Analógico

Analógico: A dualidade nos jogos e o seu reflexo no jogador

Cara ou coroa, direita ou esquerda, certo ou errado, luz e trevas, bem ou mal. Da mesma maneira que os dois lados da moeda estão tão próxi... (por Fellipe Camarossi em 10/03/2013, via GameBlast)

Cara ou coroa, direita ou esquerda, certo ou errado, luz e trevas, bem ou mal. Da mesma maneira que os dois lados da moeda estão tão próximos e, ainda assim, tão distantes, a própria dicotomia da natureza pode ser encontrada em todas as atividades do nosso cotidiano, forçando-nos a conflitar valores morais e nossos ideais com a nossa percepção da sociedade contemporânea. No mundo dos jogos, isso não é diferente. Muito pelo contrário: vejo em muitos títulos por aí uma abordagem única e que serve como catalisador para o entendimento da dualidade – e este Analógico tem como objetivo apresentar um pouco desse campo tão contraditório.

Entendendo o conceito

Para começar este texto, é importante que o leitor esteja plenamente ciente do que se trata o termo “dualidade”. Essa palavra é a representação de dois lados opostos, mas conectados por uma via de mão dupla – ou seja, tanto um quanto o outro podem migrar entre si. Dessa maneira, encontramos caminhos que, embora sejam completamente contraditórios um em relação ao outro, são interligados e dependentes para a preservação de um equilíbrio e uma harmonia – e somente por meio desse equilíbrio que as pessoas conseguem ver o mundo em plena racionalidade.

Até esquerda e direita são
questão de ponto de vista.
Ao pensar em videogames e nessa explicação, a primeira coisa que deve vir à mente é como esse equilíbrio é desnecessário, já que o senso moral deve basear-se em luz. Aí é que se enganam. O princípio da dualidade entra aqui, pois não se pode julgar algo sem compreender a sua perspectiva. Pontos de vista são outra coisa importantíssima a se considerar com o estudo da dicotomia, pois uma determinada ação pode ter diferentes aparências por diferentes observadores.

Um jogo que aborda isso muito bem é toda a série Kingdom Hearts, em especial Birth by Sleep (PSP) e Dream Drop Distance (3DS), que enfatizam muito como o equilíbrio de escuridão e luz devem ser um fator determinante na compreensão do Universo. O vilão, Master Xehanort, crê que a escuridão deve ser assimilada e usufruída como uma ferramenta, e não temida. Seu antigo colega, Master Eraqus, discorda e acredita que a escuridão deve ser extirpada da existência, o que leva à frase icônica do vilão: “Eraqus foi dominado pela luz”.

Mesmo precisando atacar e matar seus próprios aprendizes, Eraqus não hesita em prol da luz.

Na situação apresentada, temos uma pessoa que deixou a sua fé impensada ser um empecilho para a compreensão da verdade, e essa mesma luz que ele julgava ser a salvadora o cegou para os problemas de seus próprios aprendizes, tornando-o impotente perante o fim catastrófico dos eventos de Birth by Sleep. Ao relacionar essa abordagem à nossa sociedade, é possível traçar uma semelhança com muitas religiões que pregam o amor ao próximo; porém, em contrapartida, impõem uma série de preconceitos em relação a esse “próximo” que deveriam estar amando.

Assim, apresenta-se a primeira característica essencial a ser analisada no estudo de dualidade: a perspectiva.

O herói-vilão, o vilão-herói

Luz e trevas andam juntos
sejam heróis, sejam vilões.
Uma pessoa em um mercado observa outra pegando alguns produtos e escondendo em suas vestes, e depois tentando sair sem pagar. A visão do primeiro indivíduo é de que está lidando com um ladrão, um ser que vive à margem da lei e não se adapta ao modelo de sociedade, incapaz de conseguir dinheiro honestamente – ou consegue e o consome com vícios. Na visão do suposto vilão, é uma pessoa que recebeu negativas em suas entrevistas de emprego por não ter um bom perfil e se vê obrigado a furtar alguns alimentos para suprir a fome de seus filhos, que esperam ansiosos em casa pelo pai.

Duas visões diferentes de uma mesma cena criam diferentes modos de uma história ser contada. Por muitas vezes, o suposto vilão está sendo movido por ideais que ele crê serem os melhores, mas é malvisto pelo resto do povo – incluindo o suposto herói. Em outros casos, ainda é possível que haja o indivíduo que começa com um ideal, mas, em consequência de frustrações ou traumas, acaba distorcendo seu caminho sem perceber. No fim das contas, o herói vira vilão sem nem sequer notar a sua mudança, pois ele continua acreditando que sua visão é a certa.

Quando a vingança se
diferencia de justiça?
Em Castlevania: Lords of Shadows (PS3/X360) – e na recente continuação, Castlevania: Lords of Shadows – Mirror of Fate (3DS) –, Gabriel Belmont é um protagonista que parte em uma busca para trazer de volta à vida sua amada esposa. No decorrer da empreitada, ele descobre que fora manipulado desde o início a fazer tudo que o vilão do jogo queria para concretizar seus próprios objetivos. Após ser usado, e sem um norte, Gabriel se vê diante de um evento que mudaria para sempre sua vida ao transformá-lo em não somente um vampiro, mas no mais poderoso deles. Corrompido pela força e revoltado com a maneira com que tudo e todos à sua volta o usaram para seus fins, resolve que o mais justo é livrar o mundo da hipócrita e indecente raça humana, pois crê ser isso o melhor a fazer, e essa é a sua vingança.

A maneira com a qual vemos a situação acima nos faz repensar se Drácula estava totalmente errado de ter seu ódio sobre o mundo e se ele realmente era um vilão a princípio. Esse tipo de pergunta abre a mente do jogador para toda uma gama de possibilidades em cada ensinamento que teve em sua vida. Ao criticarmos certa ação, já nos perguntamos a história por trás dela? E quem pode afirmar se o ladrão do mercado é realmente um vilão? É nesse ponto que exploramos a segunda característica determinante da dualidade: a moral.

O preto, o branco e o cinza

Toda luz tem escuridão,
toda escuridão tem luz.
A moralidade é aquela voz na sua mente formada por experiência, vivência e observação do mundo, que lhe diz o que é certo e errado – não somente com o seu ponto de vista, mas da própria sociedade. Dessa maneira, esse ponto é uma faca de dois gumes: se a moral imposta pela sociedade é correta, temos uma boa base de comparação para qualquer tipo de situação. Porém, não foi essa mesma sociedade que já considerou as mulheres inferiores? Até onde devemos deixar a opinião geral e o senso comum interferirem no nosso próprio senso crítico?

Há pessoas que dizem que ou você é totalmente bom ou é totalmente ruim. “Uma maçã parcialmente apodrecida é uma maçã podre; ou você é bom ou é mau”, é a frase que define a “moralidade preto/branco”, em que só se pode ser um dos extremos. Pessoalmente, eu acredito que essa seja uma visão conservadora e limitada. Acredito que a mesma situação deva ser vista de muitas maneiras, aplicando-se diferentes perspectivas aos problemas. É assim que se desenvolve sua moral de maneira plena (“moralidade cinza”).

Bela maneira de
conquistar pelo medo.
Black & White (PC) é um jogo de 2001 que coloca o jogador na posição de deus de uma determinada sociedade e você deve aprender uma maneira de manter o seu povo fiel. Você pode tanto ser uma divindade benevolente, com milagres e dádivas, ou ser um tirano cruel, que conquista o respeito pelo medo. Entretanto, se você for bom demais, o povo irá ficar mal-acostumado e passará a viver de favores divinos. Se for cruel demais, a sociedade irá odiá-lo e querer se revoltar.

São situações como essa que fazem a pessoa explorar todas as vertentes de sua própria personalidade. Outro exemplo é a série de jogos Grand Theft Auto, em que o protagonista é colocado em um mundo onde pode ser um criminoso de marca maior. O jogo não impõe que você aja dessa maneira, mas é quase automático que o jogador acabe tendendo a esse lado. Muitas pessoas exploram seu próprio lado negativo nesse tipo de jogo; mas, em vez de deixarem isso refletir em sua personalidade, é ali que descarregam possíveis impulsos que aprenderam a ocultar.

Acho que deu pra resumir bem GTA.

Tanto em Black & White como em GTA a pessoa pode desenvolver melhor a própria mentalidade e visão crítica sobre quem é e como sua moral deve agir. Após aprender a analisar diferentes perspectivas e desenvolver a própria moralidade de modo a ter um senso crítico, chega o ponto culminante da dualidade: a decisão.

Você faz sua escolha, sua escolha faz você

Depois de desenvolver uma boa análise de determinada situação utilizando-se dos seus próprios conceitos, a pessoa se vê obrigada a tomar uma decisão. A vida é feita de escolhas, que moldam completamente o futuro e dependem do senso crítico para resultar de maneira positiva ou negativa em relação a si e a toda a sociedade. É então que lidamos com as consequências de tudo que fazemos. É algo que aprendemos desde a infância até a fase adulta – e boa parte disso se passa nos games.

Ou destruir tudo.
Depende de você.
Em Shin Megami Tensei: Devil Survivor (DS), o protagonista se vê em um jogo em que toma decisões o tempo inteiro. Diante de um aparente apocalipse, demônios estão livres por Tóquio e o jogador aprende uma maneira de domar essas feras e usá-las a seu favor. Com esse poder em suas mãos, o herói deve decidir na trama o que fazer com o poder com o qual foi agraciado: controlar todos os demônios e trazer a paz como um Messias ou mesmo se tornar um cruel e poderoso tirano e lutar contra Deus. Tudo que é testado aqui é a própria dualidade do jogador, que vai analisar as situações apresentadas e ver o que acha mais correto, coerente e moral.

Outro exemplo? Soul Nomad (PS2). Nesse título, Revya (o personagem principal) tem selada dentro de si uma criatura ancestral e poderosíssima denominada Gig. Essa criatura deseja poder usar o corpo de seu hospedeiro livremente; mas, para isso, Revya deve ceder à tentação e usar o poder de Gig. No decorrer da trama, o jogador se depara com a constante decisão de usar ou não os poderes da criatura para facilitar determinadas situações, embora saiba que isso pode – e vai – comprometer o personagem futuramente. Além disso, após concluir o jogo uma vez (em um dos muitos finais decididos pelas escolhas do protagonista), na segunda ida você tem a opção de ceder ao controle de Gig logo no começo, assim iniciando um caminho totalmente novo e repleto de destruição e violência.

O botão "Gigfy" é a tentação constante de poder e corrupção.

São muitos os exemplos que posso citar sobre jogos que exploram a decisão do jogador para o desfecho da trama (Mass Effect, como muitos leitores já devem estar pensando ao ler isso, é um ótimo exemplo), e essa é uma maneira excelente de desenvolver a mente do jogador perante a sociedade em que vive, pois muitas vezes a decisão do personagem é realmente a decisão do jogador – e é essa justamente a intenção do desenvolvedor ao permitir essa liberdade. Afinal, não pode haver uma decisão se não houver ao menos dois caminhos.

E de volta à realidade

Após essa jornada pelo mundo dos jogos, podemos juntar tudo que aprendemos até então e colocar em prática. Esses games serviram como um treino para o seu cérebro para que aprendesse como conceituar suas escolhas, como superar preconceitos e entender diferentes modos de ver o mundo e, por fim, assumir uma postura mais crítica e coerente com os problemas. O aprendizado oferecido por essas experiências é incalculável.

Bilhões de pessoas, bilhões de histórias, bilhões de pontos de vista.

É algo natural da humanidade crescer e evoluir a partir de tentativa e erro, porém vivemos em uma sociedade que critica e recrimina qualquer erro e só quer saber dos seus acertos e o que você pode oferecer a ela. Por isso, aqui você tem essa liberdade: no jogo, não tem problema errar uma ou duas vezes. E você ainda pode fazer um teste da própria personalidade. Quem você é de verdade? Qual é a sua natureza? Como funciona a sua moral?

E então pessoal,
cara ou coroa?
O jogo age como um psicólogo e lhe permite analisar seus próprios aspectos ao se colocar na posição de um personagem, ensaiando para a vida lá fora. Jamais teremos de escolher entre deixar ou não um ser ancestral tomar nosso corpo por um bem maior ou entre lutar por um reino ou outro, mas teremos de lidar com escolhas como: “Estou pronto para investir em uma empresa que gera tanta poluição?” ou “Eu devo aceitar essa propina e cuidar da minha família, deixando de lado a ética?”.

O melhor de tudo é que não há uma resposta certa. O que realmente interessa é o que você, leitor e jogador, pode tirar desse aprendizado. Cada nova aventura lhe rende experiência. Cada um de nós terá uma resposta diferente para cada pergunta por causa de nossas diferentes perspectivas e histórias. Então eu só tenho duas perguntas para vocês:

Qual é o seu lado da moeda?

E, afinal de contas, o ladrão estava mesmo errado?

Revisão: Felipe Biavo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


  1. Esse conceito de preto e branco me lembra alguém...

    http://blogs.yahoo.co.jp/touhoureimusuki/GALLERY/show_image_v2.html?id=http%3A%2F%2Fimg5.blogs.yahoo.co.jp%2Fybi%2F1%2F1c%2F3b%2Ftouhoureimusuki%2Ffolder%2F266113%2Fimg_266113_5839117_0%3F1342806586&i=1

    Seria legal mais jogos para consoles da Nintendo que explorassem essa questão de dualidade, principalmente deixando o jogador escolher entre ser o herói ou o vilão.

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  2. Meu lado da moeda é o branco, mas como todo branco, existe um pouco de preto nele.
    E não sei se o ladrão era um vilão. Para saber, só vendo o ponto de vista dele. ;)

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