Discussão

O fenômeno Flappy Bird (Mobile) e a imprevisibilidade do consumidor

Como um jogo simples chegou ao patamar de sucesso dos gigantes da indústria?


Nada de Titanfall (XBO), Donkey Kong Country: Tropical Freeze (Wii U) ou Infamous: Second Son (PS4). Apesar de os três jogos citados serem considerados os grandes lançamentos das três gigantes do entretenimento neste início de ano, uma estranha febre começou a tomar conta da mente de todos os proprietários de smartphones do mundo. Estou falando de Flappy Bird, o jogo desenvolvido por Dong Nguyen, um designer de jogos independentes vietnamita, que, até então, era mais um anônimo entre tantos que tentam emplacar algo tão bem sucedido quanto Angry Birds no mercado mobile. Mas qual foi o motivo de tamanha febre, que fez até com que o desenvolvedor removesse o jogo da App Store e da Play Store? Por que certos jogos superelaborados falham miseravelmente enquanto outros tão modestos, como Flappy Bird, conseguem um inesperado e gigantesco sucesso?


O oceano azul do mercado mobile

Enganam-se aqueles que pensam que os jogadores casuais já enjoaram de jogar videogames. Estes novos jogadores, chamados também de jogadores casuais, foram um tema recorrente da última geração de consoles de mesa, principalmente por conta do lançamento do Wii e da sua enxurrada de jogos voltados para pessoas que não costumam jogar videogame. Tais pessoas, apesar de não serem mais o maior foco das grandes empresas, continuam a gerar uma demanda, que, atualmente, subsiste de forma um tanto quanto marginal na indústria. Quando lançou o Wii, a Nintendo acreditava que se ela mostrasse o mundo dos videogames a este público, eles adquiririam o costume de jogar e acabariam gostando de jogos como Metroid e The Legend of Zelda. Mas não foi bem o que aconteceu.

Para os que não jogam videogames frequentemente, os celulares são uma opção mais viável do que um console
Encantados com a possibilidade de se divertir com jogos mais simples, os jogadores casuais aproveitaram tudo o que puderam no Wii, e acabaram transferindo seu novo gosto para seus celulares. Práticos, portáteis, acessíveis e simples, os celulares são dispositivos não destinados prioritariamente a jogos. Mas, ainda assim, que os possuem como uma função extra. Jogos de jogabilidade simples, como Wii Sports, são mais frequentes em um iPhone do que em um console de mesa. E o fato de o celular ser um produto adquirido com um propósito que o destina a outros fins, faz com que ele seja a plataforma ideal para este tipo de jogador, de maneira que ele não vai precisar desembolsar centenas de dólares só para poder se divertir por uma ou duas horas a cada final de semana.

O boca a boca da internet

Antigamente, tínhamos acesso às notícias do mundo dos jogos por meio de revistas. As informações chegavam mais devagar e, geralmente, nos eram fornecidas por profissionais do ramo. Atualmente, fóruns, blogs e até mesmo redes sociais ajudam a disseminar a informação de maneira mais rápida, e nem sempre por meio de pessoas que entendem do assunto. Nos dias de hoje, a internet está recheada de modinhas, os chamados memes, que se espalham muito rapidamente por toda a rede, de tal maneira que muitos acabam falando sobre um determinado tema sem nem mesmo saber direito o que aconteceu.

Uma enxurrada de memes tomaram conta da internet
E foi isso o que aconteceu no caso de Flappy Bird: o boca a boca em fóruns e redes sociais fez despertar a curiosidade de muita gente ao redor do mundo. Com comentários incessantes sobre sua dificuldade insana, sua simplicidade e até mesmo sobre a frustração que o game traz aos jogadores, as pessoas começaram a se perguntar sobre a origem de tanto falatório ao redor do título. E assim, em um passe de mágica, o jogo se tornou uma febre e se estabeleceu como o mais baixado da App Store e da Play Store.

E a qualidade?

Como muitos de nós sabem, um jogo não precisa ser bom, tampouco inovador, para fazer sucesso. Vivemos em uma época em que franquias anuais dominam o mercado, sem trazer quase nenhuma inovação aos gêneros aos quais pertencem; uma época em que jogos ruins acabam vendendo muito, mas somente graças ao excelente marketing promovido sobre eles. Flappy Bird também não traz nenhuma inovação, e ainda por cima é um jogo que pode ser considerado ruim e que não teve o suporte de nenhuma grande campanha de marketing para promovê-lo, certo? Errado! A única diferença entre Knack (PS4) e Flappy Bird é que: enquanto o primeiro teve uma massiva campanha de marketing por parte da Sony, o segundo caiu na boca do povo por intermédio da comunicação entre os jogadores e os não-jogadores, estes últimos, por ficarem apenas curiosos com todo o falatório em torno do jogo.

Apesar de não ser o melhor jogo do mundo, Knack foi muito promovido pela Sony
A facilidade de se conseguir acesso ao jogo também contribuiu para o seu sucesso, afinal, baixar um jogo gratuito de pouco menos de 10 MB em seu celular é muito mais fácil do que desembolsar 400 dólares (ou 4000 reais) para se jogar o péssimo jogo muito bem promovido do momento. Sendo assim, parece que Flappy Bird é apenas mais um jogo ruim que contou com um marketing boca a boca completamente inesperado, e que fez com que o criador do aplicativo chegasse a lucrar 50 mil dólares ao dia com as propagandas vinculadas ao seu jogo gratuito.

Falando com quem entende

Como economista e jogador assíduo, me sinto habilitado apenas a comentar sobre os efeitos que o jogo causou no mercado e sobre aspectos referentes à sua qualidade. Admito que, mesmo considerando o jogo muito fraco, acabei me rendendo aos efeitos do falatório em torno dele e conseguindo um belíssimo recorde de 89 canos, uma marca que já está sendo superada por muitos jogadores. Contudo, me questionando sobre o que mais pode ter prendido tanto os jogadores ao título, decidi conversar com um amigo que consegue embasar este tema melhor do que eu. Luis Eduardo Lucats, 26 anos, é formado em Design de Jogos pela Universidade Anhembi-Morumbi e atualmente trabalha na 44 Toons, desenvolvedora mobile que produz títulos como o divertido Cordelicos, um jogo de ação side-scroller, disponível na App Store e na Play Store. A conversa, que até me ajudou a aprender algumas coisas sobre game design, resultou no depoimento abaixo:

"Quando fui apresentado ao Flappy Bird pelo Gabriel, meu primeiro pensamento foi: 'Mas que jogo ruim, como é que alguém pode estar tão viciado nisso?'. Para minha surpresa, poucos dias depois, me deparei com comentários sobre esse jogo em diversos sites especializados e virando notícia na internet. Não conseguia entender de onde vinha o sucesso do jogo, e me enfureci ao saber que o seu criador estava ganhando a pequena quantia de 50 mil dólares ao dia, apenas com as propagandas colocadas no aplicativo. 

O que me tirava do sério nessa situação era que o jogo estava ferindo um dos princípios básicos do game design, ao ir contra praticamente tudo o que, teoricamente, deve ser respeitado quando se tenta criar um jogo bom. No meu primeiro semestre na faculdade, estudei a teoria do Flow, criada pelo Húngaro Mihaly Csikszentmihalyi (felizmente, a teoria dele é mais fácil de entender do que o seu nome). Esta teoria é baseada no seguinte principio: 

Um jogo, para ser divertido, deve ter sua dificuldade aumentada através de um parâmetro que seja proporcional ao aumento de habilidade do jogador. Se a habilidade do jogador sobe mais rápido que a dificuldade do jogo, ele não se sente desafiado e, ao completar os objetivos impostos pelo jogo, ele não experimentará nenhum sentimento de realização, o que tornaria o jogo entediante. Já se o contrário acontece, se a dificuldade sobe exponencialmente e a habilidade do jogador não a acompanha, o jogo se torna altamente frustrante. Este é o caso que se define em Flappy Bird. 


Representação gráfica da Teoria de Flow

O maior problema de Flappy Bird é que a dificuldade dele é extremamente alta. Assim que apertamos play pela primeira vez no jogo, ele já inicia com a dificuldade no máximo, o que seria, analogamente, como se iniciássemos um jogo e fôssemos parar, direto, no ultimo chefe. Aliás, a dificuldade do jogo nunca se altera, desde o momento que o jogador iniciar a partida até o momento em que ele inevitavelmente morrer, a dificuldade será sempre a mesma. Logo, um jogo que já começa com uma dificuldade brutal se torna extremamente frustrante em seus primeiros 10 segundos de gameplay. Mas então, se ele é tão frustrante, como ele é tão viciante? Levei alguns dias pensando comigo mesmo sobre o assunto e cheguei à conclusão de que a explicação está na combinação de três fatores, que são: 

1. A contínua possibilidade de se atingir os objetivos 

Por mais que o jogo seja extremamente frustrante, pela sua dificuldade, em nenhum momento ele se torna impossível. O padrão de aparecimento dos canos sempre permite que o jogador possa passar por eles, logo, se você falhou, a culpa é sua. Você não foi habilidoso e não foi o jogo que fez com que você perdesse. 

2. Senso de recompensa extremamente alto

Quem nunca se sentiu como um deus ao passar por aquela fase que sempre empacou, em BattleToads
Quem nunca se achou indetível depois de conseguir derrotar um chefe, em Dark Souls?
Quem nunca sentiu como se a vida finalmente estivesse completa, assim que conseguiu derrotar Sephiroth, em Kingdom Hearts 2?


Pois bem, quanto maior o desafio que nos é proposto, maior o senso de recompensa que temos ao concluí-lo; e Flappy Bird desenvolve esta noção de uma forma genial. Como ele é extremamente complicado, cada pequeno cano que você consegue transpor, cada *plim* que você ouve, é uma grande conquista, não é só mais um número no seu placar, e sim uma pequena superação de vida. Cada cano que você atravessa lhe dá a impressão de que nada mais pode lhe parar, a impressão de que seus inimigos correrão de medo quando verem sua pontuação, enquanto seus amigos criam estátuas em sua homenagem. A genialidade do jogo é justamente apostar em números baixos, fazendo cada mísero ponto contar muito para sua partida.

Na empresa onde trabalho, cheguei a ouvir o seguinte diálogo: 
− 'Nossa, sou demais! Fiz 12 pontos no Flappy Bird!' 
– 'Seu ‘noob’! (risos) Eu fiz 14!'

Isso demonstra a importância de cada pequeno ponto conseguido no jogo, e nos mostra como nos sentimos realizados quando sobrevivemos a cada um dos malditos canos. 

3. Características únicas

Por mais que o jogo seja uma mescla da cópia de vários outros jogos, e por mais que a sua jogabilidade não seja nem um pouco inovadora, ele desafia um dos princípios mais importantes do game design ao nos apresentar uma dificuldade avassaladora, que joga no chão a teoria de Flow, e ainda passa por cima. De maneira surpreendente, toda essa audácia o tornou único, e o fez desbravar territórios que poucos jogos ousaram explorar! Por mais que muitos outros jogos também apresentem uma dificuldade altíssima, Flappy Bird é um dos únicos que conseguem passar a sensação de que cada mísero ponto, cada mísera conquista, é um feito dos deuses.  Vale lembrar que este jogo não vai divertir a todos. Existem vários tipos de jogadores, eu mesmo não consigo me divertir com ele, mas agora consigo entender por que ele se tornou uma febre mundial."


O consumidor é imprevisível!

Flappy Bird é um jogo simples, de produção barata, tosco, que passa por cima de um princípio básico do game design e que, ainda assim, consegue obter sucesso. O êxito do jogo é um fato, e acredito que boa parte dos motivos disto foram expostos nesta discussão. Mas a grande conclusão a que podemos chegar é que não apenas uma boa campanha de marketing é capaz de conquistar a atenção dos jogadores, sendo necessário que estes também estejam dispostos a arriscar.

A cena mais frequente de Flappy Bird
O Wii U sofre de um mal que tudo tem a ver com Flappy Bird. Atualmente, o console não está vendendo nada, pois, apesar dos jogos excelentes que ele vem recebendo nos últimos meses, a propaganda boca a boca que se dissipa pelas redes sociais aponta insistentemente para a ideia de que o console não possui jogos. Em contrapartida, consoles que de fato ainda não possuem muitos jogos, como o PlayStation 4 e o Xbox One, estão vendendo como água, mesmo que Ryse: Son of Rome (XBO) e Knack sejam suas grandes estrelas.

Wii U: muitos jogos e pouco marketing
 O consumidor pode estar aberto a coisas novas, ou não. Pode estar atrás de qualidade, ou apenas de algo que o faça rir, de propósito ou não. E as desenvolvedoras têm nas mãos o grande desafio de conseguir prever estes movimentos. Infelizmente, tal imprevisibilidade do consumidor faz com que, muitas vezes, empresas apostem alto em empreitadas sem retorno, enquanto alguma aleatoriedade obtém um grande sucesso. Mistérios da indústria.

Revisão: Samuel Coelho
Capa: Vitor Nascimento

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


  1. Extremamente sensato! Estou falando desde o começo do ano, ps4/one não possuem muitos jogos e o que estão disponíveis em sua maioria são de dupla geração, não dá para explicar o motivo de vender tanto, se levar em conta que a maior e melhor propaganda que vi até hoje é de uma loja japonesa que comparou o ps4 com o universo DBZ. Se bem que o 3ds entra nesse caminho também, o marketing nem foi tão grande e vende igual água, vai entender!

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