Análise: Hellblade: Senua's Sacrifice (PC/PS4) traduz com perfeição a insanidade para os jogos

Desenvolvido por menos de vinte pessoas, o novo título da Ninja Theory dá um show de narrativa e é excelente em vários aspectos.

em 17/08/2017
Desde 2014, a desenvolvedora independente Ninja Theory anunciava Hellblade: Senua’s Sacrifice (PC/PS4) como um game “AAA independente” e isso levantava diversas suspeitas. Muito por conta de anúncios estrondosos feitos por outras desenvolvedoras indies que não foram tão bem assim quando finalmente chegaram aos consoles nas casas das pessoas. Três anos se passaram e o jogo foi reformulado várias vezes, com os devidos cuidados e consultas externas com especialistas para criar uma experiência digna. Vamos descobrir agora se o título “Indie AAA” é válido para ele ou não.

Enredo perturbador e original

Hellblade nos dá uma premissa que choca desde o primeiro momento e já mostra que o jogo não pensa nem um pouco pequeno. Senua é uma guerreira do povo Celta exilada por um tempo de sua tribo que retorna e encontra seu então marido Dillion morto por conta de uma invasão Viking ocorrida ali. Furiosa, a guerreira jura resgatar seu amado das profundezas de Hellheim, o inferno Viking. E é aqui que a nossa jornada começa, com Senua chegando no território Viking pronta para enfrentar todos os riscos para resgatar o marido.



A premissa parece interessante, mas vista por esse ângulo não surpreende tanto, não é mesmo? Entretanto, um aspecto que passa longe de ser um mero detalhe dessa trama é que Senua sofre de uma grave doença mental chamada Esquizofrenia. Para quem não sabe esta é uma doença marcada por comportamentos incomuns e a confusão entre o que é ou não real. Os principais sintomas da esquizofrenia (também conhecida como psicose por algumas vertentes) são delírios, alucinações auditivas e visuais, pensamentos distorcidos e pouca interação social.

Por conta de diversos aspectos de sua vida somados ao trauma de ver a pessoa que mais amou na vida morta de forma brutal, Senua entra em surto e começa a ter delírios envolvendo sua história de vida, seus traumas e todas as suas angústias. Durante todo o jogo, você se pergunta o tempo inteiro o que é real e o que faz parte do delírio da protagonista. E aquilo que inicialmente parece um “God of War” acaba sendo muito mais, o que é fantástico.



A narrativa do jogo é envolvente, profunda e fragmentada. Mas tudo possui uma explicação e está arquitetado de forma a causar no jogador as impressões necessárias para que ele se envolva emocionalmente com a protagonista da história. Uma imersão de enredo dessas só pode ser comparada com The Last of Us (PS3/PS4), o que é algo incrível para uma produção independente feita por pouco mais de dez pessoas.

As alucinações transformadas em jogo

Conversando diretamente com a história do jogo temos o seu visual que dispensa qualquer comentário. É um dos mais belos gráficos do PS4 até o momento. As expressões faciais e performances de Senua, fruto de tecnologia de captação de movimento, só fazem aumentar a expressividade e profundidade da personagem. Além disso, o mundo ao seu redor, todo ambientado na cultura nórdica, é bonito e, ao mesmo tempo assustador. Belíssimas paisagens e horrendas localidades se contrastam o tempo todo montando um visual fenomenal.



Mas não é só de belos gráficos que o Hellblade se trata. Todo o mundo do jogo conversa com a história da protagonista em diversos níveis, tornando tudo, desde as câmeras até os inimigos que nós enfrentamos, uma única história contada por todos os sentidos ao mesmo tempo. É sensacional ver como os desenvolvedores conseguiram brincar com a percepção auditiva e visual no jogo de modo que o jogador se veja realmente dentro da pele de uma pessoa com esquizofrenia.

O jogo é focado em resoluções de puzzles mescladas com momentos de ação. Na parte dos enigmas, tudo ao seu redor pode fazer parte da experiência. A noção de perspectiva construída em cada mapa, propiciando que se explore suas nuances e encontre assim os ângulos certos, dão acesso aos caminhos que outrora simplesmente não estavam ali. O jogo mexe com o mapa ao seu redor a todo momento, fazendo com que o próprio jogador se confunda pensando “aquilo já estava ali antes?” em vários momentos da jogatina.


Combates desafiantes, mas meros detalhes

A outra parte da jogatina são os combates contra inimigos que simplesmente surgem no meio do nada para ameaçar a jornada de Senua (você decide se eles são ilusão ou não). Os inimigos vikings são podres e monstruosos, lembrando algo entre a franquia Dark Souls e o já citado God of War. Os combates em si também lembram um pouco esses dois jogos, mas com um nível de dificuldade não tão absurdo como o da série Souls. Mas isso não o impede de ser bem desafiador.

Hellblade, logo em seu início, apresenta uma mensagem clara de que você possui um número fixo de mortes que pode ter antes de perder todo o seu avanço na história e simplesmente começar do zero. Isso mantém o jogador alerta para os perigos e o impede de simplesmente se matar para começar novamente com o máximo de vigor. Mas esse é um dos únicos avisos escritos que você terá na tela.

Para deixar tanto a jogabilidade como um todo, quanto também os combates em si muito mais tensos e imersivos, Hellblade não possui absolutamente nenhum dado escrito em tela. Barra de vida ou energia, vida dos inimigos ou número de danos. Simplesmente nada aparece na tela que não seja realmente parte da percepção de Senua. Isso torna o jogo mais imersivo e desafiador, principalmente nos combates.

Até os inimigos mais comuns necessitam de mais de dez golpes para serem mortos. Além disso, a curva de desafio do jogo começa a crescer bastante após chegarmos na sua metade. E isso tudo é enfrentado “a olho nu”, sem nenhum tipo de material dado para facilitar saber se o inimigo está quase morrendo, se você está no caminho certo, se sua vida está baixa ou qualquer coisa do tipo.

Mas não se enganem, o jogo não deixa de ser didático na medida certa por não ter esse tipo de coisa. Ele é pensado de forma que seu mapa, suas paisagens, o comportamento dos inimigos e a sua visão passem todas essas informações de modo bastante orgânico. Você não precisa saber quanto de vida o inimigo tem, basta ver quantos cortes sua espada já fez na pele dele e reparar como sua velocidade está diminuindo, bem como seus ataques. Para quem já passeou pela franquia Monster Hunter, isso não será novidade.

Os deslizes facilmente contornados

Alguns problemas podem ser identificados no jogo, mas que não afetam diretamente a jogatina em praticamente nenhum momento. Um bug foi notado em relação ao movimento do cabelo de Senua que começa a pular descontroladamente, assim como em determinado momento, fiquei preso em uma pedra por não conseguir me mover. Entretanto, esses são bugs corriqueiros em jogos e que são facilmente corrigidos com atualizações muito leves. Além do mais, durante toda a jogatina eles aconteceram apenas uma vez cada, não atrapalhando a experiência de jogar.



Além disso, outro dos problemas está relacionado às legendas do jogo em português brasileiro, as quais comem palavras e até frases inteiras dependendo do momento. Realmente é difícil legendar um diálogo em que a protagonista está aos berros enquanto cinco ou seis vozes falam em sua cabeça ao mesmo tempo. Mas as legendas não falham somente nesses momentos, demonstrando um trabalho preguiçoso por parte dos tradutores que não condiz com a qualidade geral do jogo.

Um verdadeiro “Indie AAA”

Hellblade: Senua’s Sacrifice surpreende em vários dos seus aspectos, mas não é um jogo para qualquer um. O enredo propositalmente fragmentado, a exploração solitária, os visuais pesados e a temática complexa podem não ser ideais para o grande público, tornando este um jogo brilhante, mas de nicho. O que, é claro, não é problema algum. Mas é importante deixar claro que, por exemplo, a ação do jogo não é seu foco. O que Hellblade faz é contar uma história de modo muito imersivo, e muito bem.



Este jogo demonstra de maneira perfeita como é, literalmente, contar uma história através de um jogo. Não digo somente de possuir um bom enredo que faz você jogar (o que o jogo também tem). Mas aqui o jogo conta uma história através de tudo que ele possui: os colecionáveis são runas com vozes que narram a mitologia nórdica de forma bem coerente, mas fragmentada; as alucinações auditivas guiam o caminho para o enfrentamento de diversos horrores que mesclam a vida pessoal de Senua com os perigos das terras nórdicas; os desafios simbolizam elementos importantes da vida da protagonista; tudo tem um significado. 

Desde as explorações confusas até os combates tensos do jogo, passando pelos períodos de monotonia e os diálogos altamente fragmentados, tudo no jogo está contando uma história, está passando uma mensagem. Tudo causa algum tipo de sensação no jogador que era para ele ter, para se sentir imerso naquelas história. A profundidade que isso causa nos faz lembrar do porquê de videogames serem uma forma de arte como todas as outras antes deles.



Hellblade: Senua’s Sacrifice sem dúvidas é um dos melhores jogos do ano. Podem esperar ótimas indicações para prêmios como o The Game Awards como “melhor jogo independente” ou “melhor performance de atores em jogos”. Com isso, somos obrigados a admitir que a equipe da Ninja Theory estava correta: este é um game independente tão incrível quanto qualquer AAA. 

Prós

  • Aprendizado instintivo;
  • Uso perfeito de alucinações como puzzles;
  • Linearidade não atrapalha a experiência;
  • Combates desafiadores;
  • Ausência de informações desnecessárias em tela;
  • Excelente uso do cenário mesclado com alucinações;
  • Narrativa profunda e envolvente;
  • Ótima trilha sonora;
  • Conta uma história de forma única.

Contras

  • Versão de PS4 possui alguns raros bugs;
  • Legenda em português cheia de problemas.

Hellblade: Senua’s Sacrifice — PC/PS4 — Nota: 10.0
Versão utilizada para análise: PS4

Revisão: Ana Krishna Peixoto
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Gilson Peres é Psicólogo e Mestre em Comunicação pela UFJF. Está no Blast desde 2014 e começou sua vida gamer bem cedo no NES. Atualmente divide seu tempo entre games de sobrevivência e a realidade virtual.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Você pode compartilhar este conteúdo creditando o autor e veículo original (BY-SA 3.0).