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Análise: Yuppie Psycho: Executive Edition (Multi) é um survival horror que satiriza o trabalho empresarial de forma perturbadora e divertida

Não se deixe enganar pelos pixels minimalistas, o medo está à espreita.


Primeiro, vamos direto ao ponto: Yuppie Psycho é um ótimo survival horror e também é mais que isso. Inicialmente lançado para PC em 2019, no ano seguinte recebeu uma versão completa chamada Executive Edition, com galerias de arte e música, novos finais, cenas da história, área e chefe, versão esta que chegou recentemente ao PS4. Agora, vamos por partes.

O terror está nos olhos de quem vê

Eu já havia gostado de outro jogo do Baroque Decay, um estúdio da Espanha e França. O título é The Count Lucanor (Multi), um conto de fadas bem escrito, com atmosfera sinistra associada a uma gameplay simples e eficaz de stealth e exploração.

É bem curtinho e joguei em uma única sessão de quatro horas, guardando comigo o desejo de ver o que mais o estúdio conseguiria produzir em seguida ao elevar o alvo e a experiência. O resultado é Yuppie Psycho, um jogo mais longo e mais elaborado em todos os aspectos, embora ainda com o mesmo tipo de pixel art.



A estética visual é minimalista e pode não ser atraente à primeira vista, mas também não atrapalha a imersão, que é auxiliada pelos retratos de personagens com diferentes expressões faciais durante os diálogos, preenchendo a lacuna da imaginação.

Imagino também que essa decisão artística permitiu aos devs ilustrar a sanguinolência pretendida sem torná-la nauseante. Nós podemos ver o terrível quadro geral sem sermos bombardeados por um gore minuciosamente repulsivo, o que provavelmente pesaria na balança que habilidosamente equilibra o horror, a leveza e o humor presentes em Yuppie Psycho. Noentanto, é preciso destacar as ceninhas quase estáticas feitas com desenhos bonitos, ainda em pixel art. Veja um exemplo:



Outro ponto que eleva a densidade da atmosfera é o design de som apurado. A música marca a passagem de um clima a outro e sons inquietantes invadem o ar com gemidos, risos, sibilos e variados ruídos que reconhecemos com mais realismo que as imagens, uma contribuição importante para o sucesso em provocar tensão e até medo.

Sobreviva ao horror de uma megaempresa

Sabe como é estar em um enorme prédio cheio de locais trancados e mistérios para você resolver enquanto descobre mais e mais criaturas bizarras te caçando, tendo à disposição apenas os recursos que conseguir encontrar pelo caminho? Clássico survival horror, não?

Isso define a ideia básica de Yuppie Psycho, um bom exemplar do mesmo gênero dos primeiros jogos de Resident Evil e Silent Hill. No caso, o local é o edifício sede de uma das maiores empresas do mundo, a Sintracorp. Brian Pasternack é o protagonista que chegou ao primeiro dia de seu primeiro emprego e terá que percorrer todos os insalubres 10 andares de escritórios, arquivos, banheiros molhados, setores técnicos e até uma cafeteria para entender o mistério por trás de sua primeira e inesperada tarefa: matar uma bruxa?!



Todos os pisos são conectados por um elevador central, mas também surgem uns poucos atalhos mais adiante. Não pense que será uma ascensão linear andar por andar; apenas um dos botões do elevador está bloqueado e Brian terá que perambular por vários locais em busca de objetivos alinhados com a narrativa, obtendo acesso gradual aos espaços confinados da empresa.

Brian também encontrará salas opcionais, conhecerá pessoas muito estranhas (contando também com bons amigos) e terá missões secundárias que podem influenciar no final do jogo. Há vários desfechos e, por algum motivo, não estão ocultos na lista de troféus, então eu recomendo que quem não gosta de spoilers a evite na primeira jogatina.



Uma diferença crucial de Yuppie Psycho com os irmãos noventistas do gênero é a falta de armas para enfrentar as abominações, dinâmica herdada da ramificação popularizada por Amnesia: The Dark Descent (Multi). No máximo, você utilizará lápis afiados nos olhos das minas de aproximação para matá-las e enfrentará chefões medonhos por meio de puzzles.

Se você pensou que o jogador tem que evitar monstros, rastejar sob as mesas e se esconder em armários enquanto perambula por lugares escuros com uma lanterna na mão, acertou. Isso tudo acontece de maneira funcional, sem cair no ciclo repetitivo de fugas que interrompem o fluxo e tornam a gameplay uma questão de esperar que o perigo passe para poder seguir em frente.



O jogo não deixa o estilo stealth afetar o bom ritmo da exploração e nunca se prolonga mais que o necessário, com boa alternância entre os momentos seguros e os perigosos e sem segmentos exageradamente longos. Você sempre está progredindo, iniciando diálogos e encontrando algum recurso ou segredo.

Entre os segredos, destaco as fitas VHS que contêm filmes amadores em live-action que duram alguns segundos e, sendo mais bizarros do que violentos, estão ali apenas para contribuir com o clima mórbido e fazer o jogador se perguntar "que danado é isso...?!".



Como todo o enredo se passa dentro da empresa, os elementos do jogo são diretamente relacionados ao contexto de escritório e de forma bastante intuitiva. Você pode encontrar itens como papel, lápis e tinta de impressora nas gavetas, caixas e cestos de lixo. Para curar, usará alimentos encontrados, como sanduíche, café, refrigerante e pizza; para prepará-los, basta passar na cafeteria do primeiro andar, onde você poderá usar o micro-ondas, a cafeteira e a sanduicheira. Precisa de água para o café? Pegue nos bebedouros com garrafões de água mineral.



E para salvar o progresso? É à moda antiga, gastando um item a cada vez que precisar fazer isso; ou melhor, gastando um papel de bruxa para copiar sua alma ao enfiar a cara no painel da copiadora. No início, isso pode parecer intimidador, mas o jogo é generoso em fornecer comida e papéis de bruxa. Depois de certo ponto, nunca me vi com menos de cinco desses papéis e tive o bastante para também gastá-los para comprar habilidades com certo NPC.

E o melhor: cada vez que você salva, o jogo cria um novo slot automático, sem sobrepor os arquivos de salvamento anteriores. Isso significa que, caso salve 20 vezes na campanha, você ainda terá possibilidade de recarregar o jogo a partir de qualquer um desses 20 momentos específicos. Isso ajuda a quem quer ver os vários finais do jogo sem ter que jogar a campanha toda várias vezes ou voltar para pegar um item ou troféu que deixou passar.



O trabalho dignifica o... oh, wait!

A cena de abertura mostra o jovem Brian tremendo a caminho do primeiro emprego (quem nunca?), nervoso por pensar que o convite para trabalhar para a prestigiosa Sintracorp só pode ser uma brincadeira de mau-gosto.



O elevador o leva diretamente ao último andar, onde há a sala da presidência. Sem ninguém ali para esclarecer a confusão do jovem, sobre a enorme mesa está o complicado contrato, cujo objetivo pode ser resumido pelas impactantes palavras sangrentas na parede: MATE A BRUXA. Você assinará o compromisso macabro?

Eu adoro um bom conto de horror e isso basta para dar alma a um jogo do gênero. Yuppie Psycho vai além de apenas contar a história e constrói toda a sua base em cima de uma sátira mordaz ao trabalho moderno.

Logo nos primeiros diálogos, podemos entender que a história se passa em uma distopia na qual as pessoas são hierarquizadas em castas sociais, aparentemente baseadas no trabalho, uma vez que o emprego pode garantir ascensão de classes. É o caso de Brian.





Ele vem do interior e pertence à classe F, mas o contrato com a Sintracorp o promove à classe A. Seu sentimento de inadequação e inferioridade ao julgar a si mesmo como um caipirão sem formação especializada refletem a condição precária de quem tem uma posição social fixa na base da pirâmide, sem expectativa de mudança ou desenvolvimento. Não demora até Brian perceber que há algo muito errado com aquele lugar e não é apenas o cotidiano de escritório com fofoca, intriga, competição, traição e promoção por interesse pessoal.

Na nova empresa, o recém-chegado encontra cadáveres largados em poças de sangue e pendurados por fios, pessoas de olhar vazio que balbuciam como zumbis, objetos de escritório que se o atacam como se estivessem possuídos e funcionários trabalhando em suas mesas que rosnam e tentam mordê-lo ao se aproximar demais, como se estivessem enfurecidos por você atrapalhar o trabalho deles.



Melhor é dizer que nada na Sintracorp está certo, ainda que muitos tentem manter a aparência de normalidade. Outros dizem que tudo é culpa da bruxa que assombra a companhia há anos. Será algum dos colegas a bruxa?

Cabe aquela comparação com a série Black Mirror: uma extrapolação extrema na ficção para mostrar sem rodeios uma face obscura da cultura atual. No jogo, o trabalho corporativo consome essas pessoas, coloca sobre os ombros dos funcionários a responsabilidade de se adequar à empresa a qualquer custo, perturba sua saúde mental e livra-se delas como se não valessem nem um copo descartável (como os casos recentes de dezenas de milhares de funcionários de big techs demitidos via e-mail).



Um exemplo muito claro é quando resgatamos uma colega, igualmente em seu primeiro dia de trabalho, que estava sufocando na névoa venenosa que cobre o quarto andar, apelidado de Colmeia. Ela estava escondida dentro de um armário para escapar de uma monstruosidade, mesmo que assim continuasse exposta ao veneno. Passado o perigo, ela ficou mais preocupada com sua incapacidade de cumprir a tarefa de copiar milhares de papéis diante daquelas adversidades do que com as condições de trabalho atormentadas pelos horrores que habitam o prédio.



No segundo andar, uma multidão vaga sem rumo pelo saguão. Sempre que um deles para, os outros reclamam “quem para, morre”. Enfeitiçados pela companhia, eles não questionam a atividade frenética de ficar em movimento sem um objetivo concreto. O panfleto do RH avisa que os funcionários deveriam agradecer por ter um emprego ao invés de serem substituídos por qualquer dono dos 5.000 currículos recebidos cotidianamente.

A palestra motivacional faz com que todos repitam que não devem apenas dar seu melhor, mas o próprio sangue, algo que pode acabar se tornando literal. Todos obedecem, mesmo reconhecendo que o palestrante, em cima de um cavalo e vestido como um general do século XIX, é obviamente louco.



A cultura de abuso do trabalho é disfarçada por valores como comprometimento, resiliência e paixão, como ocorre em situações de crunch (carga horária excessiva) nos estúdios de desenvolvimento de games. Sempre tem um tolo para comentar que “os devs fazem isso porque querem, ninguém está obrigando com uma arma apontada para a cabeça deles para trabalhar”. Existem várias armas simbólicas.

No jogo, os funcionários não apenas se submetem a isso, mas acham que é sua obrigação para manter o suposto privilégio de fazer parte da Sintracorp, se agarrando à ilusão de que aquela ainda é “a maior empresa do mundo”.



Yuppie Psycho é, no título e na obra, um conto do ideal yuppie levado ao nível psicótico, que é o estado em que uma ideia imaginada substitui a percepção da realidade pelo indivíduo. É exatamente por isso que o protagonista tinha que ser da casta inferior.

Brian não foi arrebatado pela onda yuppie dos jovens profissionais urbanos (young urban professionals) centrados em ascender na carreira e no poder de consumo. Criado sem ilusões de grandeza, ele é resistente às tentações que aquela empresa doente oferece em troca de seu sangue. Ele não nega para si mesmo que há algo muito errado naquilo tudo. Será que podemos dizer o mesmo sobre nossas vidas profissionais?



Relatório final

Yuppie Psycho é uma obra excelente que faz um ótimo trabalho como um survival horror que consegue de um só golpe ser uma fábula terrível e divertida das neuroses do mundo empresarial. Há muitos mistérios a buscar e segredos a revelar tanto no microcosmo do edifício da Sintracorp como na trama tecida a abusos, sangue, amizade e humor absurdo.

Prós

  • Atmosfera intensa de survival horror.
  • História intrigante com bons diálogos e recorrência ao absurdo.
  • Sátira bem-feita ao trabalho empresarial.
  • Design que evita a repetição e mantém bom ritmo entre gameplay e narrativa.
  • O gerenciamento de recursos limitados (mas nem tanto) incentiva a exploração sem deixar o jogador em privação.
  • Segredos bizarros para encontrar.
  • O design de som inquietante eleva a imersão.
  • Totalmente localizado em PT-BR.

Contras

  • Pixel art minimalista durante a gameplay não se destaca e pode afastar alguns jogadores.
  • Às vezes, a escuridão é exagerada.
Yuppie Psycho: Executive Edition – PS4/PC/XBO – Nota: 9.0
Versão Utilizada para análise: PS4 (jogada no PS5)
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise realizada com cópia digital cedida pela Another Indie

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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