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Análise: Cult of the Lamb (Multi) — montando um culto em um universo fofo e macabro

Enfrente hereges e crie uma nova fé neste criativo e desconcertante título indie.


Um cordeiro ressuscitado por uma entidade nefasta é o protagonista de Cult of the Lamb, título indie com proposta bem peculiar. Na pele do ser possuído, precisamos administrar um culto e explorar locais sombrios para tentar conquistar a liberdade. O jogo mescla exploração de calabouços, elementos de roguelike, gestão de recursos e customização de base para criar uma aventura singular. Ele cativa com suas boas ideias e sua ambientação simultaneamente fofinha e macabra, mas alguns aspectos subdesenvolvidos acabam não aproveitando todo o potencial da proposta.

Confrontando a fé antiga de uma terra ancestral

Um ritual está em curso em uma clareira no centro de uma floresta. Nele, quatro criaturas sinistras pretendem sacrificar o último cordeiro a fim de evitar a concretização de uma profecia. No entanto, a cerimônia dá errado e o animal é salvo por Aquele Que Espera, uma entidade sinistra que está aprisionada em outra dimensão. Isso não foi um ato de benevolência. Pelo contrário, agora o cordeiro terá que fundar um culto para acumular poder e, assim, libertar seu patrocinador sombrio.

A missão do cordeirinho não será fácil, pois ele precisará confrontar os Bispos da Antiga Fé, que vão fazer de tudo para impedir que Aquele Que Espera seja solto. Para enfrentar os vários perigos e desafios, o protagonista conta com uma coroa especial que é capaz de se transmutar em diferentes armas e ferramentas. O artefato tem também poderes sombrios, que são essenciais para convencer os descrentes e espalhar a palavra.



Montando uma seita sombria

Cult of the Lamb usa essa premissa macabra para criar uma aventura diversa e singular. A jornada é dividida em dois principais momentos: administração do culto e exploração de calabouços. Os elementos estão interligados e se influenciam mutuamente, demandando fazer um pouco de cada atividade para poder avançar.

Durante as Cruzadas, o cordeirinho desbrava diferentes regiões perigosas a fim de encontrar recursos, recrutar seguidores e derrotar os Bispos da Antiga Fé. Naturalmente, esses locais estão repletos de hereges fanáticos que atacam impiedosamente. Para se defender, o herói utiliza armas (espadas, facas, martelos e garras) e poderosas Maldições, como lanças de energia, tentáculos espectrais que surgem do solo ou uma explosão que empurra os inimigos.


Pelo caminho, encontramos cartas de tarô com efeitos passivos e também diferentes armamentos e feitiços — atualizar constantemente o equipamento é essencial para sobreviver. Cada Cruzada é única, pois os mapas, eventos e itens sempre mudam, como é de praxe no estilo roguelike. Morrer não é um grande problema, pois só perdemos parte dos recursos coletados.

Fora dos calabouços, é hora de utilizar os espólios para cuidar do culto. Há muito o que fazer, como orientar os novos membros, construir estruturas para o local e, claro, promover sermões para espalhar a palavra d’Aquele Que Espera. Para se ter sucesso na empreitada, é crucial cuidar do bem-estar dos seguidores: eles precisam de comida, de um lugar para dormir e de um ambiente limpo. Deixá-los insatisfeitos é uma situação problemática, pois sua fé diminui e eles podem acabar abandonando o seu rebanho.


Os seguidores são muito importantes, uma vez que são a fonte de poder do cordeirinho. Ao ficarem imersos em orações, eles geram Devoção, que pode ser utilizada para liberar edificações para expandir a seita. Já a fé canalizada durante os sermões libera melhorias para a coroa, como novos tipos de armas e maldições. Por fim, certas áreas exigem um número específico de membros no rebanho para poderem ser acessadas. Quanto maior o rebanho, mais rápido será o progresso.

Conforme avançamos, outros locais com atividades diversas são desbloqueados. Podemos pescar em um píer, jogar um minigame com dados apostando dinheiro ou então completar diversas missões paralelas. Há também versões mais complicadas dos calabouços, com rotas de desafio crescente e recompensas melhores.



Enfrentando os descrentes em combates fervorosos

Pode não parecer, mas essa mistura curiosa de conceitos de Cult of the Lamb é bem divertida. Eu nunca imaginei que ia gostar tanto de cuidar de um culto nefasto na pele de um cordeirinho possuído, mas a combinação de atividades e o humor sombrio me conquistaram.

As Cruzadas funcionam como um dungeon crawler tradicional focado em embates. A ação nos calabouços tem ritmo acelerado e o desafio é razoável, com combates que demandam observar os inimigos e agir na hora certa. Há caminhos alternativos, alguns eventos, mapas com bifurcações e muitos chefes. Não existem conceitos únicos ou mirabolantes nesses momentos, mas a execução é ótima e o andamento é ágil — as incursões levam só alguns minutos e não chegam a ficar enfadonhas.


O problema é que a exploração de calabouços se torna repetitiva com o tempo, pois a diversidade de situações é reduzida. Todas as quatro áreas são mecanicamente similares, apresentando somente inimigos distintos e algumas poucas armadilhas próprias. Além disso, a diversidade de feitiços e armas também é pequena e as cartas de tarô mudam pouco as habilidades do cordeiro.

Por causa de todos esses detalhes, não há no jogo aquela variedade característica de roguelikes, como a possibilidade de montar sinergias. Podemos desbloquear equipamentos alternativos e roupas com mudanças mais drásticas, porém não são suficientes para trazer variedade. É fácil perceber que a intenção não é oferecer uma experiência roguelite elaborada, no entanto diversidade tornaria as partidas mais interessantes.



Moldando a fé com benevolência ou com severidade

A parte de administração chama a atenção com sua temática e alguns recursos bacanas (e macabros). Algumas construções são bem comuns, como uma fazenda e tendas para seguidores, mas a maioria é no mínimo bizarra. Podemos construir um altar para receber doações dos membros, uma estranha estátua que coleta o poder da oração, fogueiras que deixam os crentes em frenesi e aumenta a velocidade da reza, entre outras coisas obscuras. Há também inúmeros elementos cosméticos e com um pouco de esforço você pode criar uma seita repleta de coisas assustadoras ou um acampamento colorido.

Porém, os recursos mais interessantes têm a ver com os princípios da seita. No templo, podemos promover todo tipo de ritual com efeitos diversos: sacrifício de seguidores para aumentar o poder da coroa, uma dança na fogueira que aumenta a fé dos membros ou até mesmo servir chá de cogumelos para fazer todo mundo trabalhar loucamente por alguns dias.


Já as Doutrinas alteram as regras da seita, com direito a variações benevolentes e opressoras — no meu culto, fiquei rico ao forçar os membros a pagarem dízimo diariamente, instaurei uma ordem de honrar os idosos (o que dá fé bônus quando há seguidores mais velhos) e promovi grandes banquetes para deixar todos satisfeitos. Ou seja, é possível moldar um pouco os rumos do seu rebanho.

Fundar uma nova fé não é fácil e muitos problemas acontecem pelo caminho, como fome, doenças ou a crença abalada pela morte de alguém. Nesses momentos, precisamos cuidar pessoalmente das questões plantando e colhendo vegetais, cozinhando, arrumando coisas quebradas e assim por diante. Às vezes os seguidores também pedem favores específicos na forma de pequenas missões. Confesso que em um primeiro momento achei chato realizar essas tarefas repetitivas, contudo a administração fica mais agradável quando colocamos os membros para fazer os trabalhos — chega um momento em que o rebanho se torna quase autossuficiente.


Assim como os calabouços, a parte de administração se revela um pouco rasa demais. Na prática, são poucas as tarefas disponíveis, e a maioria dos problemas tem uma ou duas soluções possíveis. Além disso, conforme avançamos na aventura e liberamos as opções de automatização, cuidar pessoalmente dos problemas se torna quase irrelevante — mais para o final, eu só visitava a minha sede rapidamente para cozinhar e arrumar coisas quebradas. Por fim, administrar os seguidores vai ficando cada vez mais custoso: em vez de selecionar as ordens em um menu, precisamos encontrar o indivíduo e conversar pessoalmente, o que vira um transtorno quando o grupo cresce.



Em um universo perturbador e envolvente

De longe, o aspecto mais marcante de Cult of the Lamb é a sua ambientação macabramente fofa. O mundo é sombrio e estranho, com muitos ídolos exóticos e monstros bizarros. No entanto, nosso culto é repleto de animaizinhos com olhos expressivos e controlamos um cordeirinho feliz. O protagonista é muito carismático, mas também assustador: durante os sermões e rituais, ele começa a flutuar e seus olhos começam a sangrar de forma perturbadora, como se estivesse possuído por um ser maligno.

O visual 2D lembra um desenho animado sombrio, porém há muito contraste temático: algumas áreas são bem coloridas e brilhantes, já outras usam muitos elementos estranhos e sombras para criar cenários opressivos. O único porém é que às vezes os ambientes têm objetos demais, o que obscurece inimigos e pontos de interesse. Destaco também a trilha sonora, que usa sussurros e melodias ritualísticas para completar a atmosfera macabra.


O jogo é repleto de ações desconcertantes. Em um momento, por exemplo, um dos seguidores se revoltou e começou a espalhar mentiras pelo meu culto. Para resolver a situação, eu podia matá-lo com uma comida envenenada ou então prendê-lo e doutriná-lo à força — executei a segunda opção. Para conseguir poder rápido, uma possibilidade é invocar tentáculos das profundezas e sacrificar um dos seguidores em um ritual grotesco. Encontrou alguém que não acredita na sua verdade? Use os poderes sombrios para forçá-lo a entrar para o seu rebanho.

A dissonância entre o visual leve e as ações extremas é desconfortável, mas é também impactante e repleta de personalidade. E lá no fundo há um pouco de crítica a esse tipo de organização focada na fé cega.



Louvado seja o cordeirinho possuído, aquele que corrompe o mundo em uma ótima jornada

Cult of the Lamb combina dois gêneros em uma jornada hipnotizante. Os momentos de exploração de calabouços se destacam com sua ação ágil e descomplicada, já a administração do culto é relaxante e com boas possibilidades — a sinergia entre as atividades deixa o ciclo de jogo bem viciante. Além disso, é difícil não se impressionar com a atmosfera simultaneamente fofa e macabra.

Os dois estilos se complementam razoavelmente bem, mas sozinhos eles se revelam um pouco rasos: falta variedade de situações e mais opções de desafio, o que atrapalha a experiência, especialmente nos trechos finais. Porém, é inegável que o conceito do título é criativo e único. No mais, Cult of the Lamb é uma peregrinação que vale a pena ser experimentada.

Prós

  • Boa mistura de diferentes gêneros que estão fortemente entrelaçados;
  • Ação ágil e de bom desafio nos momentos de exploração de calabouços;
  • Administração de base descomplicada e com algumas ideias interessantes;
  • Universo instigante que combina elementos fofos com características macabras.

Contras

  • A sinergia entre os sistemas perde a força no decorrer da aventura;
  • Pequena diversidade de situações nos calabouços, mesmo com os elementos de roguelike;
  • O gerenciamento do culto se torna desnecessariamente custoso conforme ele aumenta;
  • Muitos elementos nos cenários às vezes atrapalham a clareza da ação.
Cult of the Lamb — PC/PS4/XBO/Switch — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Devolver Digital

é brasiliense e gosta de explorar games indie e títulos obscuros. Fã de Yoko Shimomura, Yuzo Koshiro e Masashi Hamauzu, é apreciador de roguelikes, game music, fotografia e livros. Pode ser encontrado no seu blog pessoal e nas redes sociais por meio do nick FaruSantos.
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