Analógico

Transistor, Dark Souls e a narrativa nos games

Confira qual o diferencial da proposta narrativa de Transistor e Dark Souls.

A narrativa está presente nos games desde os antigos jogos-texto para PC até os títulos mais recentes. Se nem sempre foi peça essencial da experiência, muitas vezes figurou como um dos principais aspectos de uma obra. Hoje, os padrões de narração estão cada vez mais próximos dos encontrados nas grandes produções do cinema. Existem, no entanto, alguns games que se valem de maneiras distintas de se contar uma história. Confira por que Transistor e Dark Souls são, cada um à sua maneira, ótimos exemplos de narrativas inteligentes que não subestimam o jogador.

Observação: esse texto contém spoilers dos jogos.

Como se conta uma história

Estou chamando de narrativa a forma pela qual se conta uma história. Em nosso caso, de que maneiras um game faz o jogador passear por seu mundo e acontecimentos. Como disse anteriormente, a forma de narração mais em voga hoje é bastante análoga ao que vemos no cinema. Temos um grande número de títulos que basicamente utilizam cutscenes para desenvolver a trama. É o que encontramos em Uncharted, Call of Duty e Gears of War, por exemplo.
A partir das cenas se desenvolvem a trama, as nuances e os personagens.
Chegamos, então, em Dark Souls e Transistor. A quantidade de comentários que já vi pela internet sobre tais jogos não terem uma história é bem grande. A questão aqui não é, absolutamente, ausência dela, mas sim uma forma diferente de contá-la. Arrisco dizer, inclusive, que esses títulos possuem duas das mais interessantes histórias dos games, assim como narrativas igualmente competentes. São propostas diferentes, mas que possuem um aspecto em comum: precisam de uma postura participativa e até mesmo interpretativa por parte do jogador.

À margem do convencional

O RPG da From Software possui uma cena de abertura (disponibilizada abaixo) que conta apenas um panorama bem geral de sua trama. Assim que se passa a controlar o personagem, ficamos sem respostas diretas pelo jogo inteiro. Isso por que Dark Souls não desenvolve sua história a partir de cenas ou mesmo de diálogos obrigatórios. Na verdade o jogo não a desenvolve sozinho. A forma pela qual é possível investigar os acontecimentos de Lordran e entender o próprio mundo do game necessita da participação do jogador. 
Peguemos o exemplo de um dos chefes do jogo: Bed of Chaos. Não temos interferências diretas do jogo para explicar que a entidade é, na realidade, a Bruxa de Izalith, personagem citada no vídeo de abertura do jogo. Para chegarmos a essa conclusão precisamos nos atentar a outros fatores. O primeiro, e mais importante, é a descrição do item obtido após vencer o chefe. Nela lemos:
"Alma da Cama do Caos e mãe de todos os demônios. Esta lordsoul foi encontrada na Era do Fogo.
A Bruxa de Izalith tentou recriar a primeira chama a partir da alma, ao invés disso criou um ser distorcido de fogo e caos. Tal poder criou uma cama de vida que tornar-se-ia a origem de todos os demônios."
Por que ela tentou recriar a chama? Quais foram os efeitos disso? Qual a essência da alma? São outras questões que ficam em aberto para o jogador e a comunidade investigarem
Ao retornar a uma localidade anterior, pode-se conversar com uma das filhas da feiticeira e ter mais pistas sobre tal acontecimento. As descrições dos itens, bem como diálogos com certos NPCs, dão indícios da história e de cada trama daquele mundo. Sabemos que jogos como Elder Scrolls e até mesmo Assassin's Creed também contêm conteúdos e descrições que expandem a trama. Mas estes não desenvolvem o enredo por si. Os livros do primeiro, por exemplo, criam um senso de profundidade, e as informações presentes no segundo complementam a experiência. O diferencial presente em Dark Souls em relação a estes exemplos é que é a partir desses "extras" que o jogador entra em contato com a história, mas não uma história que já está acabada. Voltaremos a isso.

Em Transistor temos um personagem narrador. Porém, sua perspectiva de narração é bem diferenciada. Ao invés de contar a história do jogo, o homem preso na espada Transistor conversa diretamente com a personagem principal: Red. A cantora, que desde o começo do jogo está muda, é a interlocutora do narrador, e não o jogador. Ele conversa com a moça sobre coisas e situações que eles conhecem, mas quem está jogando não.

Quando jogo e história se confundem

Conseguimos pescar algum aspectos do enredo do jogo da Supergiant Games através destas conversas entre os personagens e das informações sobre a cidade que nos são reveladas nos terminais (computadores interativos com várias funções espalhados por Cloudbank: desde veiculação de notícias, até plataforma de pesquisas). Os momentos nos quais a cantora muda faz uso dos terminais para poder se comunicar com o seu companheiro através de texto são brilhantes. 

A forma de entrar em um contato mais aprofundado com a trama do título é através das descrições de cada habilidade de Red. E a maneira pela qual cada pedaço da informação é destravada é genial. Cada função (o nome dado aos movimentos) representa uma figura importante da cidade. E pode ser equipada em três espaços diferentes: ativo, potencializador (adiciona algum efeito ao ataque ativo) e passivo (adiciona efeitos permanentes durante a batalha). Para conseguir ver as três partes da história de cada personagem temos que equipar cada habilidade em cada espaço. Desta forma, para poder ter um quadro mais completo do enredo, precisa-se experimentar diferentes combinações de ataque nas batalhas. 
Transistor incetiva o jogador a testar todas as combinações. Para batalhar e conhecer mais a história das personagens.
Através destas informações o jogador começa a entender mais sobre as atitudes da Camerata, os antagonistas do jogo. Vejamos o último pedaço de texto habilitado pela função Spark(), referente à personagem Lilian Platt.
"A senhorita Platt nunca descobriu a verdade sobre o desaparecimento de seu amigo, aprendeu por um breve momento, no entanto, a verdade sobre o estranho fenômeno. Para a Camerata, Platt era mais alguém que se metia do que uma oportunidade, um dos poucos que tinha algum conhecimento sobre seus movimentos. Quando chegou o momento, certificaram-se que não estariam próximos de sua última locação conhecida. De acordo com a OVC, a senhorita Platt está sumida há mais de duas semanas, e a trilha já esfriou."
Essa é mais uma peça no quebra-cabeça que é a trama de Transistor. Ao juntarmos todas não teremos uma história pronta, ainda assim existe uma margem importante para que o jogador interprete os eventos de Cloudbank envolvendo os figurões da cidade, a tal espada Transistor e o enigmático Processo. Dark Souls, por sua vez, também propõe uma simbiose entre jogar e conhecer uma história.

Jogador arqueólogo

Não são apenas as descrições dos itens que dão informações da trama de DS. O posicionamento de cada item (o lugar onde está, ou que inimigo que o "dropa"), bem como o lugar onde está estacionada cada unidade inimiga também contam pedaços da história. E nesse sentido Hidetaka Miyazaki e o time da From Software criaram algo único: a disposição dos monstros em cada lugar não é apenas pensado em termos de level design, mas também de narrativa.
Aquele cadáver na esquerda possui um item importante para a história do jogo. O Ring of the Sun's Firstborn é o anel que pertencia ao primeiro filho de Gwyn. Ele foi apagado dos anais e tornou-se um refugo. Muita gente acredita que esse homem morto é o filho do senhor da luz, mas muitas outras informações pelo jogo podem indicar outras possibilidades. A discussão e interpretação é aberta a todos que quiserem participar. Quem é ele? O que fez para ser castigado? Novamente, muitas perguntas surgem.
Em Undead Burg encontramos o guerreiro Havel, the Rock. Ele está trancado em uma torre a qual só se tem acesso caso o jogador tenha escolhido a classe thief, o item inicial master key ou consiga a chave específica do local em um lugar posterior do game. É um desafio e tanto vencê-lo no início do game, principalmente se for sua primeira vez no jogo. Além de ser um desafio extra do estágio, Havel está trancado ali por um motivo. Lendo a descrição da chave do local tomamos conhecimento de que ele foi trancado lá por um velho amigo, "para o seu próprio bem, é claro". Tal amigo é, provavelmente, o Lorde Gwyn, grande rei de Anor Londo na Era do Fogo e o último chefe do game. Juntando essa informação com outras "escavadas" pelo jogo, podemos tanto entender que Gwyn o prendeu, de fato, pelo seu bem, como que esse "é claro" é irônico, e que ele foi preso por um motivo injusto. Assim, o jogador figura como um arqueólogo que busca a história "escondida" e que tenta dar um significado, uma interpretação, a esses achados. 
O papel de Havel na trama pode ser explorado em diversos momentos do jogo. São descrições, localidades e informações que reconstroem a história do personagem mediante participação do jogador nessa investigação.
Nesse mapa, Painted World of Ariamis, todos os inimigos e itens foram aprisionados por serem perigosos aos deuses de Anor Londo. Quem está aqui, por algum motivo, faz os grandes lordes temerem. Será que todos estão aqui contra a própria vontade?
Transistor e Dark Souls são exemplos de propostas narrativas diferenciadas e interessantes. Propõem ao jogador que desvende a história de forma participativa e que interprete uma série de aspectos do enredo. E fazem isso justamente por respeitar a capacidade do jogador de fazê-lo. Como amante de videogames, espero que os jogos sejam cada vez mais capazes de trazer não só histórias interessantes, mas também formas novas e legais de contá-las.
Que outros jogos têm uma narrativa diferente? Qual game te fez refletir e interpretar sua história? Comente.
Em relação ao Dark Souls, foram utilizados como fonte os vídeos de Epic Name Bro, Silvermont e VaatiVidya, que podem ser encontrados no YouTube.

Revisão: Vitor Tibério
Capa: Diogo Sousa

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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