Discussão

Questão de gênero: o papel feminino dentro dos games

Os personagens têm sido um ponto chave na maioria dos games atuais. Mas será que a imagem feminina tem sido bem representada no mundo virtual?

Samus Aran, Lara Croft, Chun-li, Bayonetta… Os exemplos de grandes personagens femininas cresce a cada dia no mundo dos games. Com a expansão do público gamer, muito tem se pensado sobre como agradar a todos os gêneros de mercado. De crianças a idosos, passando por homens e mulheres de diversas orientações sexuais, com estilos de jogos cada vez mais inumeráveis. Com cada vez mais variedade de público para agradar, o mercado de games tem investido bastante não só no poderio gráfico e na jogabilidade de seus títulos, mas também no enredo de suas histórias e, às vezes, na profundidade de seus personagens.



O que seria de franquias como Resident Evil, Mass Effect, Final Fantasy, The Legend of Zelda, Mortal Kombat, Street Fighter e tantas outras sem os seus personagens marcantes? Mas será que entre nessa lista incrível de personagens, as mulheres estão realmente sendo representadas de forma digna? Será que o papel feminino, afinal, é bem demonstrado no mundo dos games? É o que vamos discutir neste texto!


Um início tímido

Uma das primeiras personagens femininas a fazer história nos games foi, sem dúvidas, Samus Aran, em Metroid (NES). Lançado em 1986, o primeiro jogo do que viria ser uma cultuada série de games apresentava uma das maiores caçadoras de recompensa da galáxia em missões em busca dos seres alienígenas semelhantes a águas-vivas que dão nome à franquia.

O jogo foi um marco para a época, uma vez que durante praticamente toda a jogatina Samus não era apresentada exatamente como mulher. Ao final da aventura, entretanto, quando ela finalmente tira sua famosa armadura, causa surpresa para os desavisados, exibindo seus longos cabelos e revelando finalmente ser uma mulher. A mensagem do jogo nesse final é clara: mulheres são tão capazes de salvar o universo quanto homens; por que não?

Para a época, esse foi um primeiro grande passo no mundo dos games, pois trouxe o foco para o público feminino, mesmo que de forma um tanto tímida e disfarçada. Mas foi um primeiro passo essencial, pena que depois disso, outros passos não foram dados com tanta elegância assim. Mas tudo ao seu tempo.



O efeito “Lara Croft”

Em 1996, a Eidos Interactive lançava Tomb Raider: Atlantean Scion (Multi), primeiro jogo de uma série que apresentava uma das personagens mais famosas da história dos videogames: Lara Croft. Lara é quase a personificação da perfeição: inteligente, bonita, independente, rica, forte, sensual e poderosa. Não é difícil entender por que a personagem faz sucesso até hoje, principalmente com o recomeço da série em 2013, no qual a personagem foi bastante humanizada, tornando-a uma figura bem mais próxima do público.

O problema foi o percurso que Lara percorreu até chegar em 2013. Entre 1996 e 2013, foram mais de dez jogos lançados (fora expansões) e, a cada lançamento, as capacidades gráficas das gerações de consoles aumentavam. O problema é que, inversamente a isso, as roupas de Lara diminuíam a cada geração. E assim, o apelo sexual no mundo dos games começou a eclodir, não exclusivamente através de Lara Croft, mas em um movimento que envolvia jogos de luta, RPGs, aventura e ação, principalmente. 



O que chamamos aqui de “efeito Lara Croft” é exatamente isso, essa hiperssexualização das personas femininas nos jogos que insiste em permanecer viva até os dias de hoje. Hora, se em espaços como o de torneios de luta é até justificável o uso de pouca roupa, tanto por parte de homens quanto de mulheres, o que dizer de jogos medievais, como os diversos MMORPGs e até franquias como Monster Hunter, que mostram colossais armaduras para os personagens masculinos, enquanto insistem em manter os personagens femininos apenas com tops e tangas curtíssimas? Tem algo errado aí.

Por sorte, como citei agora há pouco, Lara Croft sofreu uma remodelação, tornando-a uma personagem muito mais humana e profunda que antes, com fraquezas, medos e exitações, sem perder sua beleza e feminilidade, mas deixando de lado boa parte da sexualidade exagerada que começou a virar marca registrada da série entre 2002 e 2010.



Toda mulher é uma donzela indefesa?

As mulheres que não são hiperssexualizadas nos games se dividem em dois outros grandes grupos de personagens femininas: as personagens suporte para homens e as donzelas indefesas. Final Fantasy, The Legend of Zelda, Resident Evil, Mario Bros. e tantos outros jogos e franquias insistem por anos e anos a fio em mostrar uma personagem feminina frágil e indefesa que está em apuros nas garras de um poderoso vilão (na maioria das vezes, masculino). Isso reforça ainda mais o papel heróico masculino na mão do protagonista, seja ele Cloud, Link, Leon ou Mario.

Esse olhar romantizado reforça o lugar indefeso e frágil do papel feminino, sempre esperando por uma ação masculina para que a sua vida mude. Além disso, outra função muito corriqueira de mulheres no enredo de diversos jogos é o de suporte para homens. Ada Wong (Resident Evil), Lady (Devil May Cry), Tifa (Final Fantasy VII), Saria (The Legend of Zelda — Ocarina of Time) e várias outras personagens seriam exemplos até razoáveis da imagem feminina nos games, se não fosse por sua história totalmente apoiada em protagonistas masculinos.

Esses e outros exemplos são só alguns questionamentos para mostrar um furo terrível no processo de criação de personagens em jogos atualmente. Esse não é um problema inédito, mas, como podemos ver através de vários exemplos, não é algo que tende a mudar naturalmente com o passar dos anos, muito pelo contrário: a cada ano que passa, imagens de hiperssexualização, indefesa e suporte vêm sendo cada vez mais reforçadas nos games. É preciso pensar de forma um pouco mais crítica sobre isso.



O problema por trás do “ser feminino”

É importante dizer que todos os papéis citados aqui possuem o seu lugar na indústria e não devem ser totalmente abolidos do mercado. Mas a nossa crítica é relacionada à exclusividade desses três papéis básicos no que tange à imagem do que é “ser feminino”. Afinal, leitoras, vocês se resumiriam em seres exageradamente sensuais, frágeis e/ou dependentes dos homens? E, leitores, vocês realmente acreditam que as mulheres são somente isso? 

A questão aqui é bem mais profunda do que aparenta. Não é preciso ser um historiador formado para entender que a sociedade que chamamos de ocidental foi construída através das eras em cima de pressupostos paternalistas e machistas. Não estou dizendo aqui de discursos tendenciosos e nem de levantar bandeiras para esse ou aquele lado da “guerra de gênero”, mas, mesmo que muito do machismo e preconceito óbvio e direto da sociedade tenha desaparecido nas últimas décadas, nas entrelinhas, ainda existe bastante preconceito e muito disso é reflexo do processo histórico que nos trouxe até aqui.



O que se vê na indústria dos games é fruto de dois problemas básicos. O primeiro é que, ainda hoje, a grande maioria dos desenvolvedores e publishers é representada por homens. Dessa forma, querendo ou não, as personagens femininas são construídas não através de uma imagem que as mulheres acreditam ser o “ideal feminino”, mas sim através de imagens conscientes ou inconscientes que os homens carregam dessas mulheres. A hiperssexualização e a enxurrada de donzelas disfarçadas de personagens profundas são o maior exemplo disso.

As mulheres nos games são vistas como alguém a se salvar, alguém que irá ajudar você (homem) no que for preciso e, sempre, alguém absurdamente lindo de curvas perfeitas e com o visual como principal característica impactante. Quando fogem disso, ainda corre o perigo das personagens caírem no limbo dos “homenzinhos de saia”, o que também foge da imagem do que é ser feminino.


Ainda existe saída!

Entretanto, por sorte, temos ótimos exemplos (mesmo que sejam poucos) de ótimas representações femininas nos jogos. Mulheres que são independentes de imagens masculinas, possuem sua profundidade, certa delicadeza (não obrigatória) e postura digna, sem apelar para sensualidade exagerada ou histórias que possuam como referência base uma figura masculina. Algumas delas são:

  • Impa (The Legend of Zelda): Mesmo que em algumas de suas versões Impa seja retratada um tanto como masculina ou então como uma anciã, ela é uma personagem digna de representar o público feminino. Tentando traçar características comuns à maioria de suas versões ao longo dos jogos da franquia de Zelda e Link, Impa é uma guerreira incrível, que tem por missão ser guarda-costa e mentora da princesa que dá nome à série. Servindo muitas vezes de guia até para o herói da saga, Impa é independente, esperta, sábia e voraz, sem que pra isso precise apelar para a beleza ou que se torne um suporte para homens. No próprio Ocarina of Time, é ela que ajuda Zelda a fugir do perigoso Ganondorf, e a treina sobre o pseudônimo de Sheik. Uma das suas melhores versões (visualmente falando) sem dúvidas é a de Hyrule Warriors (Wii U), no qual encontra um balanço perfeito entre feminilidade, agressividade e delicadeza. 

  • Leona, a Alvorada Radiante (League of Legends): Nascida entre os guerreiros de Rakkor, povo voltado todo para a guerra, Leona era considerada uma criança problemática, pois, mesmo capaz de lutar tão ferozmente como qualquer outro, não compartilhava do zelo por matar que seu povo possuía. Para ela, o verdadeiro valor de um soldado jazia em sua capacidade de defender e proteger os oprimidos. Em um movimento audacioso, Leona se recusou a lutar pelo direito de empunhar uma arma-relíquia, levando os líderes de Rakkor a ordenarem sua execução por injúria. Mas, durante a cerimônia da sua execução, a luz do Sol explodiu sobre todos, deixando Leona ilesa e seus carrascos inconscientes a seus pés. Os Solari, adoradores da divindade do Sol, imediatamente clamaram por Leona, exigindo que sua sentença fosse desfeita. Após a devida preparação, a guerreira abandonou seu povo para fazer parte de League of Legends. Ignorando skins promocionais, Leona é o equilíbrio perfeito entre brutalidade e feminilidade, com armaduras não apelativas e uma personalidade digna. Entre tantas personagens apelativas no MOBA da Riot, é interessante encontrar uma personagem tão interessante.


  • Medusa (Dota 2): A mais jovem e mais bela das três lindas irmãs Górgonas, nascidas de uma deusa do mar, Medusa acreditava que beleza era poder, pois era a única mortal entre as três irmãs. Porém, sua vida mudou quando assaltantes mascarados invadiram o reino Gorgon e arrancaram as duas irmãs imortais das suas casas, indiferentes pela beleza ou lágrimas delas. Medusa foi ignorada pelos sequestradores por conta da sua mortalidade. Após o acontecido, enfurecida pelo que ocorreu com as suas irmãs, Medusa foge para o templo da sua mãe e, em um ato de heroísmo, bondade e sacrifício, pede que sua mãe levasse toda a sua beleza em troca dela receber poder e força para que dedicasse sua vida mortal a resgatar as irmãs e vingá-las da injustiça. Nunca, em momento algum, Medusa se arrependeu da sua escolha. Para a personagem, o poder é a única beleza que vale a pena possuir, pois somente com poder se pode mudar o mundo. Com uma história dessas e a justificativa clara para a perda da sua beleza, Medusa sem dúvidas é um ótimo exemplo de personagem feminina digna, forte e independente de figuras masculinas.

  • Red (Transistor) : A história de Red começa na cidade de Cloudbank, onde a personagem era uma cantora de sucesso. Durante um atentado terrorista, ela quase é morta mas, ao invés disso, acaba sendo teletransportada para longe da cidade. Isolada, Red encontra a arma que quase a matou: a própria espada Transistor, que supostamente fora transportada com ela. A arma tinha a função de controlar o exército de robôs responsável por manter Cloudbank em ordem. Com a sua ausência e com os terroristas em busca dela, tudo vira um caos. Daí pra frente, Red  precisa atravessar uma jornada em companhia exclusivamente de sua nova arma para garantir que a ordem retorne a cidade que tanto ama, mas também para recuperar seu bem mais precioso, a sua voz, a qual foi perdida durante o ataque. Red se diferencia de diversas personagens femininas pelo fato de ter uma história completamente centrada nela mesma, algo raro de se ver na maioria dos jogos que, como citamos, utilizam de elementos masculinos para justificar os arcos dos personagens femininos.

Tudo é o significado

Historicamente as mulheres passaram por maus bocados na mão da civilização como um todo e, assim como negros, homossexuais e outros grupos distintos, precisaram lutar muito pelo direito à igualdade, que, na verdade, deveria ser primordial em qualquer tipo de sociedade humana. Atualmente, as diversas mídias representam estereótipos de vários tipos e reforçam, muitas vezes de forma sútil, imagens que há muito tempo deveriam ser excluídas do imaginário popular como um modelo de gênero.

Nos games vemos que a imagem feminina ainda é muito marcada por conceitos e premissas um tanto quanto machistas. Não quero dizer que isso é algo conspiratório e nem muito menos crucificar os desenvolvedores dos jogos citados. Eles também, muitas vezes, não têm exata consciência do impacto que essas imagens estereotipadas podem causar. Exemplos como em Dota 2, League of Legends e em diversos jogos independentes podem servir como uma valorização digna da imagem feminina da maneira correta.



Outras personagens não foram citadas aqui, pois o número delas é enorme. Yuna (Final Fantasy X), Bayonetta (Bayonetta 1 e 2), Ellie (The Last of Us) e outras são exemplos de personagens femininas até dignas, mas cada uma delas entra em um dos problemas que citei no texto. Seja a hiperssexualização de Bayonetta ou a fragilidade e dependência de Ellie, independente da qualidade de suas personas. O importante é refletirmos sobre como as mulheres estão sendo retratadas nos jogos, e se estão sendo realmente bem representadas ou, se na verdade, só são mero produto de mais uma mídia. O que acham sobre isso? Consideram mais alguma personagem como uma boa imagem do papel feminino? Comentem!

Revisão: Alberto Canen
Capa: Felipe Fabrício

Gilson Peres é Psicólogo e Mestre em Comunicação pela UFJF. Está no Blast desde 2014 e começou sua vida gamer bem cedo no NES. Atualmente divide seu tempo entre games de sobrevivência e a realidade virtual.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google