Jogamos

Análise: Tchia (Multi) nos leva por terra, água e ar para conhecer um mundo deslumbrante

Assuma o corpo de qualquer animal para desfrutar de um lugar belo como poucos.


Tchia
é uma obra especial. O pequeno estúdio Awaceb entregou algo que é muito importante para demonstrar a compreensão de que jogos são produtos culturais e artísticos que refletem a sociedade contemporânea sob uma pluralidade de ângulos e cores.

Essa consciência de criação e expressão leva muitos jogos independentes a terem algo mais raro no meio AAA: a honestidade de dar aquilo que se tem a oferecer, com todo o amor e dedicação necessários para nutrir a criança até que ela esteja pronta para conhecer o mundo. Tenho convicção de que Tchia é uma criança pronta para o lançamento, um jogo polido, belo e divertido, que merece o mesmo amor que ele oferece.

Dois pontos principais realçam Tchia e o fazem se sobressair dentro de seu gênero: o mundo e a Transferência de Alma.

Bem-vindos ao paraíso

O mundo do jogo é um arquipélago baseado em Nova Caledônia, um território francês a nordeste da Austrália, em pleno Oceano Pacífico. A geografia, fauna, flora, povos e culturas serviram de inspiração para criar um universo de realismo mágico que une vilas tradicionais, com seus costumes, rituais e símbolos, e uma cidade moderna e suas indústrias. Diferentes etnias são representadas e um traço marcante está nos idiomas da dublagem, os mais usados em Nova Caledônia: drehu e francês. Não se preocupe, pois todos os textos estão em português brasileiro.

É nesse cenário que a menina Tchia e seu pai vivem em uma ilha isolada, até serem descobertos por Pwi Dua, que mais parece um pirata moderno e é o capanga do ditador da região. Após ver o pai ser raptado, a garota parte em busca de seu paradeiro. Dá para dizer que a história é mediana, mas é bem contada e envereda por novas amizades, revelações, mitos e reviravoltas, mas não tem medo de seguir pela dor ou pelo medo.



Mesmo com toda a aparência suave e atraente às crianças, encontramos alguns poucos momentos chocantes na história que podem incomodar aos mais sensíveis, especialmente quando aparece Meavora, o vilão principal. Fui pego de surpresa enquanto jogava com meus filhos de quatro e oito anos e fiquei apreensivo, mas não gerou problemas. O título até reconhece isso ao colocar entre as muitas opções de acessibilidade uma alternativa para suprimir as cenas que podem ser consideradas mais fortes.

A campanha é simples, mas a aventura da jovem Tchia não tem a intenção de prender ninguém em um caminho fixo. Como esperado, os capítulos trazem novas habilidades e expandem o leque de ações possíveis, mas isso não funciona como uma restrição absoluta. O mundo é realmente aberto e, após o início, assim que obtém a jangada, o jogador tem a liberdade de andar por praticamente cada pedaço das ilhas, subir em cada monte, caçar colecionáveis à vontade e desenvolver as capacidades de Tchia.



Você encontrará estandes de tiro ao alvo com estilingue, diferentes formas de corrida contra o tempo, empilhamento de pedras e alguns desafios diferentes que eu gostaria que acontecessem mais vezes durante a campanha. A maioria das atividades está ali com o único propósito de divertir, sem recompensas concretas atreladas. Isso corresponde a um aspecto muito importante: estar no mundo, conhecê-lo, senti-lo, descobrir o que ele tem a oferecer e aproveitar os momentos, as paisagens e os detalhes.

As paisagens, inclusive, são um grande destaque. Tudo é lindo: as prainhas com azuis e verdes profundos, o fundo do mar com corais e algas, as grandes distâncias que a vista alcança do alto, o ciclo do sol, o entardecer e o brotar da noite com seu céu estrelado em alta resolução, os reflexos nas águas e as luzes nas bordas das nuvens. Tchia é deslumbrante em cada trechinho.



A música é outro elemento muito bem feito, seguindo estilos de Nova Caledônia para funcionar como uma espécie de ritmo da narrativa. Vários eventos importantes são coroados com uma performance musical na qual Tchia acompanha na percussão ou no ukulele. Na prática, isso acontece por meio de minigames divertidos que também são opcionais, já que a qualquer momento você pode ligar o modo automático. Se curtir, ótimo, divirta-se. Se não curtir, tudo bem, pode só observar.

A aparência da menina Tchia também importa e você terá dezenas de dezenas de cosméticos para variar o visual, com vestidos, shorts, calças, jaquetas, botas, sandálias, pulseiras, cabelos, óculos, pintura facial, máscaras, mochilas, ukuleles e até o estilo da jangada. É uma infinidade de variações e acessórios, podendo ser recebidos na história, encontrados em baús e adquiridos em lojinhas pelo preço de pérolas e suvenires trançados de palha de coqueiro. Estes, por sua vez, são os colecionáveis mais numerosos e servem apenas para isso, o que tira a pressão de buscá-los.



Infelizmente, a parte gráfica sofre de excesso de rastro fantasma com o movimento, especialmente em superfícies reflexivas, como o mar. Enquanto isso realmente não oferece um problema, sua frequência pode ser uma distração e espero que seja passível de correção.

Cartografia avançada

O mapa segue a convenção de alcançar pontos altos que ativam marcadores. O que faz a diferença é que sua posição não aparece nele, então, mesmo que saiba o que deve procurar, caberá a você encontrar seu caminho. A geografia contribui para se localizar e também há recursos de gameplay, mas o melhor é incorporar um pássaro e alçar voo acima dos montes para esquadrinhar o horizonte – isso é parte da mecânica Transferência de Alma, que veremos mais adiante.

Aqui, a lógica por trás do prazer de se perder para se encontrar nunca é frustrante porque não há labirintos. Exceto por algumas cavernas e edifícios, a aventura é quase inteiramente ao ar livre e com grande liberdade de movimento.

Você pode escalar qualquer local o tanto que sua barra de energia permitir e usar um planador, passando uma sensação de semelhança The Legend of Zelda: Breath of the Wild (Wii U/Switch). No entanto, a semelhança direta para por aí. Tchia tem suas próprias ideias ao usar a jangada para percorrer a vastidão do mar, escorregar por encostas e, inusitadamente, balançar no topo de árvores para se catapultar.



Incorporando a fauna local

A forma em que vem a liberdade é o segundo ponto principal, a mecânica Transferência de Alma. A pequena protagonista tem o poder de entrar no corpo de qualquer animal e de um grande número de objetos, com diferentes resultados. Ela pode nadar e explorar o fundo do mar como uma tartaruga, golfinho ou tubarão; subir ao céu como pássaros; correr e saltar como um cervo; escavar tesouros como um cão; passar em lugares apertados como um lagarto e enxergar no escuro como um gato.
Sabe a grande moda atual de poder acariciar animais nos jogos? Tchia leva a tendência a outro patamar, permitindo fazer carinho em todos os animais. Sim, até mesmo nos tubarões.




Tchia pode até pôr ovo como uma galinha e defecar como uma vaca, pois, por algum motivo insondável, esses elementos explodem no impacto. A Transferência de Alma é divertida, útil e central a toda a experiência do jogo, fortalecendo ainda mais a identidade livre, lúdica e encantadora construída pelo mundo imersivo que se abre em convite à exploração. O resultado é um sucesso e distingue Tchia em meio ao gênero de mundo aberto, impedindo-o de ser só mais um.

Quase todo o conteúdo é opcional e apenas algumas vezes a exploração é realmente obrigatória para progredir na campanha. É possível chegar ao fim da trama sem precisar caçar qualquer melhoria, percorrendo o mundo sem realmente vasculhá-lo. É claro que você não faria isso, não é? Qual seria o sentido de um mundo aberto se não for aproveitado?



Faça-os queimar!

Tchia também tem combate, que funciona como uma extensão da Transferência de Alma. A lógica é a seguinte: a menina entra em objetos explosivos ou em chamas e os arremessa contra os Maanos, inimigos feitos de tecido e que aparecem em apenas dois tipos. Pronto.

Não é minimamente profundo, variado ou desafiador, uma vez que a garota não possui barra de saúde, então considero positivo que essas lutas não aconteçam aleatoriamente pelo mapa, mas apenas em acampamentos específicos, sendo, no fundo, mais uma atividade que você só precisará realizar se quiser. É agradável acabar com acampamentos pequenos, com até cinco Maanos, porque você pode dominar o local em poucos segundos fazendo sucessivas possessões explosivas sem nem tocar o chão.



No entanto, acho que o jogo erra em um capítulo adiantado, no qual temos que invadir algumas fortalezas e cumprir objetivos definidos e didáticos enquanto enfrentamos vários desses oponentes, o que também significa ter que procurar vários objetos explosivos. Pareceu uma tentativa tediosa de reproduzir uma experiência mais convencional em jogos do tipo, com direito até a uma pessoa de fora explicando os detalhes da missão pelo comunicador. Felizmente, apenas esse capítulo me incomodou com sua imposição destoante.

Mais um título de referência no meio independente

Tchia é um jogo pleno; atinge (quase) todos os seus objetivos com louvor. No arquipélago, há muito a fazer e encontrar, mas aquele também é um lugar para apenas estar, apreciar, passear, explorar. E que lugar deslumbrante! Certifique-se de imergir no mundo e na pele dos tantos animais que você pode incorporar, depois descanse tocando de ukulele e observando os detalhes de culturas que parecem distantes das nossas, mas ainda assim podem alcançar o mundo.

Prós

  • Lugares deslumbrantes;
  • Mar incrivelmente bonito;
  • Um mundo digno de ser curtido e explorado no seu ritmo;
  • Muitas atividades opcionais despretensiosas;
  • Uma enxurrada de cosméticos para personalizar a aparência de Tchia e da jangada;
  • A Transferência de Alma é um incrível sopro de liberdade;
  • Textos em português brasileiro.

Contras

  • Rastro fantasma em muitas superfícies;
  • O capítulo de invasão de fortalezas é desinteressante e quebra o ritmo;
  • Poucos NPCs são relevantes e interagem com a protagonista.
Tchia — PS4/PS5/PC — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Kepler Interactive

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google