Blast from the Past

Relembre NiGHTS into Dreams (Saturn), um símbolo cult de um console fadado ao fracasso

Clássico do Saturn completa 26 anos em julho de 2022 em meio a todas as controvérsias recentes de um de seus produtores, Yuji Naka.


Embora Yuji Naka tenha figurado recentemente nos noticiários por sua índole bastante questionável e é lembrado mais por ter fracassado de maneira retumbante em seus últimos projetos, como Balan Wonderworld (Multi), o desenvolvedor conhecido por ter integrado a Sonic Team durante os anos de ouro do ouriço no Mega Drive também é normalmente associado a outro título: NiGHTS into Dreams, que completa 26 anos agora em julho.

NiGHTS foi um projeto concebido para ser o carro-chefe do então Sega Saturn, console que estava em ampla dificuldade em sua competição no mercado contra a Nintendo — que logo mais iria se resvalar no fenômeno Pokémon — e a estreante Sony, que surfava na onda do PlayStation. Além disso, tentando dar uma pausa da adrenalina do ouriço, o título protagonizado pelo pierrô veio justamente como uma tentativa de diversificar o portfólio da Sonic Team. 

Muitos são os motivos da dificuldade de NiGTHS conseguir se consolidar. Um deles é que, embora o Saturn conseguisse simular com alguma propriedade certos ambientes tridimensionais, ele não era um console 3D propriamente dito, como era o caso do Nintendo 64 e que tinha Super Mario 64 como principal nome. Além disso, o jogo seguiu na contramão da estética dos anos 90, normalmente lembrada pelo excesso de adrenalina que sua indústria cultural exalava na época, com Dragon Ball ou Final Fantasy 7 (perceba o cabelo espetado como padrão).



Os sonhos são feitos para fazer sentido?

NiGHTS começa a ser diferente logo em sua proposta, que decidiu utilizar o mundo dos sonhos como tema central, tendo como base os estudos junguianos a respeito do onírico, como o conceito de Animus e Anima, a figura da Sombra e outros arquétipos do sonho. Dessa forma, para se ter noção de onde todas essas ideias entram, é necessário ir em partes, começando pelo enredo básico do game.

Para tal, conhecemos a história de Elliot Edwards e Claire Sinclair, dois jovens no auge de seu autodescobrimento como adolescentes. Em seu cotidiano, ambos sofrem com a pressão externa de seus pares para terem sucesso em suas atividades, mas acabam fracassando. Traumatizados, eles começam a sofrer com pesadelos em que têm que reviver suas falhas continuamente.

Quando dormem, os sonhos humanos são reproduzidos em dois lugares distintos: Nightopia e Nightmare, onde o maligno Wizeman reina. O vilão, visando aumentar seu poder, interfere nos bons sonhos de Nightopia, roubando a energia deles para conseguir expandir seus domínios até o mundo real. Elliot e Claire, entretanto, conseguem escapar das garras do antagonista e, em Nightopia, libertam NiGHTS, que estava preso por ter se rebelado contra seu criador, o próprio Wizeman.




Assim, a jornada de NiGHTS contra o temível Wizeman também é a jornada de superação de Elliot e Claire, sendo que cada estágio do game corresponde a um sonho diferente de algum dos dois jovens. É aí que começa o problema: na jogabilidade prática. Talvez caindo muito de cabeça na proposta do surrealismo, em que nada precisa realmente fazer sentido, o gameplay de NiGHTS é o mais puro caos. 

De um modo geral, a proposta é até simples, visto que é preciso voar on rails pelo caminho determinado e ir coletando as blue chips no trajeto. Com elas, é possível libertar as Ideyas da fase, que correspondem a uma espécie de emoção dos garotos. Com quatro Ideyas, chega a hora do chefão, que normalmente pode ser derrotado com simples investidas, mas cujos estágios também estão cheios de mecanismos para atrapalhar a vida do jogador. O looping do jogo, por sua vez, consiste em alcançar sempre a melhor pontuação, promovendo a repetição de estágios até alcançar a média C de pontos, o que libera o próximo sonho. Contudo, tudo deve ser feito dentro de tempos cronometrados, caso contrário, o jovem acorda e o sonho acaba. 

O problema é que essa dinâmica de coletar as fichas e libertar as quatro Ideyas para então chegar ao boss é bem pouco intuitiva e, ainda por cima, não há tutoriais que tornem o processo didático, tendo o jogador que se virar sem um manual no meio da bagunça que são os níveis de jogo. 




O ambiente pseudotridimensional do game chama a atenção por ser uma provável tentativa da Sonic Team de tentar implementar os aprendizados de level design de Sonic 2 e suas sequências, com mecanismos de rotas alternativas, desvios improváveis e caminhos bifurcados, brincando o suficiente com a perspectiva de câmera também, seja para aprimorar a experiência com sua ousadia, seja para atrapalhá-la pela falta de regulação. 

Nota-se que a decisão por tentar simular essa tridimensionalidade vem da tendência da época, uma vez que games em sidescroller eram vistos como extremamente ultrapassados. Isso foi uma dificuldade do time de desenvolvimento, visto que, como constatado, o Saturn não era o melhor console para trabalhar a sensação de profundidade. O resultado final, então, é o que pode ser chamado de “sidescroller bidimensional em um espaço 3D”, de acordo com Naka em entrevista

Como se os estágios já não fossem complexos e confusos o suficiente, a Sonic Team decidiu aprimorar uma mecânica adicional chamada A-Life, um sistema que, utilizando o relógio interno do Saturn, funciona como uma forma de bichinho virtual com o qual o jogador pode criar os chamados Nightopians dentro das próprias fases. 




O problema é que não há um retorno prático por perder tempo no sistema A-Life, sendo apenas mais uma ideia jogada e pouco trabalhada no quesito de game design no que diz respeito a trazer um desafio para ser superado e, com isso, oferecer uma recompensa à altura. Isto é, não dá para dizer que as alterações do tom da trilha sonora, decorrentes do humor momentâneo dos Nightopians, sejam em si uma compensação justa por todo o trabalho exigido.

Com o tempo e repetição constante, o jogador acaba adquirindo o conhecimento das nuances dos sonhos e, assim, vai melhorando o score a ponto de realmente entender o game e os movimentos de NiGHTS, progredindo e melhorando exponencialmente no título. Dito isso, NiGHTS into Dreams é um jogo interessantíssimo para speedruns, visto que é possível fechá-lo em pouquíssimas horas, caso ele já tenha sido completamente dominado de antemão.

A nova cara da Sega

NiGHTS into Dreams é um produto decorrente de uma mudança de paradigma na Sega, que tentava se vender como uma empresa descolada para os jovens que já tinham crescido e ficado velhos demais para o Super Mario que eles jogavam quando crianças. Isso vem em paralelo com outras iniciativas, como a concepção do Segata Sanshiro como garoto-propaganda e a doação de consoles Saturn para escolas como plataformas que tinham acesso à novidade daquele momento: a internet.




Ainda assim, alguns hábitos não mudaram e, no intuito de otimizar a experiência de voar pelos sonhos no controle de NiGHTS, a empresa lançou mais um periférico em um mercado que já estava atolado deles (como o famigerado Sega CD). No caso, o jogador que adquirisse NiGHTS também recebia na caixa um controle especial com uma alavanca analógica concebida especialmente para o título, mas que foi surpreendentemente bem recebida pelo público.  

Com a Sega em rota de colisão por conta de várias decisões de negócio questionáveis sendo tomadas em sucessão, o NiGHTS original chegou a render uma espécie de edição especial de demonstração temática de Natal, chamada Christmas NiGHTS, distribuída em várias ocasiões diferentes. Além disso, as estratégias de mídia mix da empresa para com suas IPs também fizeram com que a marca rendesse vários produtos licenciados.

NiGHTS foi dar as caras em outras duas oportunidades. A primeira delas foi um remake tridimensional produzido originalmente para o PlayStation 2 e que depois recebeu ports para outras plataformas, como o PC via Steam. A segunda foi no Wii, com uma sequência direta que carece do mesmo charme do original principalmente por tentar reproduzir a sensação de inovação em controle que o original proporcionou, mas com os controles de movimento, algo que, na prática, não foi muito bem recebido; inclusive, a recomendação da maioria dos analistas da época era jogar com um classic controller para tornar a experiência menos frustrante. 



Um clássico cult marcado no inconsciente

Apesar de ter sido bem recebido em sua época, ninguém realmente jogou NiGHTS into Dreams porque realmente ninguém tinha um Saturn para jogá-lo. Isso fez com que ele se tornasse uma espécie de clássico cult, que conseguiu consolidar o personagem e sua mitologia no cânone da Sega. Vinte e seis anos depois, contudo, o pierrô segue reduzido a essas participações pontuais, visto que, aparentemente, há pouco interesse da empresa em tentar produzir um jogo novo — sentimento não compartilhado por Takashi Iizuka, o game designer que realmente foi o principal responsável pelo título e que normalmente é deixado de lado por conta de todo o estrelismo que Naka puxou para si ao longo de sua carreira. 
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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