Discussão

Mas, afinal, o que é um jogo?

De bolinha de gude aos videogames, os jogos estão cada vez mais complexos. Estaríamos perdendo a sua essência dentre tantas mídias?


Se você está lendo este texto é porque gosta de videogames. Falar de gosto é algo muito difícil, já que se trata de algo subjetivo e independe dos fatores qualitativos de um conteúdo — eu mesmo sei que gosto de coisas ruins, e não vejo problema nenhum nisso. Mas há aqui um certo conforto, já que estou em meio a pessoas com preferências comuns, que gostam de passar o tempo livre dos seus dias na frente de uma televisão, segurando um controle e se aventurando em universos digitais.

Jogar ou brincar?

É comum que, em meio às modernidades, a simples palavra “jogo” já traga referências imagéticas de consoles de videogame, principalmente entre as crianças. Parece que ao falarmos de brincadeiras como “queimada” ou “amarelinha” vivemos em uma realidade alternativa, totalmente separada das maneiras como os jovens se divertem atualmente. Com tantas maneiras diferentes de brincar e jogar, há a sensação de que não sabemos quais os limites que transformam um conteúdo em jogo.

Estaria essa menina brincando ou jogando?

Segundo o dicionário Michaelis, jogo é “brincadeira, divertimento, folguedo”. Nos parece básico, já que é praticamente impossível que não gostemos e tenhamos satisfação enquanto controlamos um Mario pulando sobre canos verdes. Mas isso traria uma suposição complicada: eu também me divirto quando estou dançando, ou cantando uma música enquanto o meu sobrinho dá risada. Seriam todos os momentos bons da vida um jogo?

Para acabar de uma vez com a dúvida, utilizemos a definição de jogo feita por Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens:
“Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes neles todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam a regra que os proíbem morderem, ou pelo menos com violência, a orelha do próximo.” 
Logo, além de percebemos que o ato de jogar é algo natural (e necessário) em nossas vidas, ele é rodeado de regras — e isso faz toda a diferença.

Se até cachorros conseguem criar suas próprias regras ao "brincar" de atacar, respeitando-as, é mais do que óbvia a naturalidade da ação perante o ser humano.

Jogar futebol é uma ação prazerosa, mas que exige certo conhecimento. A bola deve entrar em uma área delimitada para render pontos ao time, que não pode jogá-la para fora da quadra ou usar as mãos, dentre muitas outras obrigações. É dentro daquele espaço, respeitando os limites impostos, que o jogo ocorre. Quer algo com mais regras do que aquelas impostas por códigos de programação e designs de fases de um jogo de videogame?

Os videogames trouxeram os jogos ao extremo. Cada um trouxe um conjunto de regras diferentes, fazendo com que cada experiência fosse única e exigisse um tempo de estudo dentro do universo proposto, para que tudo fosse muito bem aproveitado. Jogar Pokémon sem entender o seu sistema de batalhas transforma o jogo em algo maçante e repetitivo, enquanto o oposto fará dele uma enorme referência para os desenvolvedores e fãs do RPG japonês. Mas algo ocorreu, complicando o que era simples: os consoles tornaram-se mais potentes e as regras começaram a ficar cada vez mais implícitas e abertas.

Já imaginou jogar algo complexo sem entender as regras? A diversão se transforma em confusão e frustração.

É ou não é?

Conforme as mídias evoluíram, as coisas foram tomando novos rumos. Enquanto os videogames eram considerados “uma ameaça à televisão e ao cinema” no passado, hoje se encontram em máquinas que unem todas maneiras de entretenimento em um só objeto. A sociedade sempre teve este problema, achando que novas tecnologias surgem para substituir o existente, quando na verdade convergem em um único meio — quem nunca ouviu que o 3D mudaria a maneira como assistiríamos filmes? Hoje, é apenas mais uma maneira de diversão.

Os jogos digitais não fugiram da cultura da convergência. Quando a primeira geração de consoles surgiu, o mercado não conseguiu entender muito bem o papel dos videogames na sociedade, tendo uma noção de como seria o seu futuro somente após a introdução de uma linha narrativa em sua construção: derrotar o vilão e salvar a princesa seria apenas o começo de uma revolução.

A simples inclusão de um objetivo narrativo transformou os jogos em maneiras de contar histórias.

Desde então os videogames se moldam às novas mídias e tecnologias. Além de contarem histórias, já funcionam também como simuladores, material educativo e até mesmo propaganda. Surge o termo “gamification”, que visa utilizar elementos dos jogos em outros conteúdos, visando as suas absorções de maneira mais divertida e intuitiva. Ir para a academia se transformou em uma disputa por pontos, que nomeiam o maior frequentador como prefeito do lugar. Tarefas de casa rendem prêmios e jogos em aplicativos para celulares. Entramos em uma Matrix, e sequer percebemos.

Sendo uma das indústrias que mais movimenta dinheiro no mundo e atrai consumidores e desenvolvedores, é comum que os olhares de pesquisadores e críticos se voltem aos videogames. Tópicos como a violência nos jogos estão sempre em pauta, além das diversas influências que eles exercem no nosso desenvolvimento como seres. E não é só: diversos jogadores passam a analisá-los do seu próprio modo, tendo voz ativa através da internet para discutir e deixar a própria vida como exemplo.

As academias atuais são preenchidas por pessoas tirando selfies e fazendo check in em aplicativos.

Eis que o mercado indie cresce, fazendo possível o surgimento de diversas visões e interpretações de jogos, misturando informações de tudo, sem pressões de produtoras. Como resultado, outra forma de entretenimento surge: a imersão em um espaço em que as regras quase não existem, não importam, ou são feitas pelo próprio jogador. No Man’s Sky (PS4/PC) está chegando para mostrar o quão próximo o ato de brincar se torna jogar, com a história sendo feita de acordo com as vontades de quem jogar.

Com isso, enfrentamos um dilema que aparece frequentemente em diversos sites e fóruns pela internet: dizer que algo não é bom porque não é jogo. Jogos como Life is Strange (Multi), que focam em história, tendem a receber críticas assim, afastando potenciais jogadores e impedindo a integração de novas maneiras de contar histórias com videogames.

O jogo Until Dawn, que será lançado neste mês para o PS4, deverá sofrer críticas pesadas pelos que se prendem em antigas definições de "jogo".

O que realmente importa

Por que jogamos? Uns podem dizer que é para esvaziar a mente, outros para liberar tensão, e alguns até para fugir da realidade. O que torna o ato de jogar e brincar tão especial é exatamente o fato de ser individual, tendo sua necessidade encontrada devido a diversas influências do mundo. No final, o resultado é sempre o mesmo: nos divertimos.

A maior diferença entre os videogames e as outras maneiras de entretenimento se encontra na transformação. Ler um livro ou assistir a um filme cria uma identificação com o universo ali proposto, fazendo com que imaginemos viver aquilo e criemos um laço com os personagens. Mas os jogos virtuais nos fazem ser e, de fato, estar em um outro mundo, sentindo tudo o que os personagens sentem instantaneamente — as regras tornam-se apenas limitações comuns, como as que encontramos no dia a dia.

Os óculos de realidade virtual devem causar uma imersão ainda maior na vida dos personagens.

É a partir de um potencial tão enorme que é fácil concluir o poder de viver uma história. Se há uma coisa que nunca mudou nos videogames é a ideia de que nunca é o Mario quem morre ao cair em um precipício, e sim o jogador, que grita “morri” e desliga o console com raiva após a décima tentativa falha na mesma fase. Quanto mais pudermos imergir em um universo, mais sentiremos aquilo que os contadores de história querem nos passar.

Chegamos, finalmente, em um momento decisivo da indústria dos jogos, que os deixarão para sempre exclusivos: o que são, de fato? Não há mais resposta. Jogos estão sempre mudando e farão para sempre parte da sociedade. O que é dito hoje poderá estar errado no ano seguinte. Devemos, na verdade, esquecer essa pergunta e deixar de encontrar padrões em tudo, buscando nos videogames o que eles sabem oferecer de melhor: a diversão. Então, não dê ouvidos a quem critica um jogo dizendo que ele não deve ser classificado desta forma — sente, experimente e veja o que ele tem a oferecer. Sendo jogo ou não, o que realmente importa é a sua satisfação pessoal.

Talvez, agora que terminei este texto, eu resolva dar uma chance ao aclamado Heavy Rain (PS3).


Revisão: Luigi Santana
Capa: Felipe Araujo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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