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Análise: I Was a Teenage Exocolonist (Multi) é uma experiência única e sensível de RPG e simulação

Em um ambiente social fora da Terra, o título propicia uma reflexão ao mesmo tempo exótica e familiar sobre o impacto de nossas escolhas.


Desenvolvido pelo estúdio independente Northway Games, sob a direção de Sarah Northway, e publicado pela Finji, I Was a Teenage Exocolonist é uma carismática simulação da adolescência em um ambiente extraterrestre. Ao lado de um design narrativo não linear, no qual suas escolhas possuem constante peso na trama, o título apresenta elementos de Visual Novel e desafios com mecânicas de RPG baseadas em cartas que representam itens e principalmente as memórias acumuladas do adolescente ao longo de sua vida.

Uma reflexão sobre a adolescência e o colonialismo

Escrito por Sarah Northway e projetado por Lindsay Ishihiro, o enredo do game aborda reflexões bem interessantes sobre o impacto das decisões que fazemos sobre onde investir nosso tempo desde os 10 anos de idade até os 20 anos com repercussões em círculos de amizade, aptidões profissionais, relacionamentos amorosos e, mais tarde, posicionamentos políticos. Tudo isso aparece inicialmente de forma despretensiosa, mas à medida em que as escolhas se acumulam e que mais responsabilidades caem sobre seus ombros, você sente o real peso das numerosas opções e ramificações da trama que termina com 29 finais possíveis (uma rota leva cerca de 10 a 15 horas).

A história se passa inteiramente em um contexto extraterrestre. Após eventos catastróficos na Terra, um grupo de humanos embarcou em uma nave espacial e entrou em um buraco de minhoca que os levou a uma região chamada Vertumna IV. Durante a introdução do game, o protagonista fica tonto e entra em coma. Quando acorda, a nave está em terra firme e foi montada uma pequena colônia com barracas, instalações, equipamentos e muros ao redor.


O jogador controla um personagem com identidade customizável, é possível dá-lo o nome que se queira e escolher seu gênero em uma linha com diferentes graus de masculino e feminino, ou pode-se optar por uma zona neutra. De forma similar, seleciona-se uma aparência mais máscula, afeminada ou andrógina.

Essa personalização é parte importante da proposta do game. Mais tarde será possível ter relações amorosas (inclusive de poliamor) com personagens de qualquer identidade e o jogador terá amigos bastante diversos em combinação de aparência e identidade de gênero. Essa escolha sugere um futuro bastante liberal para a humanidade, e é particularmente interessante ver o processo de evolução e de identificação dos personagens desde o final da infância até o final da adolescência.


O planeta em que estão os exocolonialistas possui um ano com 13 meses e é dividido em quatro estações. Além de conversar com os habitantes da colônia, a cada mês você pode fazer alguma escolha com seu personagem, como participar de partidas de esporte, brincar com seus amigos, estudar em alguma área específica, trabalhar em algum setor da colônia ou sair para explorar as redondezas e obter itens consumíveis ou artefatos e objetos a ser estudados, os quais também podem ser dados como presente.

Suas escolhas mensais resultarão em pontos para o status de seu personagem. Há uma dúzia de atributos. Entres eles, “bravura”, “persuasão”, “raciocínio lógico” e “resistência”. Esses serão fundamentais para liberar interações ao longo da trama não linear e ao mesmo tempo bloquear outras possibilidades. Aliás, suas interações também contribuem para traçar sua trajetória na trama ramificada, pois o jogador inevitavelmente terá mais pontos de amizade (em uma escala de 0 a 100) com alguns personagens do que com outros.


Um pouco mais tarde na história (no final da infância), a colônia é quase destruída por um alienígena. Pouco tempo depois, outros humanos chegam ao planeta e clamam pelo território, prometendo protegê-lo e organizá-lo conforme os fins da humanidade. É claro que essa história levanta suspeitas na colônia e nem todos apoiam os novos líderes. Passado algum tempo, algumas escolhas de diálogo passarão a ser fundamentais também para deixar o protagonista mais alinhado à rebelião ou a uma nova ordem militar estabelecida.

Chegando ao final da adolescência, aos 17 anos, uma camada extra de interação surge: o alinhamento político. Tal alinhamento (mais revoltoso ou mais conservador) também influenciará suas relações com seus amigos na colônia, bem como impactará nas atitudes dos exocolonialistas diante de questões de sobrevivência e exploração no planeta. A região, afinal, possui um ecossistema a ser preservado, criaturas únicas e mesmo alienígenas inteligentes. Entre as principais variações de finais, está o fato de apoiar o novo regime colonial ou expulsar o líder militar e impedir que outros colonizadores cheguem até Vetumna.


De modo geral, o design narrativo do game é interessante, flexível e traz temas importantes a serem discutidos. Entretanto, eu senti falta de uma complexidade maior em relação aos assuntos políticos. Eles surgem apenas no final do jogo e com uma certa superficialidade na forma de definir alinhamentos e de abordar as questões. Outro aspecto do texto que apresenta alguns pontos fracos é a questão da ambientação e das interações com alienígenas; muitas vezes não soam verossímeis e deixam lacunas sem explicação.

Por outro lado, um ponto bem interessante está na forma como a interação narrativa simula o impacto de eventos traumáticos na infância e adolescência, bem como sua impotência diante deles. Por fim, talvez o ponto mais forte do roteiro esteja nos relacionamentos e na identidade de gênero. Há uma sensibilidade única na forma em que esses dois aspectos foram elaborados, com personalidades consistentes e diversas entre os personagens, as quais ajudam o próprio jogador a encontrar seu lugar na colônia.

Um RPG baseado em cartas e memórias

Com escolhas de game design de Sarah Northway e Colin Northway, I Was a Teenage Exocolonist faz uma excelente escolha para sua proposta de simulação de crescimento na adolescência: mecânicas de RPG. A experiência de role-playing é muito eficaz para transmitir o poder de nossas escolhas, colocando o jogador diante de dilemas e, além de tudo, dar a ideia de acúmulo de experiências ao longo da vida, as quais podem ser usadas para resolver problemas que encontramos no decorrer de nossas jornadas.

A solução do jogo para traduzir essas experiências em gameplay e utilizá-las em situações posteriores é coerente, engenhosa e prática: um sistema de organização de cartas. As vivências do protagonista se cristalizam em memórias, cada qual representada por uma carta.


Desse modo, o baralho do jogador representa o que ele fez de sua vida, o que inclui não apenas uma soma de aprendizados, mas também aquilo que ele resolveu esquecer ou aprimorar. Na prática, sempre que se depara com algum desafio, o jogador será levado a uma espécie de minigame com dinâmica em um ou três turnos no qual é preciso combinar as cartas que lhe são concedidas de tal forma a gerar a pontuação necessária para superar o desafio.

As cartas que surgem em suas mãos são sorteadas do baralho de sua vida e podem variar em cor, número e status. Nesse último caso, incluem várias mudanças em seus valores, como “se houver uma carta à esquerda, terá -3 pontos” ou “a cor se tornará a mesma de duas cartas adjacentes de mesma cor à esquerda e à direita”.


As combinações possíveis são bastante variadas e a longo prazo surgem desafios que têm potencial de se tornar verdadeiros puzzles, pois os valores das cartas também podem ser somados e multiplicados conforme pares, sequências, padrão de cor e mais. Contudo, a complexidade não é tão grande devido ao número limitado de espaços para dispor as cartas: de três a cinco slots com ordenação horizontal. Caso o personagem não esteja muito estressado, ele pode usar esse recurso também como um auxílio nos desafios.

Com level design de Rubro De, os desafios que levam a esse sistema de cartas podem ser situações sociais diversas ou então questões de sobrevivência durante a exploração do protagonista fora da colônia, como o encontro com alguma criatura hostil que bloqueia seu caminho. No entanto, um ponto fraco do jogo está justamente no quão limitado ele é em ambientes para explorar, apresentando apenas cinco regiões e pouca coisa pelos trajetos lineares além de tais desafios e alguns itens para coletar. Isso torna a experiência um tanto repetitiva e pouco instigante, mesmo havendo alguns pequenos mistérios em determinados locais.

Músicas sintéticas relaxantes e uma arte simples, charmosa e colorida

Contando com cenários desenhados por Eduardo Vargas e Sarah Webb, o mundo de Vertumna IV é, embora limitado em regiões, exuberante e exótico em termos de vegetação e clima, trazendo ao mesmo tempo uma sensação de conforto e estranhamento. O que dá um charme a mais à cenografia é a variação das estações.

Analogamente à Terra, temos quatro estações principais no jogo: Quiet Season, Pollen Season, Dust Season e Wet Season. Cada uma delas dá um tom diferente para o estilo fantástico da ambientação. E há ainda um período de transição de quase completa escuridão em que se destacam vários seres luminosos do planeta que dão vida a uma aura única de mistério e solidão nesse planeta tão distante da Terra. Confira no trecho de vídeo abaixo um pouco da experiência audiovisual do game.


Embora com animações muito simples, os personagens de Meilee Chao são um destaque à parte; todos bem desenhados, coloridos, variados e expressivos, fazendo com que a aparência de cada um reflita sua personalidade, humor e gostos pessoais. Suas informações pessoais podem ser consultadas em um menu do jogo. Só é uma pena, devido ao baixo orçamento da obra, não haver voice acting para esses ótimos personagens.

É especialmente gratificante ver seus amigos crescerem ao seu lado e acompanhar a transição visual deles em três etapas: infância, adolescência e fase adulta. Há eventos marcantes na trama, às vezes com efeitos visuais de distorção, que recebem ilustrações especiais e podem ser colecionadas na galeria do jogo.


Por fim, temos uma relaxante e bem embalada trilha sonora produzida por Gordon McGladdery com peças de vários compositores que possuem em comum um ritmo lento ou moderado de melodias leves, repetitivas e padronizadas e uma harmonia minimalista e atmosférica com padrões rígidos, como com uso de escalas. Esse estilo mostra-se um ótimo acompanhante para a leitura e a apreciação do ambiente do jogo.

Quase sempre os sons são sintéticos, em estilo de música ambiente eletrônica, mas ocasionalmente há instrumentação acústica e uma bela canção de pop rock de Frances Aravel. Na playlist abaixo você pode conferir as faixas da OST.

Uma experiência única e carismática de simulação e role-playing

Apesar de possuir uma experiência visual simples e limitada, especialmente em cenário e animação, com conceitos narrativos interessantes que poderiam ter sido melhor escritos e projetados, I Was a Teenage Exocolonist possui uma boa trilha sonora e grande sensibilidade em construção de personagem e relações de gênero, além de uma simulação única através de RPG narrativo e mecânicas interessantes baseadas em cartas que dialogam muito bem com seu enredo. Este título é altamente recomendado para jogadores casuais de simulação e VN, bem como amantes de RPG com foco narrativo.

Prós

  • Personagens carismáticos, bem desenhados, expressivos e bem construídos em torno de uma boa variedade com consistência de personalidades;
  • Design narrativo flexível, com uma boa variedade de ramificações e alto fator replay;
  • Trilha sonora consistente, relaxante e adequada para acompanhar o ritmo e o clima do jogo;
  • Sistema de desafios com mecânicas de cartas prático, flexível e criativo para traduzir o processo de acumulação, seleção e articulação de memórias e experiências acrescentadas no decorrer dos eventos da vida;
  • Uma boa variação de estações na colônia extraterrestre e com belas ilustrações;
  • Temas interessantes a respeito de identificação de gênero, relações de amizade e amor, bem como sobre alinhamento político em torno da ideia de colonialismo.

Contras

  • O texto nem sempre explora de forma satisfatória e verossímil aspectos da diversidade biológica e climática da região de Vertumna IV;
  • Os temas sociais e políticos são desenvolvidos muito rapidamente, principalmente nos últimos anos da simulação, e com uma certa superficialidade para alinhamento e posicionamento;
  • Falta de voice acting diminui um pouco a imersão da interação com os personagens;
  • A escrita dos personagens por vezes é caricata demais e isso nem sempre favorece a proposta, especialmente no caso da experiência política;
  • Design visual consideravelmente limitado e simples, especialmente em termos de animação e cenografia;
  • Level design muito simples e repetitivo para a exploração fora da colônia.
I Was a Teenage Exocolonist — PC/PS5/PS4/XBS/Switch — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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