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Análise: Spiritfarer (Multi) é uma tocante aventura sobre a morte e sobre seguir em frente

Acompanhe a barqueira do além e ajude espíritos em um suave e cativante jogo de gerenciamento e plataforma.


Lidar com a morte nem sempre é fácil, e costumamos associá-la a sentimentos negativos. Spiritfarer transforma a passagem para o além em uma jornada tranquila e contemplativa por um belo mundo desenhado à mão. O jogo combina exploração, plataforma e gerenciamento em uma aventura imersiva que explora de maneira suave e tocante inúmeros temas. Por trás da atmosfera relaxada, há sensações agridoces, mas isso é inevitável quando o assunto se trata de despedidas. Como é de praxe, o jogo apresenta a excelência do estúdio indie Thunder Lotus Games, responsável pelos títulos Jotun e Sundered.

Guiando um barco e ajudando almas no além

O tempo de Caronte, o responsável por levar as almas recém-falecidas para o Submundo, está no fim. Sua missão deve continuar, logo uma garota chamada Stella é escolhida como sua sucessora. Acompanhada de seu gato Daffodil, a nova Barqueira dos Espíritos explora um extenso mundo guiando almas de pessoas, que agora assumem formas de animais, a fim de que eles resolvam suas pendências para conseguirem seguir para a verdadeira morte.

Para alcançar seus objetivos, Stella administra um barco que, além de ser meio de transporte, funciona também como morada dos espíritos. O foco é o bem-estar das almas, o que significa atender às suas necessidades (como fome e afeto) e prover ajuda na resolução de suas questões pessoais. Para fazer as tramas avançarem, a garota precisa realizar inúmeros pedidos para os espíritos, como cozinhar pratos, ir a algum lugar ou construir uma estrutura no navio.


Em sua essência, Spiritfarer mescla exploração e gerenciamento. Na maior parte do tempo, estamos no barco administrando as coisas e atendendo aos pedidos dos espíritos. Para construir estruturas ou produzir itens, Stella necessita de recursos diversos, como madeira, rochas, minérios e ingredientes, que podem ser encontrados pelo mundo. Certas construções permitem produzir e refinar recursos no próprio barco, como uma horta, uma forja ou um tear. Depois de algum tempo, a embarcação se torna um misto entre hotel, fazenda e oficina — destaque para a charmosa e impossível organização de estruturas empilhadas como blocos.

O mundo é pontuado por inúmeras ilhas e nelas aparecem o aspecto de exploração e plataforma do jogo. Pelas várias localidades, Stella pode coletar itens, obter informações, encontrar novos espíritos para levar para o barco e mais. Os cenários contam com segredos e trechos que só podem ser acessados após obter habilidades de locomoção, como pular no ar ou planar. Além disso, melhorias para o barco permitem atravessar obstáculos nos mares para acessar novas regiões.


Um mundo extenso e com atividades variadas

Spiritfarer é um jogo repleto de atividades para participar e detalhes para administrar, mas em nenhum momento ele sobrecarrega o jogador. Pelo contrário: leveza e relaxamento são constantes no jogo. O objetivo final é levar os espíritos para o outro lado dO Portal Eterno e, para isso, os assuntos pendentes de cada um deles precisam ser resolvidos. Mesmo com essa meta, não existem prazos nem obrigações — você pode deixar as plantas sem água ou os espíritos sem comida que nenhuma penalidade será aplicada, mas cuidar direito das coisas traz vantagens.

Há variedade de atividades em Spiritfarer. Stella pode relaxar pescando enquanto o barco está em rota para algum lugar; a cozinha permite combinar ingredientes em elaborados pratos; hortaliças e frutas nascem em canteiros cultivados na embarcação; linho pode ser transformado em tecido no tear; relâmpagos podem ser capturados e guardados em garrafas durante uma tempestade; é possível explorar cavernas em busca de minérios e mais. Conforme a trama avança, novas atividades aparecem, o que mantém constante a sensação de novidade.


Algumas das tarefas contam com pequenos minigames para produzir os resultados esperados. Transformar minério em lingotes de metal, por exemplo, exige colocar carvão na caldeira e ativar foles constantemente para que a temperatura esteja correta durante o processo. Já na hora de transformar madeira em tábuas, é necessário mover a serra pelas marcações no objeto. Os minigames são envolventes e apreciei a variedade deles, no entanto, alguns são desnecessariamente complicados, enfadonhos ou longos demais. Isso se torna um problema em pontos mais avançados da aventura em que precisamos construir grandes quantidades de certos recursos. Acredito que uma opção de automatizar algumas dessas tarefas ajudaria bastante.

Os espíritos também exigem ações específicas. Cada um dos viajantes do barco tem preferências e precisamos atendê-las. Alguns animais, por exemplo, se recusam a comer pratos que não os agradam; logo, precisamos preparar refeições que respeitam estes gostos. Já outros não gostam de vizinhos barulhentos; sendo assim, é importante colocar os seus quartos em outro lugar do barco. Além de fazer a trama avançar, cuidar bem dos espíritos traz outras vantagens, como liberar estruturas e melhorias. Alguns, inclusive, dão itens como presentes.


A relaxante e complicada tarefa de administrar um barco do além

A essência de Spiritfarer se resume em coletar recursos e construir coisas. Pode parecer enfadonho, mas a grande diversidade de atividades e minigames deixa a experiência leve. Além disso, há muito o que desbravar no imenso mundo do jogo, em suas inúmeras ilhas e missões paralelas, com direito a mapas de tesouro, baús escondidos e esquemas de melhoria de estruturas. Alguns poucos pontos exigem melhorias ou habilidades específicas, mas na maior parte do tempo a progressão é livre. Por causa disso, muitas vezes eu só fiquei explorando os mares e ilhas pelo simples prazer de desbravar — e fui recompensado com belas vistas e muitos itens. Há muito o que ver e são necessárias por volta de 30 horas para terminar o jogo, e muitas outras para conferir o conteúdo adicional.


Gerenciar os itens e o barco é uma tarefa fácil, pois o jogo é generoso com as informações: o mapa mostra com clareza os itens e recursos disponíveis em cada localidade; logo, é fácil ir exatamente aonde você precisa. Às vezes eu fiquei um pouco perdido sem saber como conseguir certos itens, mas bastou avançar nas histórias dos personagens para novos recursos ou áreas serem liberadas. As coisas ficam um pouco mais caóticas conforme a embarcação recebe novas estruturas, principalmente quando tem muita coisa acontecendo, mas como não há prazos é possível fazer tudo calmamente.

As mecânicas são simples e intuitivas, no entanto, senti falta de recursos facilitadores, como menus com informações consolidadas. Para saber os materiais necessários para construir um pomar, por exemplo, eu preciso ir até a mesa de construção para verificar a lista de itens. Fazer compras é meio às cegas, pois o menu não mostra quais itens eu já tenho. Cozinhar é a mesma coisa: preciso memorizar os ingredientes no livro de receitas e depois voltar à opção de cozinhar para escolher manualmente os itens — poderia ser possível fazer a receita direto do livro. São detalhes contornáveis, mas que tornariam a experiência mais suave se fossem resolvidos.


Spiritfarer conta com um modo cooperativo para dois jogadores em que um controla Stella e outro guia o gatinho Daffodil. A modalidade é uma ótima opção para dividir as tarefas do barco, por mais que a visão afastada dificulte um pouco. Já nos trechos de exploração, a câmera tenta sempre manter os dois personagens na tela, complicando o andamento quando a dupla está distante. Mesmo assim, com um pouco de coordenação, é uma ótima maneira de aproveitar o jogo com algum amigo.


Um belo universo desenhado à mão

Uma característica que me incentivou a explorar o mundo de Spiritfarer foi a sua excelente ambientação. O jogo conta com visuais belíssimos pintados à mão, e cada personagem esbanja personalidade com seus movimentos — especialmente Stella, que evoca seus sentimentos somente com suas expressões faciais. O universo do jogo é variado e apresenta vários biomas, como florestas de temática oriental, geleiras solitárias, ambientes urbanos e até mesmo algumas localidades repletas de painéis de vídeo extravagantes.

Fora isso, o ambiente passa por mudanças visualmente belas devido a condições climáticas. É relaxante observar tudo ficar rosa e laranja com o pôr do sol enquanto pescamos; regiões específicas estão sob noite estrelada constante, o que torna as noites hipnotizantes; tempestades de gelo trazem sensação de apreensão. Há também impressionantes trechos de fantasia, como Stella capturando relâmpagos durante uma tempestade ou então coletando estrelas cadentes. A música suave repleta de composições com violão, flauta e piano intensifica as sensações de cada cena.


Uma multitude de histórias envolventes

As mecânicas não mostram tanto, mas Spiritfarer é sobre a morte: como lidar com ela e como seguir em frente. O jogo usa personagens diversos e muitas metáforas para explorar esse tema de maneira suave, cativante e reconfortante. Algumas tramas são bem sombrias e pesadas, porém, a atmosfera é constantemente leve e repleta de boas vibrações. A positividade é tamanha que uma das ações possíveis é abraçar os espíritos para deixá-los felizes — até mesmo os personagens mais rabugentos gostam de um carinho. O texto está completamente em português e conta com ótima localização, com termos muito bem adaptados à nossa realidade.

Vários espíritos estão espalhados pelo mundo do jogo e apreciei a diversidade de personalidades e tramas. Alguns são divertidos e carismáticos, outros são excêntricos, há também os irritantes e desagradáveis — assim como a vida, Stella tem que se virar para se dar bem com eles. Nem tudo é direto em Spiritfarer, no entanto, é possível inferir que as formas de animais representam características das almas (ou seus desejos). É importante ficar muito atento aos diálogos para entender o que aconteceu com cada um, e nem sempre é fácil compreender todos os detalhes. Muitos dos personagens, inclusive, conheciam Stella em vida, o que traz interações interessantes. É uma pena que a protagonista tenha desenvolvimento limitado em relação aos outros.


Alguns personagens não saíram da minha cabeça na minha aventura com a Barqueira dos Espíritos. A porco-espinho Alice dedicou sua vida a servir os outros sem se importar muito consigo mesma, porém, Stella ajuda a mudar isso ao acompanhá-la em pequenas aventuras pelo mundo. Já a cobra Summer era conectada à natureza e à família, mas esse estilo de vida não impediu sua luta contra um “dragão” interno implacável — dá a entender que tal criatura era câncer ou depressão. Gwen, a alce que foi amiga de Stella em vida, precisava resolver sua relação com a família antes de seguir em frente, e gostei de como ela era sempre direta e ácida. Astrid é uma líder sindical que aprecia coisas simples a ponto de recusar pratos elaborados, mas que não consegue esquecer um grande amor (mesmo ele sendo mulherengo). Mesmo os personagens chatos (como a dupla Bruce & Mickey) têm seu charme e carisma.

Depois de dias conhecendo e se afeiçoando aos personagens, eventualmente chega a hora de mandá-los embora para o pós-vida. Estes momentos, para mim, sempre foram tocantes e agridoces: eu ficava feliz de vê-los superando os seus dilemas, mas também me sentia triste de vê-los partir depois de tanto tempo com eles. Algumas dessas despedidas, inclusive, são bastante tocantes, como a de uma personagem que no fim ficou completamente confusa e pensava que Stella era sua filha. No fim, nunca consegui lidar completamente com o adeus e acabei sentindo muita falta de quem já foi embora. A cena do adeus é fortalecida com um visual impactante e trilha sonora deslumbrante, fazendo com que esses momentos sejam emocionalmente memoráveis.


Uma sublime viagem

Spiritfarer usa diferentes características para montar uma ótima jornada sobre seguir em frente. A mistura de gerenciamento de recursos, administração, produção de itens e plataforma diverte, principalmente pela grande diversidade de atividades. Além disso, há um mundo extenso para desbravar, sendo a progressão livre e sem punições. O grande destaque é a temática que explora a morte de um jeito suave com inúmeros personagens cativantes e interessantes, reforçados por vários momentos emocionantes pelo caminho. A ambientação é excepcional, com visual intrincado, música bem inserida e ótimo texto, mas alguns pequenos problemas na interface incomodam um pouco. No fim, Spiritfarer se revela uma experiência memorável e repleta de sentimento.

Prós

  • Bom misto de exploração, plataforma 2D e gerenciamento;
  • Mundo extenso e repleto de atividades variadas e segredos;
  • Temática única bem explorada com ótimos personagens e situações;
  • Belíssimo visual desenhado à mão.

Contras

  • Ausência de menus com informações consolidadas atrapalham um pouco a experiência;
  • Alguns minigames são repetitivos.
Spiritfarer — PC/PS4/XBO/Switch — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Thunder Lotus Games

é brasiliense e gosta de explorar games indie e títulos obscuros. Fã de Yoko Shimomura, Yuzo Koshiro e Masashi Hamauzu, é apreciador de roguelikes, game music, fotografia e livros. Pode ser encontrado no seu blog pessoal e nas redes sociais por meio do nick FaruSantos.
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