Final Fantasy e a construção da empatia pelos personagens

A série Final Fantasy traz ótimos exemplos de como mecânicas e narrativa podem nos aproximar dos personagens.

Jogos de RPG são conhecidos por dar grande ênfase aos personagens, venham eles prontos com o jogo ou sejam eles feitos pelos jogadores. É claro que esse aspecto importante dos RPGs em colocar o foco nos avatares não é, e provavelmente nunca foi, exclusivo do gênero, mas é evidente nos jogos desse estilo a preocupação em fazer com que o jogador veja, e viva, a história desses guerreiros que ele mesmo “cria” ou acompanha. Isso acontece tanto na vertente ocidental quanto na oriental, mas hoje iremos falar sobre Final Fantasy, onde refletiremos sobre os aspectos da história e da narrativa, além das mecânicas e dos sistemas que fazem com que nos importemos com aquele ser virtual pelo qual nos conectamos por horas.



Observação: o texto contém spoilers, inclusive na primeira linha do próximo parágrafo.

Empatia através do enredo

“A Aerith morreu!”, foi algo pensado, falado ou até mesmo gritado por muitos jogadores quando viram a cena pela primeira vez na vida. Eu, como tantos, me espantei e falei tal frase, claro que acompanhada de palavrões. Das primeiras horas do jogo ao momento em que Sephiroth atravessa a última dos Cetra com sua espada, Final Fantasy VII (PS) constrói cada momento de sua história de forma a nos afeiçoarmos por Aerith. No momento em que Cloud se separa do grupo Avalanche, e consequentemente dos outros dois personagens jogáveis até então, conhecemos Aerith, que nos é apresentada possuindo sempre uma personalidade positiva através das cenas e diálogos. Sendo inclusive mais "relacionável" que o frio e antipático protagonista.
Deu ruim...
Logo de cara ela é colocada no centro do enredo, já que a Shinra a persegue constantemente. A partir daí, ela passa a fazer parte do grupo durante boa parte da jornada. Ainda que seja possível nos aproximarmos mais da Tifa (ou da Yuffie e do Barret) do que da Aerith até o encontro no parque Gold Saucer, o título nos apresenta uma personagem importante independentemente das escolhas do jogador para o “romance” do Cloud. Temos também a influência da trilha sonora, já que muitas das cenas são acompanhadas por uma bela peça musical (inclusive, a linda obra é tocada na cena de sua morte).

Eu gostava da Aerith, mas confesso que não a usava nas batalhas. Seu Limit Break até era útil, mas eu preferia compor a equipe com outros personagens. Nesse sentido, do ponto de vista da história que se desdobrava, fiquei triste com o assassinato da Aerith, mas isso não refletiu no meu time de batalha, já que eu raramente a incluía no grupo.

Empatia através do ato de jogar

Já em Final Fantasy X (PS2), se a Yuna morresse eu teria algo próximo a um ataque cardíaco. Além de gostar da personagem pelos desdobramentos do enredo, ela era a peça fundamental da minha equipe de batalha com as suas magias e buffs e principalmente as invocações dos Aeons (cujo valor dos atributos dependiam dos atributos da própria summoner).
Mais Cloud para galera!
Em Final Fantasy Tactics (PS) temos Ramza e outros personagens que atuam diretamente nas cenas e diálogos, além de muitos outros “genéricos” que apenas compõem a equipe. É possível criar um guerreiro inestimável para seu grupo usando um destes, e a partir das realizações dele nas batalhas uma narrativa pode surgir para você, já que aquele personagem vence tantos desafios no seu jogo. Imagine, então, que em uma batalha este personagem seja incapacitado e que você não consiga usar uma magia ou phoenix down antes do fim da contagem de turnos. Você se sentirá abatido com a perda, não porque o jogo te fez gostar do personagem em cenas e diálogos, mas porque ele era importante para a sua estratégia.

Sinergia entre narrar e jogar

Um game possibilita que nos conectemos aos personagens não apenas observando a sua história, mas também vivenciando-a. Nós assistimos ao que acontece com o personagem, mas também jogamos e controlamos. Temos de um lado a empatia narrativa: nos preocupamos com Aerith porque o enredo tenta nos fazer gostar dela; e do outro temos a empatia mecânica: sem o fictício guerreiro de FFT ou a Yuna, muitas batalhas seriam dificultadas já que, no caso dela, ela é a única que pode invocar os Aeons. Esta divisão não é tão extrema assim, claro, mas é uma separação interessante para podermos refletir sobre as diferenças entre as empatias. Bom mesmo é quando os dois “tipos” entram em sinergia. Yuna é um bom exemplo, mas existe também outro caso excelente: Final Fantasy IX (PS).

Se em alguns jogos da série contamos com personagens que podem ser moldados com bastante liberdade (ainda que isso varie em intensidade e momento do jogo), em outros encontramos um grupo de heróis com definições mais claras de função ou job. É o caso de Final Fantasy IV (SNES) e FF IX. Essa definição faz com que o personagem não seja apenas único do ponto de vista do enredo, mas também único do ponto de vista tático para o grupo quando pensamos nas batalhas.


Em Final Fantasy VI (SNES) e Final Fantasy XII (PS2), por exemplo, mesmo com muitas restrições (que vão desde o caminho do grid em FF XII até as armas e técnicas especiais do FF VI) os personagens podem ficar parecidos entre si, se essa for a vontade do jogador. A princípio, você pode fazer com que qualquer personagem seja o curandeiro do grupo, sendo possível ignorar quem possui um atributo maior de magia. Em FF IX este não é o caso.

Cada herói possui uma definição muito clara não só de personalidade, mas também no que diz respeito às suas habilidades e funções na batalha. Dagger e Eiko são exclusivamente summoners (e cada uma delas tem uma lista exclusiva de invocações), só Zidane pode roubar, apenas Vivi utiliza magias negras, Quina é quem aprende técnicas dos inimigos, e por aí vai. O papel de cada um na batalha é muito bem definido. Isso acaba complementando muito bem a personalidade única de cada um deles trazendo uma sinergia bacana entre empatia mecânica e empatia narrativa. Não são apenas as cenas e os diálogos que contam a história dos jogos, mecânicas e sistemas também podem fazer isso e muitas vezes com uma influência grande do jogador.

Não estou aqui para dizer qual jeito é “melhor ou pior”, isso quem irá decidir serão os desenvolvedores, tendo em vista que tipo de experiência eles estão buscando, e também cada jogador que experimentar o game. Minha contribuição aqui é mostrar a vocês as diferentes formas de se criar empatia por um personagem, e como é bacana vermos essas diferentes maneiras como os personagens são apresentados em uma mesma série.
A turma reunida.
Quer acompanhar a história, mas também quer ter uma liberdade maior para construir seu grupo? Existe um Final Fantasy pra você. Quer acompanhar uma história na qual cada personagem tenha o seu papel delimitado dentro e fora da batalha? Também existe um FF para você. Seja qual for a sua preferência, é muito melhor quando a liberdade, ou a ausência dela, oferece apoio ao enredo e possui sentido narrativo.

Em Final Fantasy VIII (PS), todos os personagens, com exceção de Rinoa, fazem parte de um grupo militar no qual Guardian Forces, os famosos GFs, são usados para o aprimoramento da batalha e para possibilitar o uso de magia. Em FFVIII você pode literalmente ligar cada GF a qualquer personagem. Dessa maneira, todos podem utilizar as habilidades que o GF proporciona. Temos aí um exemplo do primeiro grupo (liberdade maior para construir o grupo) no qual o enredo justifica essa possibilidade. Quem jogou sabe, inclusive, que essa relação com os GFs trazem outras consequências à história.

Em Final Fantasy IX é a própria história e a personalidade dos personagens que definem as suas habilidades e como melhor se portar nas batalhas. Ao meu ver, em FF X e FF XII somos colocados na pele de um personagem justamente para presenciar, como um jogador-espectador, as ações de outro membro do grupo, ou mesmo para vivenciar o mundo do jogo sem muitas influências. Controlamos Tidus para acompanhar a história de Yuna (ainda que ele insista em falar que é a história dele) e entramos na pele de Vaan para fazer parte de uma história na qual o mais importante é o mundo e como ele funciona (ainda que muita gente diga que é para ver como o Balthier é legal).
Com um mundo belo e interessante desse para explorar, eu nem iria ligar de trocar o Vaan por um cone.
Já em FF VI, que por si só já merece um artigo único, todos os aspectos do jogo são construídos tendo como base um vasto número de personagens que representam diferentes pontos de vista e perspectivas daquele instigante mundo e, ao mesmo tempo, compõem uma equipe de batalha distribuída que pode se dividir dependendo da situação para atender diferentes missões, como na última dungeon do jogo.

Personagens da fantasia

É claro que jogamos também para conhecer as histórias e os personagens, e os games possuem diferentes maneiras de nos fazer ter empatia pelas pessoas que vivem aquela aventura em um mundo distante. Seja qual for a forma escolhida pelo jogo, quando todos os aspectos são bem amarrados, formando uma narrativa viva e coerente, o resultado costuma ser melhor. Nesse sentido, a série Final Fantasy é um ótimo objeto de estudo e, sobretudo, uma grande fonte de histórias e personagens pelos quais nos apaixonamos.
Este foi o primeiro artigo da nossa coluna semanal RPG Blast, na qual falaremos apenas desse gênero que conquistou, e conquista, tantos jogadores. Não deixe de comentar e dar sugestões. Até a semana que vem!
Revisão: Érika Honda

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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