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Análise: Hitman III (Multi) e as sofisticadas artimanhas de um assassino

No capítulo final da trilogia World of Assassination, o Agente 47 firma seu contrato mais sombrio e profissional.

Artimanha é a forma hábil e engenhosa de se conseguir algo, e na série Hitman esse conceito está atrelado às estratégias utilizadas pelo jogador para chegar a um determinado alvo e eliminá-lo. Enquanto você controla o enigmático Agente 47, pode se tornar um feitor estelionatário capaz de obter vantagens para si e dominar a arte do assassinato. No entanto, terá que ter cuidado, pois suas escolhas e ações definirão os eventos do mundo a sua volta.

Não há como falar da temática de stealth sem mencionar a desenvolvedora dinamarquesa IO Interactive, que encerra mais um ciclo de aprendizado com a trilogia World of Assassination. Hitman III é o capítulo final desta nova história que leva o Agente 47 para sua missão mais sombria, íntima e profissional, e mostra por que ele se tornou um dos assassinos mais famosos dos videogames.

Poder, segredos e traições

Hitman III começa com uma cutscene ágil, dirigida com inteligência, que visa estabelecer uma interconexão de narrativas entre o final do segundo capítulo e a terceira e última parte da trilogia World of Assassination. Para quem não lembra, antes dos créditos rolarem em Hitman II (Multi), o Agente 47 e seus aliados, Lucas Gray e Diana Burnwood, finalmente conseguem encontrar Arthur Edwards – também conhecido como Constant.

A equipe busca extrair informações do antagonista para destruir, de uma vez por todas, a Providence, uma organização de elite que interfere nos principais eventos mundiais. No entanto, Edwards é muito mais sagaz do que parece e é claro que usaria todos os seus truques de manipulação para dar a volta por cima. Desta forma, Hitman III segue o Agente 47 em uma missão final cheia de reviravoltas, enquanto caça os membros remanescentes da associação que rege o mundo diretamente das sombras.

Toda a trilogia da IO Interactive destaca temas como poder e controle, em que uma organização guia o rumo da história e tem força suficiente para manipular os mais marginalizados da sociedade. Em boa parte da campanha, a própria essência do trabalho do Agente 47 refletiu essa perspectiva, pois ele sofreu um processo em que todas as suas memórias foram apagadas e assim foi projetado para ser um atirador perfeito, sempre cumprindo ordens de outras pessoas e nunca por livre-arbítrio.

É brilhante como Hitman III aprofunda sua narrativa em relação aos dois primeiros jogos e traz uma reviravolta de encher os olhos, sempre surpreendendo a cada novo ato com segredos e traições. Suas composições de ideias bem fundamentadas são dignas de um blockbuster de espionagem. Ainda que não seja algo exatamente extraordinário, ela é a força motriz de World of Assassination e é satisfatória o bastante para finalizar a história iniciada em 2016 com maestria.

As cutscenes cinematográficas são muito bem feitas, diferente de Hitman II, em que elas não têm movimento algum, quebrando praticamente toda a imersão do jogo. Entretanto, em algumas delas, as animações faciais dos personagens simplesmente são estranhas e parecem borradas pela falta de iluminação e polimento. A qualidade de imagem dessas cenas não é das melhores, o que é inusitado se comparado aos cenários abertos visualmente deslumbrantes.

No PlayStation 4 (versão Slim), o título rodou com resolução estável de 1080p 60fps na maior parte do tempo, mas eventuais problemas com quedas para 30 e 40fps foram visíveis em áreas muito abertas e com grande quantidade de elementos, o que resultou em alguns breves efeitos de slowdown.

A IO Interactive permitiu importar as fases dos títulos anteriores diretamente para Hitman III, criando uma espécie de edição completa para a trilogia. Embora ainda seja necessário comprar os outros dois jogos separadamente, eles contam com gráficos, animações e IAs aprimorados quando integrados ao jogo base. Particularmente eu achei essa ideia muito interessante e positiva, visto que Hitman é quase uma experiência episódica, o que garante maior compreensão dos fatos.

No entanto, quando tratado como um título AAA autônomo, Hitman III é um pouco decepcionante por conta da duração. Se você ignorar os eventos gerais do game e realizar somente as missões relacionadas à história principal, ele pode ser concluído em menos de cinco horas. É mais próximo de uma expansão do que de uma experiência individual propriamente dita, apesar do alto fator de rejogabilidade em ricos cenários sandbox. Esse não necessariamente é um ponto negativo, mas deve ser analisado pelo estúdio para futuras produções.

Depois de sair de baixo das asas da Square Enix e da Warner Bros. Games, a IO passou a ser também uma publicadora, mas isso custou caro para os jogadores brasileiros. Hitman III não está localizado em português e não conta nem mesmo com legendas nos menus e nas interfaces de usuário. Isso deve afastar um pouco o público que não se dá bem com línguas como o inglês ou o espanhol, visto que fica difícil de acompanhar e compreender a história sem a opção da língua nativa.

As artimanhas do Agente 47

Além da excelente construção da narrativa, o que mais destaca Hitman III é a dinâmica de gameplay multifacetada que permite concluir determinadas missões de várias formas. Essa fórmula conhecida em 2016 foi ampliada no capítulo final, trazendo algumas novidades sutis para incrementar a jogabilidade. Como sempre, você deve controlar o Agente 47 por grandes áreas sandbox e eliminar alvos pré-definidos por meio da furtividade. Ao interagir com os elementos dos cenários, você também pode descobrir segredos como outras tarefas adicionais e pistas sobre os inimigos, o que eleva o fator replay do título.

Existem seis ambientações principais: Dubai, nos Emirados Árabes Unidos; Dartmoor, no Reino Unido; Berlim, na Alemanha; Chongqing, na China; Mendoza, na Argentina; e Montanhas dos Cárpatos, na Romênia. Cada um desses ambientes abertos apresenta uma infinidade de caminhos para que você resolva a missão de maneiras inéditas.

O level design inteligente e repleto de diversidade estimula a exploração e a IO Interactive trouxe alguns níveis impressionantes, como Dartmoor, no Reino Unido, que é simplesmente genial. Na missão “Death in the Family”, você pode transformar o Agente 47 em um detetive particular que se envolve em uma investigação sinistra como no filme “Entre Facas e Segredos”, de Rian Johnson. O seu objetivo é descobrir quem assassinou um membro de uma família inglesa e para isso deve explorar todo o cenário para ouvir os depoimentos dos suspeitos e procurar por pistas. Tudo isso é feito em sincronia com a missão principal de eliminar a matriarca da família.

Em “Apex Predator”, o Agente 47 se infiltra em uma discoteca em uma zona industrial nos arredores de Berlim, na Alemanha, a fim de encontrar alvos da ICA desconhecidos e também disfarçados na multidão. A única maneira de descobrir quem são é chegando perto o suficiente para captar alguma informação. No entanto, esses inimigos também o reconhecem, o que torna a missão uma verdadeira briga de gato e rato em um ambiente lotado e frenético. Todos esses níveis reinventam o terceiro título da trilogia World of Assassination, mas nunca eliminando a essência da série.

Todos os cenários são substancialmente atraentes, exceto pelas Montanhas dos Cárpatos na Romênia, que para mim não traz as diversas possibilidades que a série tem a oferecer. O nível é muito linear e não há muitas escolhas a fazer para se chegar ao alvo final, embora apresente desafios de tirar o fôlego, principalmente mais voltados ao combate com armas de fogo.

Tradicionalmente, os disfarces são as maiores armas do Agente 47, contando com opções diversas como segurança, mordomo, detetive, fotógrafo, entre outros. Cada um deles oferece ao jogador acesso a áreas específicas do cenário, o que mantém o protagonista fora do alcance de visão dos principais inimigos. Além disso, Hitman III conta com uma boa variedade de ferramentas para utilizar em missões, como chaves de fenda, pé de cabra, guarda-chuva e muito mais. Se infiltrar em diferentes espaços exige paciência e planejamento com cada um dos acessórios disponíveis.

Uma das novidades do título é uma espécie de câmera que funciona como um scanner para abrir portas eletrônicas, escanear objetos e pistas para adquirir maiores informações sobre algo, tirar fotos e acionar distrações. Esse recurso é interessante, e até agrega um pouco mais de valor ao gameplay, mas é meio subutilizado e limitado, não oferecendo muitas outras opções de uso. Em Chongqing, na China, por exemplo, você explora uma espécie de bunker tecnológico, onde existem vários elementos que podem ser hackeados com a câmera, mas são ações que ficam tão repetitivas e monótonas depois de um tempo que acabam sendo ofuscadas, pois é mais rápido utilizar uma chave de fenda do que simplesmente abrir a interface e selecionar a câmera.

No geral, Hitman III mantém uma jogabilidade satisfatória com comandos responsivos e fluidos, tanto de combate corpo a corpo, quanto de furtividade. Entretanto, as constantes falhas na IA dos inimigos é algo tão frustrante que logo o jogador se vê diante de uma quebra de imersão na experiência. Não que os NPCs, principalmente os guardas e seguranças, sejam “excessivamente burros”, mas em alguns momentos, ao detectar uma ameaça, um personagem vai buscar apoio de outros e inusitadamente fica correndo por todo o mapa sem parar, sem reagir como deveria. Essa inteligência artificial inconsistente é geralmente robótica demais para criar um desafio a mais ao jogador.

Também existem alguns bugs visuais engraçados como lavanderias com máquinas de lavar invisíveis e assim por diante, mas nada que impeça o título da IO de funcionar como deveria. Provavelmente esses impasses devem ser corrigidos rapidamente em futuras atualizações.

Visualmente e sonoramente esplêndido

Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, apresenta um arranha-céu cinza engolido pelas nuvens brancas, resultando em um contraste ardente de cores mais neutras. Em seu interior, peças e estruturas luxuosas e esteticamente atraentes estão por toda parte. Mendoza, na Argentina, é um playground extenso de uma vinícola, construída em um penhasco, em pleno pôr do sol, espalhando cores por toda parte. Chongqing, na China, é uma cidade que nunca dorme, com efeitos de neon por todo lado. Quando contrastado com as ruas molhadas da chuva sem fim, um efeito deslumbrante se forma no horizonte. A IO Interactive não só aprimorou a narrativa e a jogabilidade, como também construiu cenários visualmente atrativos, cheios de brilho para encantar o jogador enquanto age na surdina.

Cada um deles expande o conceito criativo do estúdio com elementos detalhados únicos, mostrando um pouco mais da capacidade da Glacier Engine, mesmo em consoles da última geração. E mesmo que você encontre vários NPCs idênticos espalhados pelo mapa, não há como negar o quão sofisticado é o capítulo final da trilogia.

Outra característica primordial de Hitman III é a trilha sonora digna de uma grande produção de ação e espionagem. Em Dubai, o Agente 47 se infiltra no edifício mais alto do mundo no melhor estilo “Missão Impossível” com uma música que exprime a adrenalina árdua de um espião e assassino. Em Berlim, na Alemanha, uma balada frenética é a responsável por emitir sons ecléticos da música eletrônica e do punk, o que garante uma missão sempre imersiva e inquietante. É interessante ver como todos esses elementos técnicos caminham em sincronia para oferecer ao jogador a melhor experiência possível.

O desfecho elegante de uma trilogia memorável

Para os brasileiros, a ausência de dublagem e legendas em português pode ser o ponto mais decepcionante no novo título da IO Interactive, visto que as experiências anteriores foram totalmente localizadas. Apesar disso, exceto pela quebra de imersão com as constantes falhas nas IAs dos NPCs, os demais impasses, ainda que visíveis e diretamente ligados à jogabilidade, não atrapalham em nada.

No fim das contas, Hitman III conclui a trilogia World of Assassination com maestria, expandindo sutilmente a essência de sua jogabilidade furtiva implementada em 2016. É um conto conspiracionista global e de espionagem com ideias bem fundamentadas, cenários visualmente ricos em detalhes e repletos de possibilidades, permitindo que o jogador realize abordagens inteligentes para aprimorar a arte do assassinato.

A IO Interactive provou mais uma vez ser uma desenvolvedora global movida pela excelência e qualidade de seus projetos, principalmente ligados às temáticas de espionagem e furtividade. Certamente esse talento expandirá sua biblioteca de IPs no futuro com títulos genuínos e originais, começando com o Project 007, que promete ser tão ambicioso quanto a série do Agente 47.

Prós

  • Narrativa satisfatória com ideias bem fundamentadas e dignas de um blockbuster de espionagem;
  • Cenários visualmente deslumbrantes;
  • Trilha sonora excelente;
  • O level design desafiador e repleto de diversidade estimula a exploração e permite ao jogador realizar inúmeras abordagens de eliminação de alvos;
  • Vários disfarces e ferramentas para utilizar durante as missões;
  • Comandos responsivos e fluidos;
  • Alto fator de rejogabilidade.

Contras

  • Ausência de dublagem e legendas em português;
  • Falta de polimento em algumas cutscenes;
  • Eventuais bugs visuais e quedas de fps;
  • Constantes falhas na IA dos NPCs e inimigos;
  • Recurso de câmera subutilizado.
Hitman III  PC/PS4/PS5/XBO/XSX/Switch  Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PS4
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela IO Interactive

é entusiasta e apreciador de jogos com conceito artístico minimalista e narrativas de significado profundo. Acredita na potencialidade de cada experiência interativa e tenta extrair delas sentimentos humanos e existenciais. No GameBlast também escreve notícias, análises e especiais; no tempo livre produz roteiros autorais de séries e filmes. Criatividade, imaginação e curiosidade são algumas de suas características marcantes.
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