interação de gameplay em seu design narrativo, como de costume nas publicações da Fellow Traveller.

Uma trama bem ambientada, mas que poderia ter um melhor roteiro

Com design narrativo de Eric Rivers, The Pale Beyond proporciona uma experiência engajante e verossímil através de uma história com cerca de 10 horas que coloca escolhas difíceis de sobrevivência para o jogador gerenciar uma tripulação perdida na Antártida. Ao mesmo tempo, procuramos respostas para alguns mistérios, o que nos motiva a seguir em frente, semana após semana.

O jogador segue Robin Shaw, que embarca com vários outros expedicionários no navio The Temperance em uma missão de resgate de uma tripulação que se perdera na Antártida cinco anos antes. Essa tripulação perdida era do navio The Viscount, dedicado a ir além da região The Pale Passage em uma expedição de estudo do sul magnético absoluto naquela região polar, mas que jamais retornou.


No início da trama, Shaw é entrevistado pelo capitão do The Temperance, Captain Hunt, e suas escolhas de diálogo determinarão seu background narrativo, como de costume em RPG de mesa. Você pode determinar, entre outras coisas, se seu jogador é casado ou não, e qual sua ocupação profissional (eu optei por ser um mercador). Essas opções iniciais dão maior ou menor chance de sucesso em algumas de suas escolhas no decorrer do jogo, bem como abrem possibilidades únicas de ramificação na trama.

Nessa aventura, Shaw é contratado como uma espécie de “braço direito do capitão”, seu First Mate, mas o capitão não lhe conta de algumas segundas intenções da expedição do The Temperance — algo que o jogador só começará a descobrir no meio da viagem. Um mês após a partida, o navio encalha no gelo do Polo Sul e o capitão Hunt desaparece.


Seguindo o código de conduta do navio, Templeton, o líder da equipe científica, faz uma votação para decidir se Shaw se tornará ou não o capitão substituto. A votação levará em conta seus diálogos na introdução do game, até então, com os membros da tripulação. A partir desse ponto, Templeton torna-se um importante guia para a história e avisa que uma equipe de resgate deve ser enviada para salvar você e sua tripulação, mas que, para isso, precisam sobreviver várias semanas ali.

Depois de algum tempo, você terá de decidir em algum momento se abandonará o navio ou não, pois ele corre risco de afundar com a pressão no gelo. Você então poderá montar um acampamento na redondeza com os sobreviventes do The Temperance e tentar sobreviver com os estoques do navio e com base em exploração, caça e pesca. Depois de um tempo, encaminhando-se para o ato final da história, também o jogador poderá decidir abandonar o local com botes salva-vidas em direção a uma ilha, onde estaria o abandonado The Viscount.


Essa é basicamente a estrutura da história de The Pale Beyond, porém o design narrativo dela permite ramificações em um “sistema de árvore” em que cada ramo é relativo a determinadas escolhas que você faz durante as semanas de jogo. Cada semana corresponde a um nó da árvore de ramos, e a história é contada no decorrer de algumas dezenas de semanas. Desse modo, há variações de finais e também variações diversas em diálogos e eventos, pois a maior parte dos personagens pode morrer ou não quase a qualquer momento de uma semana para a outra.

O jogo oferece uma boa escrita para alguns personagens. Por exemplo, para o já mencionado Templeton, bem como para uma fotógrafa, para o médico do navio e para uma cuidadora de cães, assim estabelecendo personalidades críveis e marcantes, o que faz com que nos apeguemos a eles. Entretanto, o texto não consegue fazer isso com toda a tripulação; muitos podem facilmente ser vistos apenas como meras unidades para gerenciarmos.


O design narrativo consegue propiciar uma curiosa experiência que alterna entre uma perspectiva narrativa de RPG em primeira pessoa e uma experiência de gerenciamento estático de recursos por “turnos” (períodos da semana) com perspectiva aérea. Por outro lado, essa alternância pode fazer com que o jogador perca um pouco da imersão enquanto um marinheiro como os demais e se sinta um pouco como uma entidade à parte.

A história ao final tenta dar uma justificativa para essa alternância de experiências e para a possibilidade de “voltar no tempo” em ramificações da árvore de possibilidades da história. Não convém adiantar spoilers desse fim, mas ele é um tanto problemático, pois estabelece uma quebra de quarta parede a partir de uma premissa mágica inconsistente e contrastante com a experiência narrativa até então do jogador.

Uma mistura única de RPG narrativo com simulação de sobrevivência

Do ponto de vista de gameplay, The Pale Beyond é um jogo relativamente simples com escolhas de design que podem ser divididas em dois grupos: interações de diálogo e gerenciamento de recursos. Essas escolhas são coerentes com a ideia da narrativa de propiciar uma experiência ao mesmo tempo interna (em primeira pessoa) e externa, como alguém capaz de coordenar ações da tripulação e estar para além de uma linha do tempo, interferindo nas ramificações da história.

Do ponto de vista dos diálogos, o jogador pode ouvir fofocas e pedidos dos marinheiros, dando-lhes em seguida ordens ou alguns conselhos e opiniões, bem como acolhê-los ou não em suas necessidades. Um médico, por exemplo, pode pedir por ajudantes para fazer remédios, enquanto um engenheiro do navio pode pedir por mais recursos para manter a fornalha funcionando, entre outras coisas. E você pode fazer interações “menores”, como dar um chapéu a um cão ou ver fotografias da expedição.


Do ponto de vista do gameplay de gerenciamento, nós temos que administrar um grupo de unidades que está sob a nossa liderança, geralmente pouco mais de uma dezena. Cada personagem possui certas aptidões, pode inclusive ter uma profissão específica, como de engenheiro, médico, cientista ou explorador. É importante levar em conta as diferentes aptidões desses personagens para você conseguir sobreviver nas condições hostis da Antártida.

Médicos, por exemplo, são fundamentais para curar seus personagens de doenças diversas causadas pelo frio, pela comida ou por algum acidente. Os engenheiros já são importantes para manter sua tripulação aquecida e para você ter informações técnicas sobre o navio. Os exploradores, por sua vez, são fundamentais para você encontrar comida e outros recursos.


Enquanto os cientistas, por sua vez, são importantes tanto para desenvolver medicamentos quanto para se obter informações sobre o terreno e o ecossistema da região. Temos ainda uma cuidadora de cães, um cozinheiro e vários outros marinheiros que podem ajudar em funções diversas, como caçada e pescaria.

O jogo adiciona um grau de aleatoriedade no que pode acontecer em termos de doença e outras adversidades, bem como onde você pode encontrar animais para caçar e outras coisas. Você precisará lidar com esse fator enquanto toma suas decisões, sabendo que elas interferem não só no fluxo da história, mas também na lealdade e confiança dos marinheiros. Se sua liderança chegar ao nível 0, você perde o jogo.


Para manter um bom nível de lealdade, você precisa não apenas interagir de forma inteligente com suas unidades, mas também gerenciar semanalmente, de forma ponderada, os seus recursos, que são basicamente comida e combustível para aquecimento. A forma com que você administra esses recursos pode causar morte de unidades, desobediência, doenças, frio, desnutrição, entre outras consequências.

The Pale Beyond oferece uma experiência única e satisfatória de gameplay de RPG com simulação, mas sinto que poderia ter um maior refinamento em ambas as partes. Nas interações de RPG de diálogo, faz falta uma probabilidade transparente. Ela poderia ser feita por meio de dados ou porcentagens, dando uma maior sensação de evolução do personagem, com base em parâmetros de carisma e outros. Além disso, poderia ter uma maior sofisticação sobre doenças, efeitos das comidas, tipos de medicamentos e mapeamento do local. Esses fatores favoreceriam uma experiência mais rica de simulação.

Simplicidade com imersão e personalidade

A direção de arte ficou por conta de Jess Campbell, que conseguiu entregar um trabalho muito bom enquanto um meio-termo entre algo sério e algo carismático. A ambientação e o design de interface de Ethan Mclean são minimalistas e capturam com simplicidade o ambiente polar e os interiores do navio, ao mesmo tempo em que faz a jogabilidade prática e clara para a mecânica de dialogar com os tripulantes e dar-lhes ordens por meio de ícones no cenário e um menu que rege tanto o inventário quanto suas unidades.

Um ponto especialmente alto no jogo está nas ilustrações dos personagens, por Katie Noble. Há um estilo único, que dá um certo realismo para a aparência dos personagens, condizente com um contexto mais histórico e dramático, mas que vem junto com um toque cartunesco que fornece um carisma extra e marcante para cada tripulante. Só é uma pena que as animações sejam bastante simples e ocasionais. Caso fossem mais presentes, aumentariam ainda mais o charme do jogo. Confira abaixo um pouco do estilo cinemático do game.


Além do fato de ser muito estático, o jogo também poderia melhorar em termos de direção de som. Os efeitos sonoros são um pouco repetitivos e simples. Poderia ter maior variedade no que ouvimos durante a viagem no oceano ou durante as semanas na Antártida. A riqueza e a sutileza desses sons juntos da música agregam bastante na experiência de leitura — Roadwarden (PC) é um bom exemplo.

Apesar da simplicidade dos efeitos sonoros, a trilha sonora de Jackson Parodi tem uma personalidade bem legal, com ênfase em acordeão. Essa escolha está em sintonia com o fato de um dos personagens ser músico, ter um acordeão e então tocá-lo para a tripulação. Há casos, inclusive, em que os marinheiros cantam. Assim, para além da personalidade da OST, a experiência musical integrada à narrativa adiciona um grau a mais de imersão (confira no trecho de vídeo abaixo).

Uma experiência elegante e engajante

Apesar de ter pontos em que o roteiro, o audiovisual e o gameplay poderiam ser melhores para entregar algo mais engajante e sofisticado, The Pale Beyond é um jogo único, motivado por um ótimo conceito de sobrevivência que tira um bom proveito tanto de elementos de RPG narrativo quanto de simulação. Com algumas poucas ressalvas, este título é recomendado para os fãs desses dois tipos de jogos e mostra o grande potencial de interação narrativa do jovem estúdio de Michael Bell e Thomas Hislop.

Prós

  • Um conceito interessante e bem interativo de narrativa que se apropria de forma inteligente de mecânicas de RPG e gerenciamento;
  • Alguns bons personagens, bem como uma boa imersão no contexto da tripulação do navio;
  • Interface e mecânicas acessíveis e bem funcionais que entregam uma experiência engajante, prática e consistente;
  • Audiovisual minimalista, imersivo, carismático e com personalidade, com destaque para as ilustrações e as músicas de acordeão.

Contras

  • Nem todos os personagens são bem explorados em seus traços de personalidade;
  • O roteiro constrói um bom mistério, mas tem um desfecho questionável para a consistência da trama;
  • O ritmo da narrativa é um pouco quebrado com a alternância entre uma experiência pessoal (como RPG) e outras vezes impessoal (como simulador);
  • O jogo poderia ser mais refinado e complexo tanto em seus elementos de RPG quanto de simulação;
  • A direção de som e as animações são um tanto simples.
The Pale Beyond — PC — Nota: 8.0
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Fellow Traveler

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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