Discussão

Acesso Antecipado e os problemas de se comprar algo incompleto

Há aqueles projetos que dão certo, há os que não dão. Mas não devemos deixar de acreditar em grandes projetos que começaram pequenos.


Certa vez um amigo me perguntou o que achava sobre jogos em acesso antecipado. Fiquei envergonhado por não saber muito bem o que dizer. Pensei na época que colecionava aquelas revistas de aeromodelismo que davam os aviões para montar em partes: uma peça de cada vez, um manual recheado de informações e as instruções de como montar, e algumas vinham até com uma lista do que poderia vir nas próximas edições.

A maior diferença entre os dois é que nas revistas você paga toda vez que vier um pedaço novo na banca, e a certeza que um dia virá o resto, geralmente uma vez por mês. Nos jogos em Early Access, o resto das “peças” podem demorar um pouco mais para chegar.

Sabem aquelas pessoas estranhas que têm um “projeto” que dará dinheiro para todo mundo e que você só precisa contribuir com  um “investimento” num valor absurdo? E depois você precisa achar mais dois, três, quinze amigos e dizer a mesma ladainha para eles, acreditando piamente que essa ideia genial deixará todos ricos em menos um ano?

Não creio que um jogo em acesso antecipado seja assim, afinal, ninguém além do próprio comprador ficará alguns reais mais pobre caso tudo dê errado num jogo. Mas a desconfiança pode chegar a ser a mesma.

Investindo numa promessa

Não que gastar R$50 ou menos em um jogo inacabado seja tão ruim, mas não é uma ótima forma de negócio para quem é exigente demais com tudo. O que mais me deixava irritado era ver o aviãozinho incompleto, encostado numa prateleira, e tendo que ligar direto para a banca para checar se chegou uma nova edição.

Não sei se sou o único, mas tenho pequenos ataques de pânico quando alguma coisa atrasa ou fica inacabada, e meu problema com os jogos em Early Access geralmente nem são as demoras para atualizações, já que fazer um jogo é mais complicado que montar um avião em escala. Eu costumo ignorar os alphas e betas quando costumam cobrar quase o mesmo valor de um jogo pronto.




Quando alguém compra um jogo em acesso antecipado, este alguém deve ter em mente que não se está comprando um negócio completo, mas sim um produto ainda em construção. Uma promessa, que pode ou não pode terminar como desejado, e que, na pior das hipóteses, será abandonado. Mas, geralmente, isso só acontece se o projeto for ruim desde o começo.

Fico com pena do desenvolvedor, que não tem grana o suficiente para se manter do jogo, além de precisar arriscar seu protótipo numa Steam para terminá-lo. É um teco de coragem também. Receber ameaças por e-mail e duras críticas nos comentários é algo que alguns jornalistas estão acostumados, mas nada comparável ao que alguns desenvolvedores podem passar.

Amostra (não) grátis

Antigamente, antes da Steam e da facilidade de se compartilhar arquivos enormes pela internet, os jogos inacabados eram testados por pessoas específicas. Um funcionário era especializado em encontrar bugs, erros e outras pontas soltas para relatá-los para a companhia, que trabalhava nas correções e entregava o produto final depois de meses (ou até anos) de testes.

Os jornalistas de games também têm a honra de testar algo inacabado, para assim poder compartilhar aos seus leitores o quão bom (ou ruim) está um projeto. Mas hoje o processo é meio diferente.

Atualmente, a coisa anda de uma forma mais dinâmica e acessível. Um desenvolvedor que não possui recursos para pagar alguém só para testar, e que ainda precisa de grana para completar o projeto, possui muito mais alternativas do que na época dos cartuchos e CD-ROMs. E é aí que a comunidade gamer entra.



O Kickstarter começou o que hoje é moda: uma pessoa bem intencionada coloca um projeto (como um disco, um app, uma invenção mirabolante) e a comunidade pode ajudá-lo a terminar, doando algum para ver a ideia funcionando. Para incentivar ainda mais a arrecadação, o criador pode dar pequenos presentes, dependendo da quantidade doada. E isso deturpa a ideia original do site.

O pensamento mercadológico atual nos dá a impressão de que estamos fazendo uma pré-compra. Você desembolsa um valor mais alto, pois o brinde do pacote lhe dará, digamos, o jogo em mídia física numa caixa de madeira, com seu nome nela inscrita em cobre, mais um monte de itens in-game que só quem deu esse valor alto terá, além do seu nome nos créditos, seu nome num chefão, e de quebra um abraço do desenvolvedor. Nossa!

É um bom negócio. Infelizmente, essa tentação possui duas vertentes: o doador terá um monte de benefícios de um produto que não está pronto, e o resultado final pode sair muito abaixo do esperado, o que cria a natural frustração de quem compra uma coisa e recebe outra. O jogo pode acabar nem saindo, como problemas na organização, gastos imprevistos, ou por simples pilantragem. Por outro lado, o projeto pode sair como, ou até melhor do que o esperado, e assim todos saem ganhando.

Também pode ser um risco, mas um risco que alguns só tomam quando há algum benefício em jogo. A desconfiança em jogos em acesso antecipado e em projetos do Kickstarter pode ser alto, mas o risco vale a pena quando o resultado é satisfatório.



Lembrando: Jogos em Acesso Antecipado geralmente são feitos por start-ups entrando agora no mercado, ou por desenvolvedores independentes. Quando uma grande desenvolvedora faz um jogo e o vende incompleto, com glitches e bugs, isso se chama sacanagem. Ou pré-venda, quando o jogo pode vir acompanhado de algo a mais que uma cópia dele na caixa, mas que ainda levará um tempo para o jogador ter algo final nas mãos.

Grandes riscos, grandes recompensas

Por fim, ainda não sei muito bem o que dizer ao meu amigo. Já me animei e já me frustrei quando comprei algo inacabado, mas nada que me faça borbulhar de raiva, ligar para o Procon e querer meu dinheiro de volta.

Acho que tudo depende da crença de cada um: se você sente confiança no projeto, faz o que pode para que ele dê certo e fica feliz com o final, então está tudo bem. Mas o que dizer para os que não se deram tão bem assim?

Ora, acreditar é algo que costuma estar muito em falta nestes dias. É normal ficar com o pé atrás quando alguém lhe pede uma grana para investir em um sonho. Pode não ser o seu sonho, mas você gosta tanto da ideia (ou da pessoa) que resolve dar algum trocado.



Há aqueles que podem te sacanear totalmente, mas esses casos são raros, como aconteceu com o WarZ e sua promessa de um mundo maior aos moldes de DayZ, mas que acabou entregando uma engine quebrada e um sistema fajuto de gampelay.

Mas o que dizer para os Minecraft, Kerbal Space Program, DayZ e tantos outros jogos que saíram do nada, mas que, graças a ajuda da comunidade, hoje fazem milhões e estão a todo vapor, tudo graças a uma comunidade que acreditou e investiu em algo bom e inédito desde o começo?

Revisão: Jaime Ninice
Capa: Felipe Araujo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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