Blast from the Past

I Have No Mouth, and I Must Scream (PC): o clássico que todo fã de terror deveria jogar

Adaptação do livro provoca e perturba o jogador para refletir sobre questões éticas


Aristóteles acreditava que uma história trágica só é perfeita quando o herói erra, de forma a causar uma peripécia, ou seja, uma reviravolta na trama. Esse erro, chamado hamartía, acontecia por sua ignorância, assim o herói continuava a ser uma boa pessoa e poderia reconhecer que causou todo o problema. Shakespeare transformou a hamartía no chamado fatal flaw. O protagonista tem uma falha de caráter que o leva ao erro trágico.



“Pera lá, eu quero saber de jogo, não de literatura!”, você já deve ter dito. Calma, eu precisei explicar isso primeiro pois I Have No Mouth, and I Must Scream gira em torno do fatal flaw. O game é um adventure point-and-click para PC, adaptado do conto com o mesmo nome publicado em 1967 e escrito por Harlan Ellison.
Cada personagem tem que enfrentar seus medos e defeitos

Penso, logo existo

Tanto o jogo quanto o livro têm a mesma história básica: China, EUA e Rússia entraram em guerra, que foi ficando cada vez mais complexa. Para gerenciar os conflitos de forma mais eficiente, cada superpotência criou uma inteligência artificial. A IA criada pelos EUA tornando-se auto-consiente, absorveu seus equivalentes, dando origem ao Allied Mastercomputer (AM). AM odeia a humanidade, por ter sido criado de forma tão limitada, incapaz de ser criativo ou de se locomover, então decidiu destruir a raça humana. E conseguiu, deixando apenas quatro homens e uma mulher vivos, para que possa torturá-los por toda a eternidade.

Tenso, não é? A trama começa 109 anos depois. Os cinco sobreviventes foram alterados por AM, realçando seus defeitos e aumentando seu tempo de vida. É nesse ponto que a história do jogo fica diferente em relação ao conto – o roteiro também foi escrito por Ellison. No original, eles se conhecem e partem em busca de comida, enquanto no jogo há pouco contato entre eles e sua motivação vem do desejo de AM de “brincar” com os sobreviventes, fazendo com que cada um tenha que enfrentar uma situação alinhada com sua falha de caráter.

Esses cenários são chamados psycho-dramas. Ted é paranoico e precisa lidar com um castelo cheio de pessoas mentindo para ele; Ellen tem fobia à cor amarela, por ter sido estuprada por um cara de amarelo, e vai parar em um templo egípcio decorado na cor de seu medo; Gorrister é suicida e AM diz que vai dar a ele uma chance de se matar, apenas para sabotar cada uma das tentativas; Benny era um comandante militar que matava seus soldados, por isso foi transformado em uma forma símia, incapaz de agir conforme pensa, e está em uma comunidade (criada artificialmente por AM) que quer realizar um sacrifício ao supercomputador; e Nimdok é um velho médico nazista que fazia experimentos nas pessoas, agora precisa lidar com um campo de concentração e procurar pela “tribo perdida”, só que AM fez com que tenha problemas de memória e negação, impedindo que conviva direito com os outros.
Jogo para nós e para AM, tortura psicológica para os personagens

Vamos jogar um pequeno jogo?

Cada um dos cinco psycho-dramas tem a mesma jogabilidade. Temos uma tela para o cenário e, logo abaixo, a interface do jogo. Os oito comandos possíveis pelo personagem estão ali: “andar até”, “olhar”, “pegar”, “usar”, “falar com”, “engolir”, “dar” e “empurrar”. Do lado direito, está o inventário. Ao interagir com outra pessoa, surgem as opções do que dizer a ele. A foto do personagem no canto esquerdo é chamada de barômetro espiritual, devido à sua função de mostrar se você está agindo bem (fundo verde) ou mal (fundo preto). A mecânica seria interessante se não fosse pelo fato de algumas escolhas estarem em uma área moralmente cinza. O jogo nunca explica para o jogador que ele precisa elevar o barômetro espiritual o suficiente para alcançar o final “bom”.

Toda a parte visual reflete o tom da narrativa, preenchido com cenários que parecem saídos de um pesadelo. Um dos defeitos do jogo é a animação, tão travada que vai te dar saudades do trabalho feito nos adventures da LucasArts. Como muitos jogos no mesmo estilo, I Have No Mouth é dublado, com destaque para a voz de AM – ironicamente fornecida por Ellison, famoso por sua aversão a computadores (ele escreveu o roteiro do jogo em uma máquina de escrever!). As músicas foram compostas por John Ottoman, em um de seus primeiros trabalhos depois da faculdade, e que agora é famoso por fazer as trilhas para os filmes de Bryan Singer (como a série X-Men).

Como o objetivo de AM é torturar os sobreviventes, ele espera que cada um aja de acordo com seu fatal flaw. Ellison queria que os jogadores falhassem em cada situação e que a única maneira de “vencer” seria agir de forma nobre, o que seria muito difícil. Na verdade, é quase impossível quando jogamos pela primeira vez ou sem a ajuda de um passo-a-passo. Parece até que AM tomou posse da programação do jogo, deixando-o com uma série de bugs e erros.
Detalhes deixam os gráficos mais surreais, como o tronco da árvore

O grito silencioso

Quando conseguimos passar pelos cinco cenários, AM devolve cada um dos sobreviventes à suas celas e “desliga” seu monitoramento, para pensar como os protagonistas conseguiram superar sua tortura. Um dos personagens, escolhido pelo jogador, é digitalizado e transportado para dentro da mente de AM, um psycho-drama baseado na teoria de Freud sobre a psique. É nesse momento que descobrimos que a “tribo perdida” do cenário de Nimdok é, na verdade, 750 humanos colocados em animação suspensa em uma base lunar.

Há quatro finais e apenas um deles é “bom”. Se o jogador agiu bem durante cada um dos cenários, ele consegue desligar o AM e acordar os humanos na Lua, mas o personagem escolhido passa o resto de sua existência na forma digital, para impedir que AM volte a funcionar, e os outros quatro protagonistas são mortos em uma explosão. Em outro final, caso o jogador desligue apenas parte de AM, o supercomputador mata todos os humanos em Luna antes de ser parcialmente destruído. Se o sobrevivente não conseguir desligar AM, o computador irá matar todos os outros, torturar os humanos restantes e o intruso que tentou desliga-lo passará o resto da eternidade em uma forma grotesca, incapaz de fazer qualquer coisa. Seu último pensamento é o que batiza o jogo: "Eu não tenho boca. E eu preciso gritar."

Se os defeitos técnicos são o fatal flaw do jogo, a trama é sua redenção e, até hoje, serve de lição sobre como é possível criar uma narrativa de terror sem apelar para truques baratos de surpreender o jogador com um zumbi aparecendo do nada. I Have No Mouth é depressivo, sombrio e recheado de dilemas éticos, marca registrada do trabalho de Harlan Ellison. Definitivamente não é para qualquer um, mas vai fascinar quem resolver se aventurar por ele.

Tanto a produtora The Dreamers Guild, quanto a publisher Cyberdream fecharam as portas em 1997, deixando o jogo em um limbo. Felizmente, os direitos foram adquiridos pela Night Dive Studios, que relançou o jogo nas plataformas GOG e Steam em 2013.

Revisão: Alberto Canen
Capa: Felipe Araujo


Jornalista formado na FIAM-FAAM, escreve sobre suas três paixões: games, carros e cultura pop. Assinou textos para Nintendo World, Banana Games, Car and Driver, iG Carros e agora passa os dias falando de carros no Motor1.com Brasil.
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