Discussão

Pitty, Ed Motta e o complexo de vira-lata: a localização dos jogos de videogame

Todos estão culpando Pitty por seu trabalho mediano em Mortal Kombat X. Mas será que ela é a única culpada?

Nas últimas semanas, vivemos duas polêmicas culturais opostas: de um lado, a cantora Pitty foi contratada para dublar Cassie Cage, personagem do recém-lançado Mortal Kombat X; do outro, o cantor Ed Motta foi duramente criticado por uma postagem polêmica no Facebook que dizia que ele não queria ninguém falando em português em seus shows, pois brasileiros, na maioria das vezes, só o fazem passar vergonha lá fora.


As duas situações causaram revolta na internet e acabaram infestando blogs e redes sociais. Eu apenas observei de longe, como faço com boa parte dessas revoltas apocalípticas de internet que costumam durar uns três dias. Mas dessa vez algo me chamou atenção: a vergonha e a síndrome do brasileiro inferior não são apenas inerentes ao Ed Motta, mas à boa parte dos brasileiros.

Sonho de infância

Quando eu era pequeno, adorava jogar meu Master System, e por mais que me divertisse, sentia falta de jogos feitos em nossa língua. Afinal, por que os jogos de videogame são a única forma de lazer que exigem que o jogador saiba outra língua para que possa aproveitar totalmente a experiência?

"Que legal esse jogo que eu não entendo"
Os anos se passaram, acabei aprendendo inglês (parte com os jogos, parte com cursos), e os jogos continuavam completamente em inglês. Apesar da língua não ser mais um empecilho, ainda sentia falta de ver meu idioma sendo valorizado. Muitos jogos permitiam que eu selecionasse se gostaria de jogar em inglês, alemão, italiano, espanhol ou francês. Mas por que não o português?

Diversas revistas e páginas na Internet já contestavam a falta de atenção que o Brasil recebia das desenvolvedoras, que sempre traziam jogos sem o menor esforço para que a população brasileira de fato entendesse tudo o que estava acontecendo. Até que as coisas começaram a mudar.

Com a chegada do Xbox 360 no país, o mercado formal de videogames no Brasil começou a crescer de tal forma que as empresas viram uma necessidade maior de traduzir os jogos para que eles alcançassem o maior público possível. Daí veio uma onda de jogos em português. Uns muito bem traduzidos, outros nem tanto, o que é normal e acontece inclusive em jogos com dublagem e textos estrangeiros. Mas por que no Brasil tudo isso vira um problema maior do que deveria ser?


O complexo de vira-lata

Boa parte da população brasileira com mais acesso à informação por meio da Internet sofre de um problema bastante comum: a síndrome do vira-lata. O que acontece é que tendemos a desprezar a nossa própria cultura, assumindo que outras, de países mais desenvolvidos são superiores e modelos a serem seguidos.


Quem não conhece pessoas que não ouvem ou não gostam de músicas brasileiras pelo simples motivo de serem brasileiras? Afinal, brasileiros não possuem todo o glamour e pirotecnia de bandas e cantores estadunidenses ou britânicos. E filmes? Conheço poucas pessoas que decidiram assistir algum clássico brasileiro ao invés de algum blockbuster pipoca (que só pode ser visto legendado, caso contrário não presta, já que está em português). E isso se repete com qualquer coisa que tenha origem tupiniquim. E isso se repete para quase todas as manifestações culturais brasileiras; e os jogos são a bola da vez.

“Ninguém fala português no meu jogo!”

Assim como Ed Motta não quer que ninguém fale português em seus shows, os jogadores não querem que ninguém fale em português nos seus jogos, afinal, perde parte da sofisticação, parte do luxo de estar aproveitando algo de um país superior no país pobre e mulambento que infelizmente eles tiveram o azar de nascer.

Para agravar um pouco a situação, as pessoas tendem a ser extremamente críticas com tudo o que é feito aqui, de maneira que uma dublagem mediana como a de Pitty acaba se tornando um apocalipse e uma vergonha nacional. Se esquecem, porém, que dublagens de caráter duvidoso acontecem no mundo inteiro. Ou ninguém se lembra das vozes em inglês americano de Tales of Vesperia (X360)? Se ninguém nunca ouviu alguma dublagem americana de gosto duvidoso, que atire a primeira pedra.


Textos também nem sempre estão tão bem traduzidos e adaptados, sejam os americanos, para jogos japoneses, ou os brasileiros, para jogos de qualquer outra parte do mundo. Mas aos que criticam: já tentaram ao menos pesquisar como este trabalho é feito ou quais são os prazos exigidos pelas desenvolvedoras?

As dificuldades de localização

Como bem disse Pitty, ela está longe de ser a maior responsável pela qualidade duvidosa de sua dublagem. Em última instância, o culpado é você, caro jogador. É claro que a escalação da cantora, ou mesmo de Roger para Battlefield Hardline, não é culpa sua. Mas a falta de confiança das desenvolvedoras com o mercado brasileiro é.


Pitty e Roger fizeram o melhor trabalho possível dentro do que lhes foi oferecido. E isso é quase nada, já que as desenvolvedoras não enviam os seus jogos para cá para que eles sejam traduzidos. Isso mesmo! O trabalho de localização de jogos ocorre sem que as empresas de tradução tenham acesso ao material completo.

Cabe a elas conseguir se virar com falas soltas, ora sem contexto nenhum. Depois disso, basta rezar para que as falas se encaixem corretamente ao contexto do jogo. No caso da dublagem, por exemplo, os estudios têm acesso aos audios originais para que o dublador tenha alguma referência. Mas você não esperaria que artistas do ramo musical conseguissem atuar tão bem como um dublador profissional, não é? A escalação da Pitty foi um erro da Warner, que desejava conseguir mais publicidade com o seu trabalho, mas nem sempre as condições deste tipo de trabalho são das melhores.


E o motivo pelo qual não recebemos os jogos completos é bem simples: somos um dos países com o maior número de softwares pirateados do mundo inteiro. Receosas, as desenvolvedoras não enviam todo o material que deviam para o nosso país pensando que seus jogos podem vazar muito antes de seu lançamento oficial.

Então se você, pessoa de bem, vive reclamando da má qualidade da localização dos jogos, mas adora baixar seus títulos por meios ilegais, meus parabéns, a culpa é sua. E nenhum abaixo assinado para o pessoal da Warner sobre a dublagem da Pitty vai mudar alguma coisa.

E o que devemos fazer?

O que realmente deve acontecer para que o trabalho de localização seja algo cada vez melhor é passarmos a apoiar o mercado nacional e pararmos de tentar tirar vantagem em tudo, obtendo jogos piratas ou mesmo comprando-os pelo mercado cinza (basicamente contrabando), de forma que não impacta a indústria brasileira.


Apoiando as desenvolvedoras da maneira correta, adquirindo seu trabalho por meios legais, fará com que elas passem a investir cada vez mais no país e possam trazer trabalhos de localização cada vez melhores. É o que já vem acontecendo com a Microsoft, que possui jogos extremamente bem localizados, ou mesmo com a EA, que é uma das pioneiras no país e nunca decepciona com os textos traduzidos de jogos como The Sims (PC).

Aos que criticaram duramente Ed Motta, mas detonam qualquer jogo em português, preferindo jogá-los em inglês, peço que reflitam a respeito. Os brasileiros têm o direito de receber produtos em português e nem todo mundo teve a mesma chance que eu de aprender uma nova língua logo na infância.


Videogames em português são um pré-requisito para que a indústria cresça cada vez mais em nosso país, já que a tradução faz com que mais pessoas possam jogar e se divertir. E sendo assim, tudo o que tenho a dizer à Pitty sobre o seu trabalho é um enorme obrigado. Apesar do trabalho não tão bom, você deu mais atenção ao mercado nacional de jogos do que muitos gamers por aí.

Revisão: José Carlos Alves
Capa: Guilherme Kennio

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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