Resident Evil (Multi), Ozu e o brilho da câmera fixa

O precursor do survivor horror tem sua forma particular de nos amedrontar. Como o faz e as semelhanças que guarda com o cinema são alguns dos tópicos que busco abordar.

em 14/10/2015

Duas pessoas conversam trivialmente em um café, sob o assento de uma delas jaz uma bomba. A imagem, quando projetada em uma tela de cinema, causa um estado elevado de apreensão e convida o público até a alertar as personagens da ameaça iminente. É assim que Alfred Hitchcock ilustra o conceito de suspense em sua célebre entrevista para o igualmente talentoso François Truffaut — associando intimamente a ideia com a apreensão total dos fatos por parte do público, coisa que opõe o suspense à surpresa.

No mesmo sentido, o videogame encontrou sua maneira de transpor o modo de pensar deste cinema que encontra seu paroxismo na obra de Hitchcock. Dentre os títulos de horror, o primeiro Resident Evil (1996) se destaca por seu pioneirismo e métier característico — que iria se estender com o desenvolvimento da série até a Capcom optar por mecânicas focadas em combate armado.

Cinema e gameplay: a exceção à regra

Em primeira vista, pode parecer simples a tarefa de precisar o que colocou Resident Evil em um patamar alto entre os jogos de terror — visto que os inimigos no game são inspirados em conhecidos monstros da mitologia ocidental. Todavia, a questão é mais profunda. Resident Evil não se baseia tão somente no discurso imagético concentrado em suas personagens e cenários, mas na perspectiva que o jogador tem de cada parte do jogo.
Ok, esse primeiro zumbi era bem feio.
Costuma-se falar em nosso meio, com razão, que o cinema tem uma influência muito maior sobre o videogame em determinados aspectos — como cutscenes e cenas interativas — do que no gameplay em si. No caso que estudamos, encontra-se a exceção à regra. Uma das premissas fundamentais à sétima arte é que esta é uma expressão que direciona o olhar de seu público — não conseguimos enxergar além do que as lentes captam. Ao contrário do teatro, em que diferentes tipos de palco (italiano, arena, semi-arena) e volume de elementos e ações simultâneas dão vazão a diferentes constatações em um fragmento da obra. Em Resident Evil, contrapondo-se a games com controle de câmera, somos convidados a perceber os fatos e objetos de acordo com uma visão específica e planejada por seus criadores. É um trabalho meticuloso e que atinge uma multitude de resultados.

Efeitos da câmera fixa em Resident Evil

Esteticamente, a câmera inerte facilita o trabalho do desenvolvedor em alcançar um resultado visual que seja de seu apreço — embora a visão do artista seja fundamental. Basta rememorarmos, no caso, os jogos de luz e sombras que tornam a mansão de Resident Evil tão marcante em determinados momentos. Na esfera da resolução de puzzles — parte fundamental ao título —, a perspectiva fixa pode ser empregada para ocultar itens importantes à sobrevivência do jogador, coisa que seria facilitada se o mesmo tivesse controle absoluto do que vê. Contanto, pretendo me focar na geração de tensão que o recurso traz consigo.
O uso de luz e sombra no game é mais perceptível em seus remakes posteriores.
Tendo conhecimento prévio do que os jogadores poderão ver, os criadores do jogo têm ferramentas à mão para brincar com seu público. Daí, por exemplo, surge a ideia dos tank controls (literalmente, controles de tanque) tão icônica na série. Com os ângulos de visão mudando conforme a sala que os protagonistas adentram, faz-se necessária a rotação da personagem controlável para movê-la na direção desejada. A constante mudança, quando aliada à presença da ameaça inimiga, funciona como ótima geratriz de inquietude no jogador — dependendo do caso, oferece as condições ideais para o jogador se atrapalhar em seu desespero.
Quem não se complicou ao se deparar com o tubarão gigante?


Falando em ameaça, aqui retomamos o conceito do suspense de Hitchcock. Sabe-se da existência do perigo em Resident Evil logo de início. No decorrer da obra, toma-se ciência de que o próximo zumbi pode estar atrás da próxima porta. Confrontar e derrotar todos é extremamente perigoso graças à falta de recursos disponíveis — cabe ao jogador de primeira viagem decorar a posição dos monstros. Mesmo assim, muitas vezes acontece de o inimigo estar posicionado justamente na transição entre um cômodo e outro. Novamente, conhecemos a presença dos antagonistas e ficamos apreensivos graças à inexatidão do momento de embate. Dessa forma, manter-se em constante atenção se torna uma rotina até o fim do game — e aqui, presumo, está a raiz da tensão em Resident Evil.

Afinal, de onde vem essa visão inerte?

A origem da câmera fixa nos videogames não se encontra na primeira aventura de Jill Valentine. Títulos que precedem o jogo da Capcom incluem os Metal Gear de MSX e Alone in the Dark. O embrião desta técnica no Oriente, no entanto, pode ter nascido do cinema.

Embora a falta de movimento na captação de imagens possa se dever à falta de recursos — lembremo-nos que o Japão passou por momentos de miséria extrema graças à Segunda Guerra Mundial —, alguns diretores utilizaram a técnica a seu favor. Dentre esses, Yasujiro Ozu (1903-1963) é o nome que se destaca.

Conhecido por seus dramas de enfoque familiar, Ozu tornou a inércia visual em particularidade de sua estética. O alemão Wim Wenders (Asas do Desejo, Buena Vista Social Club) afirma em Conversando com Ozu (1993) que a disposição dos objetos em cena eram tão importantes para os filmes do diretor japonês quanto a atuação de seus atores. Seu olhar direcionador é convidativo e nos coloca no centro da ação. Em boa parte de sua obra, especialmente em ambientes fechados, Ozu coloca a câmera a um metro do chão — altura dos olhos de uma pessoa que se senta em um tatame, técnica que ficou conhecida, inclusive, como The Ozu Shot. Um exemplo marcante se encontra na sequência final de A Rotina tem seu Encanto (1962), em que se passa a impressão de que nos sentamos à mesa junto com as personagens que bebem e conversam.

Assim como em Resident Evil, a diversidade de perspectivas é presente no cinema de Ozu. Como exemplo, atentemos para a icônica cena de Era uma vez em Tóquio (1957) em que o casal idoso interpretado por Chishu Ryu e Chieko Higashiyama contempla o mar e quase se mescla em sua infinitude. É um momento repleto de bucolismo e introspecção que reflete o tempo psicológico e o confronto com a própria pequenez dos atores em cena. Embora sutil, o emprego do recurso é poderoso.



Seja em um clássico do survival horror ou no cinema japonês do Pós-Guerra, fica claro que a câmera fixa desempenha um papel fundamental nos mais diferentes contextos. A partir da mesma premissa, atingem-se diferentes fins, porém igualmente eficazes.

Revisão: Alberto Canen
Capa: Diego Migueis

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