Da Natsume à XSEED, conheça um pouco mais sobre a trajetória da franquia Harvest Moon

Chega de esperar pela tal reforma agrária prometida pelo governo: você finalmente pode administrar a sua própria fazenda! Virtual, mas ainda é sua!


Harvest Moon: Light of Hope foi anunciado há algumas semanas para Switch, Playstation 4 e PC, sendo essa última versão sendo diretamente colocada em comparação, mesmo sem nenhum gameplay ou vídeo divulgados, com Stardew Valley e, por conta desse suposto embate que será travado, o simples anúncio do título recebeu mais atenção do que a franquia está acostumada.


No entanto, algo que se perdeu nesse furor é como a franquia hoje é tratada e lançada no ocidente. Para compreendermos essa história, voltaremos aos seus primórdios e seguiremos por uma linha do tempo que recentemente acabou se dividindo em duas por conta de uma espécie de disputa entre a Natsume, que trouxe a franquia para o nosso lado do mundo, e a Xseed, que passou a localizá-los recentemente, passando por cima da empresa anterior.


Os primórdios

Criado por Yasuhiro Wada, o primeiro Bokujo Monogatari (História da Fazenda, no original) foi lançado para SNES em agosto de 1996, no Japão. A ideia por trás do jogo vem da própria infância de Wada, que nasceu e cresceu no campo e pensou em trazer aquele estilo de vida às pessoas que não faziam ideia de como era a vivência numa fazenda, além de querer fazer algo totalmente diferente dos títulos padrões de ação disponíveis na época.

A história do jogo original é simples: o jogador herda de seu avô uma fazenda abandonada num vilarejo isolado e tem como proposta fazê-la prosperar. A essência do gameplay, que se manteria a mesma pelos títulos subsequentes, envolve cultivar frutos e leguminosas que variam de acordo com a estação do ano e cuidar de animais da fazenda como vacas, ovelhas e galinhas para gerar alguma receita e promover reformas a fim de expandir seu sítio.

Além de se propor como um simulador, o título também apresenta elementos de estratégia, principalmente no começo da campanha, quando os recursos são escassos e é necessário administrá-los no intuito de melhorar tanto a fazenda quanto a relação do personagem principal do jogo com os outros habitantes da pequena vila, até, eventualmente, poder se casar com alguma das garotas solteiras disponíveis.


O jogo chegou aos Estados Unidos em 1997 sob responsabilidade da Natsume Inc., que havia acabado de deixar de ser uma subsidiária da japonesa Natsume-Atari e acabou encontrando no licenciamento de Bokujo Monogatari uma forma de se estabelecer no mercado, dando origem ao título Harvest Moon

O problema central é que a Natsume sempre realizou um péssimo trabalho na localização da franquia. Além de erros de programação que resultavam em glitches e bugs que não estavam presentes na versão japonesa do jogo, a equipe de tradução acabou optando por uma adaptação pesada no intuito de ocidentalizar o título, além de deixá-lo mais familiar ao remover toda menção a bebidas alcoólicas no jogo. Pense no trabalho que a 4Kids fez com Yu-Gi-Oh. É algo próximo disso. Para piorar, essa (falta de) qualidade perduraria até recentemente, quando a Xseed entra na história.

Com o jogo vendendo relativamente bem na época, Harvest Moon logo ganhou novos títulos: um para Game Boy, que seria relançado para o Game Boy Color, e outros dois desenvolvidos já diretamente para o GBC, todos sob responsabilidade da Victor Interactive Software, estúdio pertencente à JVC, empresa criadora do VHS. No entanto, seria nos consoles de mesa que a série começaria a entrar com maior força no imaginário popular.

O embate entre o Playstation e o Nintendo 64

Em 1999, apenas dois anos depois do jogo original, a franquia chegaria ao N64 com várias inovações. Dentre elas, a forma como as lojas dos diversos comerciantes na cidade podem estar abertas ou fechadas dependendo da hora do dia e como o personagem principal pode entrar em colapso caso trabalhe demais. Além disso, foi o primeiro a vir com visuais tridimensionais, ao contrário dos sprites já conhecidos nos jogos anteriores. Harvest Moon 64 é a versão favorita de Yasuhiro Wada, criador da franquia, que alega ter sido o título com o qual mais acabou se envolvendo no desenvolvimento.

Outro jogo da franquia que marcou época na infância dos gamers atuais é o Harvest Moon: Back to Nature, lançado no Japão em 1999 para Playstation, apenas dez meses depois do título para o Nintendo 64. Foi também o primeiro para um aparelho que não seja da Nintendo. Enquanto a versão para o N64 tinha um enfoque muito forte na história, é no Playstation que o jogador teria muito mais liberdade para agir no próprio ritmo em uma legítima simulação de fazenda.

O subtítulo em si já denuncia a inter-relação bem mais forte com a natureza como um elemento importante na compreensão do jogo, ao contrário do enfoque pesado na questão agropecuária das versões anteriores. A concepção do jogo exige uma sincronia com a natureza por parte do jogador que o faça entender todo o ecossistema ao redor de sua fazenda, caso contrário, ele dificilmente vai prosperar.


É muito comum que em filmes e outras representações da vida na fazenda, como os gibis do Chico Bento, tal relação entre o homem e a natureza seja apresentada de uma forma quase que simbiótica. O Harvest Moon de PS foi o primeiro jogo da franquia a conseguir trazer esse sentimento justamente por se focar menos no enredo. O ambiente do jogo fala por si só, ele é a própria história.

Um fato interessante é que HM64 e Back to Nature geraram uma discussão leve – considerando os padrões de uma época em que a cultura da internet não era tão intensa – a respeito de qual dos dois era melhor, o que, de certa forma, contribuía para acirrar a disputa ainda em ascensão entre a Sony e a Nintendo.

Em 2001, Save the Homeland seria lançado para o Playstation 2 e traria novamente essa ideia de preservação da natureza, visto que o enredo era justamente a respeito de salvar a área da fazenda de se tornar um parque de diversões. No entanto, o fato do jogo ser novamente focado na questão da história acabou linearizando-o por demais, limitando a sensação de liberdade trazida por Back to Nature, além de retroceder em alguns aspectos no intuito de tornar o jogo mais simples, como a eliminação da mecânica de casamento.



A era Marvelous e a produção de spin-offs

Em 2003, o conglomerado de mídia Marvelous Entertainment adquiriu a Victor Interactive Software (passando a se chamar Marvelous Interactive Inc.) e, consequentemente, a franquia Bokujo Monogatari. O primeiro lançamento sob a nova direção seria Friends of Mineral Town, uma adaptação de Back to Nature para Game Boy Advance. Uma versão com uma personagem feminina chamada More Friends of Mineral Town foi lançada logo em seguida.

O próximo jogo original que foi desenvolvido chama-se A Wonderful Life, para Gamecube, e conseguiu resgatar a mágica trazida por Back to Nature em uma nova história. Aqui, a natureza como tema central do jogo dá lugar às fases da vida de um ser humano, com uma história dividida em capítulos que envolvem eventos centrais como o casamento, o nascimento de um filho, até o destino final de todos: a morte. Cada uma dessas etapas traz um novo contexto ao vilarejo, bem como aos seus habitantes, que envelhecem de acordo com o passar do tempo. Assim como o título de GBA, Another Wonderful Life também foi lançado, com uma personagem feminina no lugar.


O jogo seguinte, Harvest Moon DS, usaria o mesmo vilarejo e contexto inicial de A Wonderful Life, mas a história seria diferente. Sem a mecânica do envelhecimento, o objetivo do jogador é realizar tarefas para trazer de volta a Deusa da Colheita e seus cento e um pequenos elfos que foram banidos para outro plano pela Princesa Bruxa.

A essa altura, apesar de ainda não enfrentar praticamente nenhum concorrente direto no conceito — há quem diga que Animal Crossing havia surgido para isso —, a série começou a cair no ostracismo. Magical Melody ainda seria lançado em 2006 nos EUA, ao fim da vida útil do Gamecube. A franquia chegaria ao Wii com Tree of Tranquility, em 2008. Animal Parade veio na sequência, em 2009, e foi o último jogo que Yasuhiro Wada teve participação direta.


O Nintendo DS ainda receberia Island of Happiness e Sunshine Islands, ambos criticados por não oferecerem nada de realmente novo. O mesmo vale para Grand Bazaar, que, apesar de aparecer com uma proposta diferente que envolve a venda em tempo real dos produtos cultivados na fazenda, não conta com absolutamente mais nada de novo além disso. The Tale of Two Towns (com versão para 3DS) também seria lançado com a proposta de oferecer mais variedade ao jogo, fazendo com que o jogador escolha entre duas cidades para prosperar sua fazenda, no entanto, as coisas não ocorrem como o esperado e a progressão do título, no final das contas, acabou ficando, na prática, muito linear. 
 
Enquanto isso, a franquia geraria diversos spin-offs, como Innocent Life: A Futuristic Harvest Moon, para o PSP, com uma proposta futurista; Rune Factory: A Fantasy Harvest Moon, para o DS, onde combates são introduzidos à vida pacata na fazenda; My Little Shop, onde a fazenda fica de lado e a administração de uma loja torna-se o destaque do jogo; e Hometown Story, que é literalmente o oposto da série principal, no caso, um simulador da vida urbana.

A emancipação da franquia nas mãos da Xseed Games

Em 2012 chegava ao mercado A New Beginning, desenvolvido desde o início para o Nintendo 3DS (ao contrário de The Tale of Two Towns, que só ganhou um port) e tinha como diferencial a proposta de revitalizar não somente a fazenda, mas todo o vilarejo, cujos habitantes tinham abandonado, num sistema que lembra um pouco Animal Crossing.

Ironicamente, dado o nome do jogo, esse seria o último jogo da série a ser lançado pela Natsume, uma vez que a própria Marvelous decidiu que era hora de tomar as rédeas da situação, relegando à Xseed Games, sua subsidiária, a tarefa de trazer Bokujo Monogatari no ocidente.

No entanto, o nome Harvest Moon e o direito de publicar jogos por essas bandas com tal título pertencia à Natsume. Isso acabou criando uma espécie de cisão na franquia, onde a Natsume viria a desenvolver seus próprios jogos sob tal nome e a série original, a que é desenvolvida no Japão, passou a ser publicada sob o nome Story of Seasons pela Xseed.

Dos títulos desenvolvidos pela Natsume, o primeiro foi The Lost Valley. Considerando que a empresa não conseguia lidar direito nem com uma localização, era de se esperar que o resultado final fosse sofrível, como realmente foi. Fracasso de crítica, as principais alegações eram de que o jogo carece de polimento e acabou se tornando um título cujo resultado final mostrou-se subdesenvolvido. 

Outros resultados dessa incursão da Natsume pelo desenvolvimento foram Skytree Village, que até deixou uma boa impressão, mais por uma questão de discrepância em relação ao fracasso anterior, mesmo que ainda fosse extremamente precário, e Seeds of Memories, para mobile.


A Xseed, por sua vez, trouxe Story of Seasons para o ocidente e a repercussão foi um pouco melhor. Corrigindo alguns problemas de A New Beginning, além de a série ter finalmente recebido um serviço de localização decente, a recepção foi relativamente positiva. 

Story of Seasons: Trio of Towns, por sua vez, o último título lançado da franquia até a presente data, já foge um pouco do modelo trazido por A New Beginning e começa a ter identidade própria, revisitando com maior intensidade a proposta original de The Tale of Two Towns, mas desenvolvendo melhor a ideia na prática.

E o futuro?

Considerando a trajetória até aqui e que Light of Hope é um título desenvolvido pela Natsume, acredito que todo hype que com ele veio junto não se justifica, embora seja fácil confundir os títulos devido à comoção pela nostalgia que o título para o N64, Back to Nature ou A Wonderful Life acabam trazendo na memória dos jogadores. 

Convenhamos, o site da Natsume parece ter sido feito nos anos 90, mesmo sendo atualizado constantemente. Uma empresa que não tem a mínima competência para desenvolver uma página da web, que comete erros de escrita dentro do jogo a ponto de errar o próprio nome, como no title card do jogo do Nintendo 64, que é incapaz de fazer um planejamento de marketing decente a nível do consumidor descobrir a respeito do lançamento de um título apenas dias antes do mesmo chegar às lojas e que deixa os jogos instáveis a ponto de fazer com que os saves sofram um crash após um número de horas registradas não é digna de confiança para “trazer a franquia de volta às suas origens”.
Essa história da Natsume ser ruim pode até parecer piada, mas observe como o nome da própria empresa foi escrito no rodapé.
A série na mão da XSeed pode também não ser um primor, mas não é por conta de incompetências no procedimento de localização, visto que a empresa é muito exigente em relação a esse processo. Os jogos podem continuar medíocres, mas é porque as versões originais japonesas deles já eram assim.

O que aconteceu é que a Marvelous acabou caindo no comodismo de, por muito tempo, não ter que enfrentar jogos concorrentes de temática similar, segundo Yasuhiro Wada, em uma entrevista concedida em 2007. Aos poucos, esse cenário acabou mudando com o desenvolvimento de simuladores mais simples (como o Colheita Feliz do Orkut) até outros títulos mais densos e recentes, como é o caso do Stardew Valley, que recebeu elogios do próprio Wada, visto que ele se aproxima mais do conceito de Harvest Moon do que a própria franquia hoje.

Sombra do que já foi, a série talvez precise resgatar suas origens. E isso não deve ser da boca para fora, apenas na fala. Ela precisa compreender o que significa o nome Bokujo Monogatari e que ele não envolve apenas a introdução de uma infinidade de gimmicks para dizer que está evoluindo. Assim como Back to Nature nos ensina a entender como entrar em harmonia com a natureza, tanto a Marvelous quanto a Natsume precisam fazer o mesmo com a própria franquia.

  Revisão: Arthur Maia

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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