Chronicle

Punk's not Dead: o maluco universo da Grasshopper Manufacture (parte 1)

Conheça mais sobre a obra, trajetória, sucessos e fracassos do estúdio de desenvolvimento fundado por Goichi Suda



Enredos malucos e gameplay visceral. A maioria dos jogos desenvolvidos pela Grasshopper Manufacture tem em seu DNA a excentricidade de seu fundador: Goichi Suda ou, como é mais conhecido, Suda 51. No entanto, por conta desse estilo característico que os jogos desenvolvidos pelo estúdio carregam, é fácil confundir onde Suda teve e não teve participação direta na concepção.


A Grasshopper Manufacture foi fundada em 1998 por um jovem Suda 51 que havia acabado de sair da Human Entertainment, onde trabalhou como scenario writer em Super Fire Prowrestling III: Final Bout e Super Fire Prowrestling Special, ambos jogos de luta livre, tema que seria recorrente em suas obras subsequentes. Sua estreia como diretor e roteirista foi com Twilight Syndrome: Search, lançado apenas no Japão em 1996. O jogo conta a história de um mistério que deu o título ao game e tem uma estrutura narrativa que envolve vários caminhos a serem seguidos. Um segundo jogo, Twilight Syndrome: Investigation, seria lançado no mesmo ano e uma sequência direta, Moonlight Syndrome, veio em 1997, também apenas no Japão. A Human Entertainment encerrou suas atividades em 2000.

O primeiro jogo da Grasshopper Manufacture foi lançado em 1998. Suda foi diretor e escritor de The Silver Case, título publicado pela ASCII Entertainment no Japão para o PlayStation. O desenvolvimento do jogo foi marcado pelo baixo orçamento e pela quantidade de funcionários: quatro. Além de Suda, como diretor, Takashi Miyamoto foi o responsável pela direção de arte e Masafumi Takada, pelo áudio. Sabe-se também que houve um quarto integrante na função de programador, mas sem uma identidade confirmada.




A escassez de recursos fez com que a Grasshopper tivesse que encontrar soluções alternativas para a resolução de problemas, o que resultou no desenvolvimento da chamada Film Window Engine, que consistia em um sistema que organizava o texto e as imagens na tela a fim de contar a história do jogo. The Silver Case conta a respeito dos detetives responsáveis por investigar e encontrar Kamui Uehara, um assassino em série que fugiu da cadeia e precisa ser recapturado.

O título ficou por muito tempo restrito apenas à audiência japonesa. Por muito tempo foi especulado um remake para Nintendo DS num tratamento similar ao de Flower Sun and Rain: Murder and Mystery in Paradise, até que ele foi refeito e traduzido em inglês pela primeira vez em 2016, para PC. Uma sequência, intitulada The 25th Ward: The Silver Case, foi lançada em 2005 de forma episódica para mobile (sim, em 2005) e um remake foi anunciado em maio de 2017, com versão para PlayStation 4. A decisão de refazê-lo, em vez de simplesmente remasterizá-lo, vem da ideia de o jogo ter envelhecido e ser impossível adaptá-lo para plataformas atuais.

O segundo jogo do estúdio foi Flower Sun and Rain. Lançado para PlayStation 2 em 2001, o jogo conta a história de Sumio Mondo, um indivíduo cuja profissão é encontrar objetos perdidos utilizando um computador chamado Catherine. A grande questão é que ele logo se encontra em uma espécie de looping de tempo que o força a repetir indefinidamente o mesmo dia em que ocorre a explosão de um avião. Assim como nos filmes Contra o Tempo (Source Code, no original) e O Feitiço do Tempo (Groundhog Day, no original), Mondo acredita que precisa solucionar o enigma que o prende nessa prisão temporal para poder escapar. Sobre o título, Suda comenta:
Conheço muitos fãs que o colocam como seu jogo favorito. É realmente misterioso. Olhando agora para trás, eu penso ‘Eu consegui mesmo fazer um jogo assim?’ É um jogo de aventura que é difícil de definir. Eu vim basicamente da ralé da Human Entertainment e o resto do time de desenvolvimento veio de lugares diferentes, eu não passava de um vira-lata aos olhos deles. De qualquer modo, eu só queria fazer algo novo, mesmo que tivéssemos que discutir o tempo todo a respeito disso.
A versão original de Flower, Sun and Rain foi lançada apenas no Japão. O ocidente só conheceria o título em 2009 (2008, na Europa), no Nintendo DS, com o subtítulo Murder and Mystery in Paradise. A Grasshopper não teve dedo algum no port, ficando completamente sob responsabilidade de um estúdio chamado h.a.n.d. Inc.



Shining Soul foi lançado em 2002 em co-desenvolvimento com a Nextech e é o primeiro jogo da Grasshopper a vir para o ocidente. Um fato curioso é que a Grasshopper não leva crédito algum pelo envolvimento no jogo, inclusive em seu próprio website, que só lista a sequência na seção de projetos. A confirmação de que houve participação do estúdio veio do próprio Suda, em declaração de 2006 para a Computer and Video Games.

Em 2004 a Grasshopper lançou Michigan: Report from Hell, que coloca o jogador no papel de um cameraman responsável por cobrir o misterioso caso de uma neblina que transforma humanos em monstros. O gameplay se baseia simplesmente no controle da câmera filmadora e como o jogador a maneja, resultando em diferentes formas de cobrir o ocorrido e, consequentemente, alterando a pontuação que classifica as filmagens produzidas como de suspense (o caminho mais tradicional), imorais (que envolve dar ênfase no grotesco, como pessoas sendo atacadas pelos monstros) ou eróticas (filmando a repórter em ângulos indiscretos) a fim de determinar um dos três finais diferentes para a história.

O título esteve para ser lançado nos Estados Unidos, mas a Sony o barrou por conter o que ela julgou como poucos elementos de gameplay. Apesar disso, Michigan chegou a ser, curiosamente, lançado na Europa sem o conhecimento do próprio Suda, que dirigiu o game.


Killer7, No More Heroes e repercussão internacional

Killer7 foi um divisor de águas para a Grasshopper, pois foi o jogo que a colocou no panorama internacional dos estúdios de desenvolvimento de games. Com um visual em estilo noir, interface pixelizada, enredo confuso e jogabilidade em trilhos, o título produzido pela Capcom foi lançado em 2005 para Gamecube e PlayStation 2. Apesar de receber algumas críticas no aspecto técnico, houve uma infinidade de elogios ao próprio Suda pela ousadia em termos estéticos, narrativos e de gameplay.

Shinji Mikami, criador de Resident Evil, serviu de supervisor e orientador para Suda na concepção do título. De acordo com a declaração do diretor em The Art of Grasshopper Manufacture, foi Mikami quem bancou o cenário e formato narrativo incomuns do game em questão.
Eu realmente gostei do contexto do jogo, mas eu tive que pedir para alguém me substituir nesse trabalho. Quando o Mikami o leu, ele perguntou "esse cenário é seu, não é?". Quando eu disse "Ah, eu atribuí isso a outro pessoal por conta de toda a carga de trabalho", ele respondeu: "não, isso está bom, escreva ele todo". Assim, eu presumi que, já que ele gostou tanto daquilo, eu precisava atender às suas expectativas e escrevi cada palavra de cada parágrafo. Eu não acho que seria capaz de fazer um jogo assim mais uma vez.

Naquela altura, Mikami tinha me delegado a função de produzir o jogo todo. Eu acho que ele estava me protegendo (até mesmo da Capcom) quando tivemos que adiar a data de lançamento. Ele me garantiu um ambiente que eu pudesse criar tudo o que eu quisesse. Esse tipo de concessão é algo absolutamente raro. Desde então, eu nunca tive uma experiência dessas, um projeto como foi Killer7, que eu fiz com as minhas próprias mãos. Eu realmente acho que o Mikami me protegeu por todo o caminho.
A narrativa multiforme de Killer7 rendeu a Suda o apelido de Quentin Tarantino dos Games, a exemplo de como o cineasta conduziu o enredo não-linear de Pulp Fiction e Cães de Aluguel, além de elevar o game a um patamar de clássico cult, idolatrado por um grupo seleto de fãs fiéis. O sucesso de Killer7 fez com que seu próximo jogo autoral recebesse uma atenção muito maior e especial da mídia: No More Heroes.

No entanto, entre um lançamento e outro, a Grasshopper se ocupou com o desenvolvimento de dois outros títulos: Samurai Champloo: Sidetracked e Blood+: One Night Kiss, ambos licenciados de suas respectivas séries em anime. O primeiro é um beat 'em up rítmico que envolve acompanhar os combos que aparecem na tela delimitados por uma das diferentes trilhas de música escolhidas pelo próprio jogador. O segundo, lançado apenas no Japão, repete o estilo artístico e anárquico de Killer7. Aqui, Suda se restringe apenas ao papel de escritor da história, que acabou sendo modificada pela produtora (a então chamada Namco Bandai) porque o enredo matava a protagonista do jogo, mesmo que ela fosse apenas um clone da personagem original da série. Nesse meio tempo, o RPG Contact foi desenvolvido pela Grasshopper sob a direção de Akira Ueda para o Nintendo DS.



Inicialmente conhecido como Heroes, No More Heroes chegou ao Wii em 2007. A história de Travis Touchdown, um assassino profissional que almeja se tornar o número um no ranking de Santa Destroy, foi elogiada pela crítica e pelos jogadores, além de carregar um enredo muito mais simples, direto e claro do que Killer7.

Apesar de render razoavelmente bem no ocidente, o jogo foi um fracasso no oriente, o que quase fez com que sua sequência jamais tivesse visto a luz do dia. Segundo o Kotaku, o próprio Suda esteve presente em um evento de lançamento em Akihabara no intuito de assinar cópias e um dos únicos autógrafos dados foi na de um editor da Famitsu.



Depois de No More Heroes, Suda dirigiu Zero: Tsukihami no Kamen, também conhecido como Fatal Frame IV: Mask of the Lunar Eclipse, para o Wii, em 2008, lançado apenas no Japão. Foi também o último jogo de Suda com participação direta como diretor.
Eu pessoalmente já era um fã da série ao ponto de ir comer e beber com os meus amigos [diretor Makoto Shibata e o produtor Keisuke Kikuchi] e dizer a eles: "rápido, façam o próximo jogo de uma vez!" Foi quando eles me perguntaram "por que a Grasshopper não o faz?". Eu recusei no começo porque achei que não seria capaz, já que sou um fã e isso é algo que sempre foi feito por uma equipe específica, mas como eles pediram, achei que talvez devesse ser profissional.
No More Heroes 2 veio em 2010 e, por algum tempo, seguindo o caminho oposto de parte da obra da Grasshopper Manufacture, foi um jogo exclusivo para o ocidente. Tal sequência só foi receber seu lançamento no Japão vários meses depois, em edição limitada, visto as vendas baixas de seu antecessor. Aqui, Suda se restringiu apenas como produtor, diretor executivo e escritor.

Em tempo, a Grasshopper desenvolveu Frog Minutes, um jogo para mobile que contou com Suda como produtor. O jogo foi anunciado apenas dois dias antes de seu lançamento e, na forma de um puzzle, serviu como uma homenagem ao terremoto que abalou o Japão em 2011, com toda a renda com o título sendo destinada a projetos em suporte às vítimas do desastre.

Na próxima parte do texto, abordaremos mais sobre trabalhos da Grasshopper Manufacture para produtoras ocidentais e sobre aquisição pela GungHo.  

Revisão: Ana Krishna Peixoto

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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