Crônica

Iron Storm do Saturn foi mais aula de história do que jogo

Como um jogo desconhecido instigou minha vontade de estudar alguma coisa.


A Segunda Guerra é um assunto que me interessa desde pequeno - não apenas por causa da quantidade de absurdos horríveis que aconteceram, mas também pelos avanços tecnológicos e mudanças que este período da história trouxe. Desde pequeno, pegava qualquer livro sobre aquela época, e tudo começou quando escolhi um jogo com capa medonhamente criada em CG 3D para alugar na locadora.

Eram tempos difíceis - a loja tinha meia prateleira de canto disponível para o Saturn, em comparação as gôndolas recheadas do PSOne e N64. Depois de já ter jogado quase tudo que a locadora dispunha, resolvi dar uma chance ao Iron Storm. A internet estava em seu estágio embrionário, as Torres Gêmeas estavam de pé e não fazia muito tempo que Galvão Bueno gritara “É tetra! É tetra!”.

Entrando em um front desconhecido

A série Daisenryaku, da qual Iron Storm faz parte, não obteve muito sucesso no ocidente, tendo seu público cativo no Japão. Em suma, a série aborda diversos conflitos militares (reais ou fictícios) no formato estratégia por turnos, e com batalhas que lembram o sistema de combate da série Civilization. O jogador escolhe sua unidade e move um certo número de hexágonos, tendo como objetivo capturar cidades e destruir as bases dos inimigos.

Uma rápida pesquisada pelos fóruns nipônicos e encontro discussões sobre a série que até hoje se mantém ativas. Para nós ocidentais, é uma pena para quem se interessa pelo assunto. O jeito mesmo é importar alguns títulos de lá, ou se contentar com as poucas publicações online em inglês sobre. É também de se espantar a arte das capas dos jogos lançadas por lá.Veja esta imagem. por exemplo. Não é sempre que uma desenvolvedora possui a audácia de colocar todos os vilões da década de 40 numa mesma imagem, certo?
Hitler, Stalin e Mussolini conseguem assustar tanto quanto alienígenas, monstros ou a capinha ocidental do primeiro Mega Man
No começo, Iron Storm era um jogo complicado. Estava acostumado a ouriços azuis e bufões voadores, e levei algumas horas para descobrir como se passa um único turno. O objetivo era encarar diversas missões com uma das três nações participantes do conflito: EUA, Japão e Alemanha. Em cada missão, o jogador controla uma base e deve destruir as bases inimigas em um dado número de turnos, usando o que a fase oferecia: aviões, tanques, soldados, canhões e alguns navios.

Poderosas máquinas históricas dão as caras em mais de uma missão, como o poderoso couraçado Yamato e o imponente Enterprise. Outros são “pirações” dos desenvolvedores: um tanque de proporções titânicas e um UFO nazista (prato cheio para o History Channel), e um soldado biônico norte-americano (que dá as caras em uma missão também anacrônica).

Sem preconceitos

O jogo omite tudo que os livros mais sérios e os jogos mais sensacionalistas ensinariam mais tarde: o Holocausto, o Grande Expurgo, Hiroshima e Nagasaki… Também não havia menções sobre as questões raciais, pilotos que sacrificavam suas vidas lançando seus aviões contra navios ou as encrencas que uma suástica desenhada na carteira poderia render a um desavisado.



Isso tudo rendeu algumas “dificuldades” na oitava série. Todos me chamavam de nazista por andar com um livro com aviões alemães desenhados na capa ou com a biografia de Hitler, e depois de comunista por estudar a vida de Lenin e Stalin no primeiro ano do colegial. Nada muito grave, o bullying já fazia parte da minha vida há muito tempo (sério, eu me bateria se voltasse pros anos 90 e visse um magricela nerd com um álbum do Pokémon numa mão e o Mein Kampf na outra).

Quando a blitzkrieg falha

Em Iron Storm, não havia uma curva de dificuldade muito clara: a primeira missão japonesa é a que mais se aproxima de um tutorial. E a segunda já é uma porrada na cara. O interessante eram os finais alternativos: a história muda caso uma batalha seja vencida com a nação que historicamente a perdeu. Imagine uma invasão nipônica na costa oeste do continente americano, ou alemães desembarcando na costa britânica (o que levava também ao desembarque no Canadá e EUA!).

A missão mais desastrosa, difícil e infeliz foi Stalingrado. O objetivo é destruir os QGs soviéticos em uns vinte turnos. Sem suporte aéreo (pois nevava), sem poder posicionar um soldado próximo aos QGs (havia um enorme rio no meio) e sem contar com navios de transporte (não havia portos!). A blitzkrieg, estratégia inédita na história militar e trunfo do exército alemão, falhou. A “guerra relâmpago” consistia basicamente em atacar os pontos vitais do inimigo rapidamente, diminuindo ao máximo a capacidade de reação e reorganização. Eram necessários ataques conjuntos da artilharia, aviação e dos tanques para se obter o melhor resultado possível. Em Stalingrado, o rigoroso inverno russo literalmente paralisou o avanço nazista: o combustível congelava, os homens ficavam mais fatigados e com sequelas horríveis causadas pelo frio intenso.


Com a vitória fora do alcance, a melhor tática é defender as posições conquistadas, segurando o jogo até que o limite de turnos seja alcançado. Neste caso, o empate era a melhor coisa que poderia acontecer no caso de tudo dar errado. Ao forçar um empate, segui caminho pela história do game, agora acompanhando a destruição do Reich até Berlim, numa missão com dois frontes e contra três países usando o que sobrou da Alemanha, e muita dor de cabeça para segurar tanta cacetada. Por fim, consegui conter o avanço britânico/americano e deter o “rolo compressor” comunista.

Ao “zerar”, senti uma ponta de tristeza ao assistir o vídeo de encerramento. Cenas de escombros, um violino triste, o Muro de Berlim, a eclosão da Guerra Fria… Fiquei as férias inteiras tentando vencer Stalingrado para ver como seria o futuro alternativo de uma Alemanha vitoriosa. Fechei com o Japão e com os EUA, aprendi todos os macetes de todas as armas, memorizei os melhores caminhos, mas mesmo assim a cidade de Stalin me jogava contra a parede. Num último esforço, apelei para os livros de história.

Sem revistas de detonados do jogo nas bancas, visitei a biblioteca - algo inédito, e nunca mais consegui sair de lá. Ao ler algo, imediatamente buscava alguma outra coisa para responder as dúvidas criadas. E assim continuo até hoje. A curiosidade de saber o que motivou os nazistas me levou a um passeio histórico que até hoje não acabou. Incentivou a escolha da faculdade, os lugares para visitar e até os games a jogar. Chegou uma hora que Iron Storm não me interessava tanto; apenas seguia em busca do que aconteceu naqueles anos estranhos.

A batalha pelo domínio do mundo


Revisitei o jogo algum tempo depois, já crescido. Desta vez usei tudo que possuía no arsenal: conhecimento histórico, estratégias e até os cheat codes (em caso de emergência). Minha fúria por ver o final alternativo alemão finalmente deu resultado: o segredo não era Stalingrado! Era necessário vencer a guerra aérea contra a Inglaterra, o que me levou para o desembarque na costa britânica e a conquista de Londres (a Operação Leão Marinho, que de fato foi planejada por Hitler). Com a frente oeste segura, o próximo desafio foi a tomada de Moscou, feito que até hoje só foi conquistado no videogame. Por fim, a frente alemã e japonesa se encontrariam na Índia.


Hoje, cerca de quinze anos depois de Iron Storm, muito mudou nas questões de interface e na própria forma que os jogos abordam assuntos históricos. Há jogos que exploram muito bem alguns marcos de nosso passado: a saga Battlefield começou em 1942; títulos independentes buscam reviver a emoção de um duelo medieval ou da guerra de trincheiras; Assassin’s Creed já passeou pela Idade Média e pela Renascença, e até títulos mais conservadores em suas histórias estão explorando novos rumos, como visto em Civilization: Beyond Earth.

O arco histórico da campanha vitoriosa alemã em Iron Storm, por exemplo, termina com o que poderia de fato ter acontecido caso o Eixo vencesse os Aliados. A missão final é a mesma para alemães e japoneses. Então, imaginem a emoção de um entusiasta ao ver a blitzkrieg alemã enfrentando a poderosa frota imperial - algo que pode tirar o fôlego de quem gosta do assunto e fica horas imaginando as possibilidades de uma mudança no passado.

Revisão: Bruno Nominato
Capa: Felipe Araujo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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