O sistema PLATO e a origem secreta dos RPGs

Nascidos em mainframes de universidades, os primeiros RPGs eram impressionantemente avançados.

Nos anos 1960, computadores pessoais eram gigantes, caros, nada práticos e limitados. A computação ainda estava em sua infância e se limitava basicamente aos meios militares. Nesse contexto surgiu o PLATO — um sistema de computadores focados na educação, voltados para uso principalmente em universidades.


Com uma tecnologia muito à frente de seu tempo e mais acessível, vários conceitos da computação moderna surgiram nesse sistema. Ele já conectava vários computadores e terminais em uma mesma rede (uma ideia tão boa que, hoje em dia, temos uma rede mundial de computadores chamada “internet”), possuía fóruns, e-mails, mensagens instantâneas e até telas táteis. Como seu foco era acadêmico, possuía também ferramentas para a ação criativa dos usuários, como a linguagem TUTOR, que permitia a manipulação de gráficos interativos de forma relativamente simples.

Nesse ambiente à frente de seu tempo surgiram vários jogos que também não eram compatíveis com a época de lançamento. Muitos precursores de gêneros modernos, como FPS e estratégia, deram seus primeiros passos nas universidades que contavam com esse sistema — incluindo os RPGs.

Clássicos perdidos e resgatados

O provável primeiro RPG da história surgiu em 1974, numa rede PLATO da Southern Illinois University. Ele era conhecido apenas como m199h. Não se sabe muito sobre ele além disso — nem mesmo quem seria o seu criador. Todas as informações que temos sobre o jogo vêm de relatos de estudantes da época. O que aconteceu com o possível pai de todos os RPGs? Ele foi deletado.

Como os sistemas PLATO tinham como objetivo servir de ferramenta educacional, qualquer programa que os administradores não julgassem pertinente era apagado. Sendo um jogo, m199h dificilmente seria visto como um projeto acadêmico em 1974 e foi logo retirado dos sistemas, ficando apenas na memória das poucas pessoas que puderam jogá-lo antes de sua destruição. Nem mesmo o seu verdadeiro nome foi registrado — “m199h” era apenas o nome do arquivo do game.

Esse é o nosso “clássico perdido” no mundo dos jogos eletrônicos. Assim como na literatura temos registros de várias obras nunca encontradas, apenas relatadas por outros autores, também nos games há casos de precursores vivos apenas nos testemunhos de certas pessoas. Uma caso similar ocorreu também com os adventures, cujo possível primeiro game do gênero só foi recuperado anos depois, após um gigantesco trabalho de arqueologia digital. m199h, infelizmente, não teve a mesma sorte.
Bastante "game", só não muito "vídeo".
Eventos assim me fazem pensar: quantos “clássicos perdidos” será que temos na história dos jogos? Quanto da história dos foi simplesmente deletada por administradores de sistemas fazendo seus serviços? Quantas obras digitais foram esquecidas para sempre porque seus criadores não guardaram o código ou nunca divulgaram?

O segundo “provável primeiro RPG da história” quase sofreu o mesmo destino. Intitulado Dungeon, ficou mas mais conhecido pelo nome de seu arquivo, pedit5. Esse sabemos quem é o criador: Reginald Rutherford, que o desenvolveu no verão de 1975.
Saca só esses gráficos.
Mesmo possuindo algumas características conhecidas do gênero, pedit5 estava mais para um “proto RPG”. Esse dungeon-crawler top-down tinha um sistema de atributos simples e pequeno, poucos monstros e uma trama simplória. Era possível resumir o objetivo em uma frase: entre na dungeon, consiga o máximo de tesouro, tente não morrer.

pedit5 também foi apagado pelos administradores do sistema, já que era um aplicativo não autorizado. Felizmente, seu código não foi perdido e o game era reinserido na rede regularmente… apenas para ser deletado mais uma vez, num metajogo de gato e rato nérdico. Eventualmente, outros programadores aprimoraram o clássico e o relançaram como orthanc.
É como se fosse o "FullHD 60FPS" da época.

O precursor dos precursores

Em parte por causa da “volatilidade” de pedit5, Gary Whisenhunt e Ray Wood, dois estudantes da Universidade de Illinois, decidiram fazer seu próprio jogo inspirado em Dungeons & Dragons — apropriadamente chamado de dnd ou The Game of Dungeons. Como Gary e Ray eram administradores do sistema PLATO instalado em sua universidade, eles foram capazes de reservar um espaço da rede para criar o projeto deles sem o perigo de ser seria apagado logo depois. Este terceiro “provável primeiro RPG da história” é, talvez, o mais digno do título e o mais influente dentro da cena de RPGs precursores.

Lançado inicialmente em 1975, dnd é um dungeon crawl, assim como pedit5. A história é minimalista e o objetivo simples: entrar e sair da dungeon Whisenwood, coletando os cobiçados tesouros Graal e Orbe. Após uma rolagem inicial de dados para definir os status de seu personagem, você adentra o calabouço e tenta vencer as hordas de monstros. O jogador decide o quão fundo quer ir, podendo sair quando quiser para se recuperar e reiniciar a aventura. Ao fim do calabouço, um dragão defende a Orbe — provavelmente o primeiro “chefão” do mundo dos games.

Diferentemente de seu “antecessor” (na verdade, o desenvolvimento de dnd começou antes de pedit5, mesmo com pedit5 sendo lançado primeiro), dnd é mais do que um “proto RPG”. O jogo contava com vários sistemas interessantes que só seriam vistos de novo na década seguinte, como teleportadores, armadilhas, várias opções para abordar os monstros, um sistema de equipamentos, poções com variados efeitos e eventos especiais.

dnd se tornou um sucesso e o foi melhorado através do feedback da comunidade por Dirk Pellett e Flint Pellett, que assumiram o suporte do jogo após Whisenhunt e Wood começarem a se focar em outros projetos. Ele recebeu várias atualizações, chegando à versão 8.0 em 1977. Até a extinção dos sistemas PLATO, ele continuou sendo um dos games mais jogados do sistema.

O “killer app” da geração

O sucesso de dnd permitiu que outros jogos fossem criados de forma “oficial”, sem serem automaticamente apagados por administradores logo depois. Logo surgiram sucessores e concorrentes. Nenhum deles foi mais popular do que Avatar.

Lançado em 1979, Avatar tinha um escopo gigantesco para a época e foi precursor até mesmo dos MMOs. Com uma natureza multiplayer, ele permitia que os jogadores entrassem nas dungeons em equipes de até 15 pessoas — mais do que as raides de alguns MMORPGs. Dentre suas características, ele possuía 13 guildas, um sistema de chat que permitia os jogadores se comunicarem, dez diferentes raças, um sistema de alinhamento, magias, habilidades e várias outras coisas.
Apesar de ser possível jogar sozinho, Avatar era tão difícil que trabalhar em equipe tornava-se quase obrigatório. Além de ajudarem você a derrotar os monstros, caso você morresse, seus parceiros podiam levá-lo ao necrotério e revivê-lo. Uma equipe com carisma alto o suficiente também podia recrutar certos monstros e membros das guildas podia criar suas próprias quests para os outros jogadores.

Com uma forte comunidade, Avatar logo se tornou o título mais jogado nos sistemas PLATO, correspondendo sozinho a 6% de todas as horas de jogo na plataforma. Até hoje ele tem fiéis seguidores, que o jogam através de recriações da antiga rede como o cyber1.

Influências transatlânticas

Apesar de todo esse valor histórico e de esses jogos terem antecipado muita coisa do que conhecemos hoje em dia em RPGs e MMOs, o sistema PLATO não estava disponível para o público geral. Ele era confinado aos meios acadêmicos e poucas pessoas jogaram as obras que surgiram nele, incluindo futuros game designers.

Richard Garriot, para muitos o verdadeiro pai dos RPGs, não sabia da existência desses jogos quando criou Ultima em 1981. Os títulos do gênero que vieram posteriormente foram inspirados diretamente nele, não nos percursores dos anos 1970. Para todos as causas e efeitos, os games desenvolvidos nos sistemas PLATO são apenas curiosidades históricas, com poucas influências nos jogos modernos.
O jogo que definiu o gênero.
Há uma notável exceção: Oubliette (Dungeon, em francês… o pessoal daquela época adorava calabouços). Lançado em 1978 e desenvolvido por Jim Schwaiger, o jogo era muito parecido com Avatar — na verdade, Avatar foi criado com a intenção de superar Oubliette. Ele contava com várias raças, classes, shops, tavernas, templos, minigames, um complexo sistema de magia e uma visão em primeira pessoa. A intenção de Schwaiger era recriar uma experiência típica de Dungeons & Dragons digitalmente, delegando as partes tediosas do jogo ao computador.

Avatar não foi o único jogo influenciado por Oubliette. Outro game bem mais famoso também o usou como fonte de inspiração: Wizardry. Desenvolvida pela Sir-Tech, a série é considerada tão importante quanto a série Ultima na história dos RPGs. Vários clássicos dos anos 1980 são sucessores diretos de Wizardry, incluindo Bard’s Tale, Ultima III e Might & Magic.
À esquerda, a versão de Oubliette para DOS. À direita, Wizardry. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Wizardry fez ainda mais sucesso no outro lado do mundo, tornando-se incrivelmente popular no Japão. No oriente, a série também inspirou a criação de vários outros jogos… Incluindo Dragon Quest e Final Fantasy. No final das contas, os jogos criados no sistema PLATO não são apenas precursores à frente de seu tempo; eles são os ascendentes diretos dos jRPGs como conhecemos. O mundo dá voltas, hein?

Revisão: José Robson Jr.

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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